Palavras-chave
retalhos cirúrgicos - nervo sural/transplante - fáscia/transplante - traumatismos
da perna
Introdução
A cobertura do terço distal da perna, por apresentar distensibilidade e mobilidade
limitadas, baixo suprimento sanguíneo e não haver interposição de tecidos musculares
entre as estruturas nobres e o tegumento, ainda é um desafio para a cirurgia reconstrutiva.
Tais características tornam o uso de enxertos e retalhos randomizados inadequados
para feridas localizadas nessa região.[1]
[2]
[3]
O uso de retalhos microcirúrgicos e de retalhos pediculados baseados nas perfurantes
cutâneas da perna, especificamente de retalhos de fluxo reverso, é a opção com melhores
resultados. Porém, alguns necessitam de técnica cirúrgica mais complexa.[4]
O retalho fasciocutâneo sural, popularmente, chamado de retalho sural, com base distal,
tornou-se uma das mais importantes ferramentas no arsenal terapêutico da cirurgia
reconstrutiva para lesões localizadas no terço distal da perna, do tornozelo e pé,
principalmente após publicações de Masquelet et al.[1] Apresenta vantagens como grande mobilidade e versatilidade, preservação de artérias
importantes e músculos, além de simular a área receptora em textura, espessura, pigmentação
e flexibilidade. As possíveis complicações são as mesmas de outros retalhos: isquemia,
com necrose parcial ou total.[2]
[5]
[6]
[7] Visto isso, o presente estudo teve como objetivo avaliar o uso do retalho fasciocutâneo
sural de fluxo reverso para cobertura de lesões em distal de membro inferior.
Materiais e métodos
O presente estudo é de caráter transversal retrospectivo, aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa (CEP) de número 1.854.277 da Universidade de Passo Fundo. Foram
avaliados prontuários de pacientes submetidos à cirurgia reconstrutiva do membro inferior
e incluídos apenas indivíduos submetidos à técnica do retalho sural de fluxo reverso
de agosto de 2001 a dezembro de 2016.
As variáveis coletadas dos prontuários foram idade, sexo, localização da lesão, diagnóstico,
data da cirurgia, comorbidades e complicações.
As dimensões dos retalhos usados variaram de 2 × 3 a 8 × 8 cm2, de acordo com o tamanho
das áreas a serem cobertas. A técnica cirúrgica usada em todos os casos teve como
base a descrição de Masquelet et al[1]
[2]:
-
Bloqueio raquimedular.
-
Paciente em decúbito ventral: limpeza e desbridamento da área receptora.
-
O retalho é desenhado na junção das cabeças do músculo gastrocnêmico. Uma linha é
traçada distalmente seguindo o curso sobre o trajeto presumido do pedículo até o ponto
de rotação do retalho, localizado aproximadamente 5 cm proximal à extremidade do maléolo
lateral.
-
Drenagem venosa gravitacional e torniquete ao nível da região proximal da coxa.
-
Incisão cirúrgica da pele até a fáscia sural.
-
O nervo sural, a artéria sural superficial e a veia safena são ligados proximalmente,
então o retalho é elevado e inclui a fáscia até o ponto de rotação. Durante a elevação
do retalho, pequenas artérias oriundas da artéria fibular devem ser ligadas.
-
Rotação do retalho até a área receptora.
-
Sutura do retalho na área receptora.
-
Pode o retalho ser sensitivo com a neurotização término-lateral do nervo cutâneo sural
com o nervo tibial, descrita por Viterbo et al.[8]
-
O torniquete é liberado, avalia-se a perfusão do retalho. Se estiver débil, devem-se
checar pontos de compressão e acotovelamento do pedículo.
-
A área doadora pode ser fechada primariamente, porém na maioria das vezes é necessário
o uso de enxerto parcial de pele, retirado da coxa ipsilateral ao retalho.
-
O curativo deve ser feito com cuidado para que não haja compressão na área do pedículo,
bem como o posicionamento do paciente é feito de forma que a região posterolateral
da perna não fique sujeita a pressão externa.
-
Pós-operatório: suspende-se a ingestão de alimento que possa causar vasoconstrição,
como, por exemplo, café, guaraná, chocolate, chimarrão, bolacha recheada, chá e outros
alimentos ricos em xantinas (por serem vasoconstritoras), por período mínimo de um
mês. O tabagismo foi desaconselhado. Com relação às medicações: foi usado anticoagulante
(enoxaparina sódica de 40 mg/dia) por três dias, depois introduziu-se ácido acetilsalicílico
de 325 mg/dia por 30 dias. O antibiótico (Cefazolina) é mantido por período de 48
horas do pós-operatório ou a critério clínico.
Resultados
Dos 24 prontuários avaliados, 16 (66,7%) pacientes eram homens e oito (33,3%) mulheres.
A idade variou de seis a 75 anos. A maioria (83,3%) necessitou de retalho para cobertura
cutânea devido a sequela de trauma (acidente automobilístico), três casos (12,5%)
por lesões esportivas (deiscência de sutura na reconstrução do tendão de Aquiles)
e apenas um (4,2%) paciente foi submetido a reconstrução de membro inferior após ressecção
de tumor.
Foram encontrados registros de comorbidades associadas apenas em três prontuários:
diabetes mellitus, tabagismo e hipertensão arterial sistêmica.
Os locais mais frequentes de lesão foram maléolo lateral (20,8%), dorso do pé, calcâneo
(16,7%) e região do tendão de Aquiles (16,7%).
A maioria dos casos (87,5%) evoluiu sem complicações. Apenas dois (8,3%) casos apresentaram
necrose parcial com cicatrização por segunda intenção e um (4,2%) caso de necrose
total com evolução para amputação.
A paciente da [Fig. 1], sexo feminino, 45 anos, necessitou de retalho após ressecção de melanoma em calcâneo,
foi aplicada a presente técnica com sucesso. O paciente da [Fig. 2], masculino, 40 anos, também hígido, necessitou de retalho fasciocutâneo sural após
trauma em dorso do pé, teve desfecho favorável, com boa cicatrização.
Fig. 1 A, lesão ulcerada em calcâneo (melanoma); B, retalho fasciocutâneo dissecado com
pedículo vasculonervoso; C, retalho na área receptora e enxerto de pele na área doadora;
D, pós-operatório tardio.
Fig. 2 Trauma por esmagamento. A, lesão extensa em dorso do pé com área crítica de 8 × 8
cm; B, Área doadora; C, Área receptora após cobertura de retalho fasciocutâneo sural;
D, pós-operatório tardio.
As variáveis idade, sexo, localização da lesão, diagnóstico, data da cirurgia e complicações
de cada caso seguem descritas na [Tabela 1].
Tabela 1
|
Caso
|
Idade
|
Sexo
|
Localização da lesão
|
Diagnóstico
|
Data da cirurgia
|
Complicação
|
|
1
|
70
|
M
|
Maléolo medial
|
Fratura de pilão tibial
|
Out/14
|
Nenhuma
|
|
2
|
23
|
M
|
Dorso do pé
|
Fratura-luxação exposta tornozelo
|
Mai/2014
|
Nenhuma
|
|
3
|
37
|
M
|
Terço distal de perna, face anterior
|
Fratura exposta pilão tibial
|
Dez/2014
|
Nenhuma
|
|
4
|
33
|
M
|
Terço distal de perna, face anterior
|
Fratura exposta de tíbia distal
|
Jul/2013
|
Nenhuma
|
|
5
|
46
|
M
|
Maléolo lateral
|
Fratura exposta tornozelo
|
Mar/2012
|
Nenhuma
|
|
6
|
18
|
M
|
Terço distal de perna, face anterior + maléolo lateral
|
Fratura exposta tornozelo
|
Fev/2011
|
Nenhuma
|
|
7
|
6
|
F
|
Calcâneo
|
Perda de substância em calcâneo
|
Jul/2010
|
Nenhuma
|
|
8
|
39
|
M
|
Dorso do pé
|
Fratura-luxação exposta mediopé
|
Out/2009
|
Nenhuma
|
|
9
|
8
|
F
|
Maléolo lateral
|
Ferimento em tornozelo
|
Out/2009
|
Nenhuma
|
|
10
|
7
|
F
|
Calcâneo
|
Fratura exposta calcâneo
|
Out/2009
|
Necrose parcial do retalho
|
|
11
|
46
|
M
|
Maléolo medial
|
Fratura exposta maléolo medial
|
Abr/2009
|
Nenhuma
|
|
12
|
60
|
M
|
Aquiles
|
Deiscência de sutura
|
Jan/2013
|
Nenhuma
|
|
13
|
14
|
M
|
Terço distal de perna, face lateral
|
Ferimento perna
|
Mai/2016
|
Nenhuma
|
|
14
|
54
|
F
|
Aquiles
|
Deiscência de sutura
|
Dez/2004
|
Nenhuma
|
|
15
|
63
|
M
|
Terço distal de perna, face anterior
|
Fratura tíbia distal
|
Nov/2004
|
Nenhuma
|
|
16
|
22
|
M
|
Calcâneo
|
Exposição calcâneo
|
Set/2004
|
Nenhuma
|
|
17
|
45
|
M
|
Dorso pé
|
Fratura exposta maléolo lateral
|
Ago/2001
|
Nenhuma
|
|
18
|
46
|
F
|
Maléolo lateral
|
Fratura tornozelo - deiscência de sutura
|
Mar/2006
|
Nenhuma
|
|
19
|
64
|
F
|
Maléolo lateral
|
Fratura maléolo lateral
|
Fev/2014
|
Nenhuma
|
|
20a
|
45
|
F
|
Calcâneo
|
Melanoma em calcâneo
|
Dez/2016
|
Nenhuma
|
|
21b
|
75
|
M
|
Maléolo lateral
|
Fratura exposta de tornozelo
|
Mar/2013
|
Necrose total do retalho
|
|
22
|
46
|
F
|
Aquiles
|
Ruptura - deiscência
|
Abr/2016
|
Nenhuma
|
|
23c
|
40
|
M
|
Dorso pé
|
Esmagamento
|
Fev/2007
|
Nenhuma
|
|
24
|
55
|
M
|
Aquiles
|
Fratura tíbia e fíbula distal
|
Mai/2015
|
Necrose parcial
|
Discussão
O retalho fasciocutâneo sural de fluxo reverso tem como principais indicações a cobertura
de lesões decorrentes de úlceras crônicas, lesões traumáticas (principalmente secundárias
a fraturas expostas), ressecções oncológicas, lesões localizadas na face posterior
do calcanhar e do tendão de Aquiles, na face lateral e anterior do tornozelo, no dorso
do pé, na face lateral do retropé e no terço inferior da perna. Outras indicações,
como cobertura total do calcanhar, face medial do terço distal da perna, são consideradas
relativas devido à distância ser diminuta em relação ao ponto de rotação, o que pode
afetar o pedículo vascular ao tentar atingir essas regiões, pode comprometer o retalho.[1]
[2]
[3]
[6]
Severo et al[9] afirmam que retalhos pediculados locais têm preferência sempre que houver viabilidade
vascular e de tecido suficiente na área doadora para preenchimento da lesão.
A grande mobilidade e versatilidade do retalho sural de fluxo reverso, além de não
sacrificar artérias importantes, tem mostrado crescentes taxas de sucesso e poucas
complicações. Estudos feitos há mais de 10 anos mostram taxas maiores de complicações
(até 35%), enquanto nos últimos 10 anos apresentam importante redução (até 12%).[6]
[10]
[11]
[12] Fato também observado por Vendramin e Silva,[13] ao encontrarem diferentes taxas de complicações após avaliar resultados de uma mesma
equipe cirúrgica em períodos diferentes da curva de aprendizagem. Esses achados da
literatura não reproduzem os encontrados no presente trabalho, cuja taxa de sucesso
foi de 87,5%, pois as complicações não mostraram relação com a curva de aprendizagem.
Visto que essa técnica começou a ser usada neste serviço em 2001 e as complicações
apresentaram-se em 2009, 2013 e 2015. Os dois casos de necrose parcial representaram
cerca de 10% da área do retalho, ocorreu fechamento completo da lesão por segunda
intenção em ambos.
O paciente que evoluiu para necrose total e posterior amputação do membro ([Fig. 3]) era diabético tipo 2, insulinodependente e hipertenso. Na opinião dos presentes
autores, as complicações possivelmente decorreram das comorbidades, o que concorda
com Severo et al[9] e Parrett et al,[14] que encontraram correlação da presença de complicações e comorbidades, como diabetes,
obesidade, doença vascular periférica e tabagismo. Esse último, ainda, seria o principal
fator de risco isolado para complicações desse retalho.
Fig. 3 Fratura exposta maléolo lateral (A) e medial (B). Infeccão na ferida operatória bilateral
levou à falência de tecidos de cobertura. Feito retalho fasciocutâneo sural de fluxo
reverso para maléolo lateral (C) e retalho pedioso para maléolo medial (D). Necrose
total de ambos os retalhos (E). Evolucão para amputacão (F).
Almeida et al[10] apresentaram 25,3% de necrose em 71 casos (21,1% parcial e 4,2% total). No ano seguinte,
Baumeister et al[15] analisaram 70 pacientes portadores de comorbidades clínicas, principalmente diabetes,
e a taxa encontrada de necrose parcial foi de 17% e total de 18%. No estudo de Belém
et al,[6] com 22 pacientes, a necrose parcial correspondeu a 22%, enquanto a total foi de
4,1% da amostra. Seguindo, Garcia et al[5] relataram necrose parcial em apenas um paciente (6,6%) no total de 15 retalhos feitos.
Dhamangaonkar et al,[16] com 81 casos, apresentaram apenas necroses parciais em nove pacientes (11,1%). Nesses
dois últimos estudos, os resultados aproximam-se dos achados no presente trabalho.
Em relação ao sexo dos pacientes, o presente trabalho teve como maioria o masculino,
também encontrado em diversos outros estudos sobre reconstruções cirúrgicas em membros
inferiores.[1]
[4]
[16]
[17]
[18] O fato de as lesões serem em sua maioria traumáticas e o sexo masculino ser mais
envolvido nesses incidentes pode explicar tais achados.
Conclusão
Tem-se como relevância clínica que a técnica de retalho fasciocutâneo sural de fluxo
reverso para cobertura de lesões no terço distal dos membros inferiores mostrou-se
segura, de fácil execução e sem a necessidade de técnica microcirúrgica complexa.
Por conseguinte, com resultados satisfatórios e baixo índice de complicações, o que
determina uma importante opção para o arsenal terapêutico na reconstrução cirúrgica
de membros inferiores.