Palavras-chave
articulação femoropatelar - instabilidade articular - reprodutibilidade
Introdução
A patela, conhecida como o maior osso sesamoide do corpo humano, é fundamental na
biomecânica da articulação do joelho. Tem as funções de aumentar o poder mecânico
do aparelho extensor e proteger a articulação do joelho.[1]
A síndrome patelofemoral é um termo usado para descrever uma condição na qual o trilhamento
patelar entre os côndilos femorais ocorre de forma inadequada. Esse deslizamento impróprio
provoca dor anterior no joelho, pode levar a alterações degenerativas ou luxação /instabilidade
da articulação femoropatelar.[2]
A instabilidade femoropatelar é uma patologia frequente e ligada a fatores predisponentes
na maioria dos pacientes. Dentre tais, a displasia da tróclea femoral e a altura da
patela são consideradas os fatores mais importantes.[3]
A instabilidade patelar é mais comum entre mulheres jovens, entre os 10 e 17 anos.
A taxa de luxação após o primeiro episódio varia de 15% a 44% após tratamento conservador,
essa taxa é maior em quem teve mais de um episódio.[4]
A displasia troclear é caracterizada por morfologia troclear anormal e sulco “raso”.
Não está claro se displasia troclear é causa ou consequência da instabilidade. Ou
seja, alterações congênitas poderiam levar à displasia da tróclea, que seria menos
profunda e que favorecesse a instabilidade; ou se alteraçõesmusculares determinariam
um trilhamento anormal da patela, reduziriam a pressão femoropatelar, o que geraria
um estímulo inadequado ao desenvolvimento da anatomia da tróclea e a tornaria mais
plana e displásica; ou se causada por uma combinação de fatores.[3]
[5]
Exames de imagem apresentam muitos sinais, permitem a identificac¸ão de grande e de
pequenas anormalidades anatômicas, auxiliam no estabelecimento do planejamento do
tratamento.[6]
[7]
[8]
[9] Imagens radiográficas em incidência lateral são fundamentais para avaliar e classificar
a displasia troclear e para quantificar a patela alta. Incidências axiais permitem
a medic¸ão dos ângulos da linha intercondilar e de congruência.[10] Imagens tomográficas podem permitir a definic¸ão da distância TT–LITAGT, o valor
da inclinação e as características rotacionais e avaliar a displasia troclear.[11] A ressonância é valiosa na luxação aguda e pode mostrar uma ruptura do ligamento
patelofemoral medial, além de lesões osteocondrais e contusões ósseas.[12]
A displasia troclear foi bem avaliada e classificada através de exames de imagem por
Dejour.[13] Auxiliado por radiografia e tomografia computadorizada, Dejour[14] classificou a displasia em tipos A, B, C e D[15] ([Fig. 1]).
Fig. 1 Classificacão de Displasia Troclear de Dejour[14] (radiografia e tomografia). Abreviações: Rx, raio X; TC, tomografia computadorizada.
Como vimos acima, a classificação de Dejour é importante para o tratamento do paciente
com a referida displasia. Todavia, uma característica que deve estar presente em qualquer
classificação e sua reprodutibilidade.[16] Para tanto, tal classificação deve ser simples, de fácil memorização e auxiliar
na escolha do tratamento, orientar o prognóstico e facilitar a comunicação entre os
profissionais da saúde.[16]
Assim, o principal objetivo do presente estudo é avaliar, através da medida da reprodutibilidade
interobservador e intraobservador, a classificação proposta por David Dejour[14] usada para descrever a displasia troclear do joelho.
Material e Métodos
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética com número CAAE 67648217.3.0000.5049. Todos
os participantes estavam de acordo e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido
entregue antes do início. Não foi oferecido incentivo financeiro para que participassem
e os voluntários poderiam se recusar a participar do estudo, ou retirar seu consentimento
a qualquer momento, sem precisar justificar.
Foram selecionados no ambulatório 10 sujeitos aleatoriamente, sem restrição de sexo
ou idade, com diagnóstico de instabilidade femoropatelar. Todos os pacientes fizeram
exames radiográficos para acompanhamento de suas patologias. Nenhum exame de imagem
adicional foi solicitado neste estudo. Foram usados apenas os que os participantes
já tinham.
Solicitamos aos sujeitos da pesquisa uma cópia de seus exames de imagens mais recentes:
uma radiografia em incidência em perfil e uma tomografia computadorizada em cortes
transversais do joelho acometido pela patologia e que tenham sido gravados em mídia
digital, como CD-ROM.
Os critérios de exclusão foram: indivíduos que relatassem cirurgia prévia do joelho
em questão e que não tivessem imagens radiológicas anteriores a esse procedimento.
Após aplicação dos critérios, nenhum participante foi excluído.
Para analisar as imagens, foram convidados três observadores membros da Sociedade
Brasileira de Cirurgia de Joelho. As imagens digitalizadas foram entregues em um CD-ROM
(copiadas depois da autorização dos pacientes) aos observadores. A fim de minimizar
o viés, devido à dificuldade de interpretação ou possível esquecimento, a classificação
e suas variantes estão descritas na [Fig. 1]. As análises radiográficas foram feitas de forma cega e precedida de uma revisão
da classificação momentos antes ([Fig. 1]). Os três examinadores, separadamente e sem contato com outros examinadores, avaliaram
as imagens dos 10 sujeitos alocados. Primeiramente classificaram (Dejour A, B, C ou
D) apenas com a radiografia em perfil (Análise 1) e depois com a tomografia e radiografia
(Análise 2).
Após uma semana, as mesmas imagens, randomizadas, foram examinadas pelos mesmos avaliadores.
Primeiramente classificaram (Dejour A, B, C ou D) apenas com a radiografia em perfil
(Análise 3) e depois com a tomografia e radiografia (Análise 4).
Logo em seguida a essa segunda avaliação, os mesmos observadores classificaram novamente
com a radiografia em perfil e depois com a tomografia, mas dessa vez podiam consultar
a classificação no momento da avaliação (Análises 5 e 6).
As variações inter e intraobservador dos dados tabulados foram analisadas pelo software SPSS (Statistical Package for the Social Sciences), v23, SPSS, Inc. Foram consideradas significativas as comparações com valor de p
até 0,05, com intervalo de confianc¸a de 95%. Para análise de concordância entre os
avaliadores foi usado o coeficiente de concordância W de Kendall ([Tabela 1]). Foram categorizados em escala ordinal com a classificação de Dejour, na qual A = 1
/ B = 2 / C = 3 / 4 = D.
Tabela 1
|
W de Kendall
|
Interpretação
|
|
< 0,4
|
Ruim
|
|
0,400 - 0,599
|
Regular
|
|
0,600 - 0,800
|
Bom
|
|
> 0,8
|
Excelente
|
Resultados
A variação interobservador foi calculada a partir de seis situações: Análise 1: avaliação
da classificação com apenas radiografia; Análise 2: avaliação com radiografia e tomografia;
Análise 3: reavaliação após uma semana, com apenas radiografia; Análise 4: reavaliação
após uma semana, com radiografia e tomografia; Análise 5: avaliação com radiografia
e consulta à classificação no momento; Análise 6: avaliação com radiografia e tomografia
e consulta à classificação no momento ([Tabela 2] e [Fig. 2]).
Fig. 2 Variação interobservador nas seis situações propostas.
Tabela 2
|
Situação
|
W de Kendall
|
Qui-quadrado
|
GL
|
Significância assintótica (p)
|
|
Análise 1 (Rx)
|
0,553
|
14,931
|
9
|
0,093
|
|
Análise 2 (Rx + TC)
|
0,891
|
24,058
|
9
|
0,004
|
|
Análise 3 (Rx)
|
0,515
|
13,903
|
9
|
0,126
|
|
Análise 4 (Rx + TC)
|
0,861
|
23,238
|
9
|
0,006
|
|
Análise 5 (Rx + consulta)
|
0,606
|
16,354
|
9
|
0,060
|
|
Análise 6 (Rx + TC + consulta)
|
0,883
|
23,840
|
9
|
0,005
|
A variação intraobservador foi expressa em valores de concordância W de Kendall entre
os três avaliadores para cada tipo de avaliação ([Tabela 3] e [Fig. 3]).
Fig. 3 Variação intraobservador (*p < 0,05).
Tabela 3
|
W de Kendall
|
Qui-quadrado
|
GL
|
Significância assintótica (p)
|
|
Avaliador 1
|
0,532
|
28,716
|
9
|
0,001
|
|
Avaliador 2
|
0,873
|
47,143
|
9
|
0,000
|
|
Avaliador 3
|
0,397
|
21,422
|
9
|
0,011
|
Discussão
Classificar as patologias é prática comum, principalmente na ortopedia e traumatologia.
Um bom sistema de classificação tem por finalidade ser simples, reprodutível e capaz
de agrupar diferentes estágios de uma lesão em subgrupos homogêneos e permitir comparações,
algoritmos de tratamento e prognóıstico.[16] O que geralmente acontece com as classificações é que, ao longo do tempo, aparece
um caso que não se enquadra nos tipos descritos ou classificados. Assim, algumas classificações
ao longo do tempo foram substituídas por outras mais completas.[17]
A estabilidade da articulação femoropatelar é de grande importância para o funcionamento
adequado do mecanismo extensor do joelho e da sua articulação como um todo.[18] No entanto, ela tem um baixo grau de congruência, conforme estabelecido pelo equilíbrio
da arquitetura óssea e das restrições de tecidos moles. Alterações anatômicas não
são raras e, como resultado do desequilíbrio mecânico, pode ocorrer instabilidade.
A apresentação clínica da instabilidade, no entanto, apresenta um espectro de manifestações.
Assim, é importante diferenciar os pacientes que têm sintomas, mas que não apresentam
anormalidades anatômicas, daqueles que têm subluxação e/ou luxação.[19]
Segundo DeJour et al,[6] destacam-se quatro principais fatores anatômicos que levam à instabilidade[6]
[20]:
-
Displasia da Face Patelar ou Displasia Troclear: o formato da face patelar é anormal
e a contenção óssea do desvio da patela é perdida;6,20
-
Distância entre a tuberosidade da tíbia e “garganta” da tróclea femoral (TT–LITAGT)
excessiva: situação associada ao mau alinhamento do mecanismo extensor, com a produção
de um vetor em valgo que age sobre a patela;6,20
-
Inclinação da patela: situação decorrente da insuficiência dos restritores mediais,
a displasia da face patelar também desempenha um papel importante na sua producão;6,20
-
Patela alta: situação em que a patela, com o progredir da flexão, encaixa-se na face
patelar femoral de forma instável, devido ao braço de alavanca alterado.6,20
O tratamento dos pacientes pode ser conservador ou cirúrgico, seguindo um fluxograma
no qual vários fatores são levados em consideração ([Fig. 4]).[18]
Fig. 4 Fluxograma para o tratamento da instabilidade femoropatelar.[18]
Entre os principais fatores temos: número de luxações; falha ou não do tratamento
conservador; distância TT–LITAGT aumentada; inclinação patelar aumentada; patela alta;
e a displasia troclear (quantificada pela classificação de Dejour e objeto de nosso
estudo).[18]
[20]
Ou seja, para muitos autores a classificação em questão serve de guia para a condução
clínica dos pacientes. Assim, é fundamental que a classificação em questão tenha uma
boa reprodutibilidade.
Lippacher et al[21] compararam a reprodutibilidade da classificação em 50 radiografias e 50 imagens
de ressonância e chegaram à conclusão de que a classificação de Dejour é válida para
a displasia, é particularmente útil na diferenciação entre as de baixo (A) e as de
alto grau (B-D).
Rémy et al[22] avaliaram apenas a reprodutibilidade da classificação com somente as radiografias
em perfil e chegaram à conclusão de que com apenas a radiografia a variação intra
e interobservador apresenta baixa concordância.
Em estudo feito por Nelitz et al[23] é chamada a atenção para o valor limitado da classificação, é útil apenas para dividir
em alto e baixo grau de displasia.
No presente estudo, fizemos uma análise em quatro cenários para classificar: com apenas
a radiografia em perfil; com a radiografia e a tomografia; com a radiografia e a classificação
no momento; e com a radiografia e a tomografia e a classificação no momento.
Como vimos nas figuras e [Tabela 2], mesmo consultando a classificação no momento, a variação interobservador com apenas
a radiografia em perfil apresenta W de Kendall não muito elevado. Todavia, as análises
que usaram a radiografia e tomografia apresentaram coeficiente W de Kendall maior
do que 0,8, o que expressa excelente concordância.
Na avaliação intraobservador, de acordo com a [Tabela 1], um avaliador obteve excelente concordância, um regular concordância e o terceiro
ruim concordância ([Tabela 3] e [Fig. 3]).
Conclusão
A classificação de Dejour gerou uma baixa reprodutibilidade intraobservador e interobservador
quando usada somente a radiografia em perfil.
Ficou demonstrado que o uso de apenas a radiografia para classificar pode gerar falta
de uniformidade até mesmo entre observadores experientes.
Contudo, quando usadas radiografia e tomografia associadas para classificar, a reprodutibilidade
melhora.