Introdução
A dermatopolimiosite (DPM) é uma miopatia inflamatória que apresenta comportamento
heterogêneo, destacando-se entre as doenças reumatológicas por sua baixa frequência
e grande morbidade.[1 ] Apresenta etiologia provavelmente autoimune e afeta, a princípio, pele e músculos,
ocasionando fraqueza muscular proximal simétrica e manifestações cutâneas características,
como o eritema heliótropo e a pápula de Gottron. A doença constitui entidade de grande
importância e demanda a intervenção terapêutica precoce, visto que responde eficientemente
ao uso de agentes imunoterapêuticos.[2 ]
A associação da DPM a neuropatias periféricas é pouco conhecida e a presença de neuropatia
múltipla em paciente portador da mesma consiste em entidade rara.[3 ] O objetivo deste artigo é relatar caso de síndrome compressiva de múltiplos nervos
em paciente portador de DPM, tratado através da neurólise do nervo mediano ao nível
do túnel do carpo e do nervo ulnar ao nível do túnel cubital. O paciente concordou
em participar da pesquisa e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Não existe conflito de interesses entre os participantes do trabalho.
Relato do Caso
Paciente M. A. A. R., sexo masculino, 28 anos, com relato de fraqueza iniciada há
7 meses e acompanhada por perda de peso, alterações descamativas da pele e pneumonia.
Exame clínico apresentou heliótropo em face e pápula de Gottron em mãos ([Figs. 1A-1B ]). Revisão laboratorial revelou aldolase e CPK elevadas. Ressonância magnética de
abdome mostrou alterações na musculatura paraespinhal compatíveis com miopatia. Eletroneuromiografia
(ENMG) de membros superiores e inferiores revelou quadro de síndrome do túnel do carpo
(STC) bilateral, síndrome do túnel cubital (STCU), miopatia generalizada e polineuropatia
sensitivo-motora distal com predomínio em membros inferiores.
Fig. 1 (A) Pápula de Gottron em dorso da mão. (B) Sinal do heliótropo em região da face.
Ambos os sinais são típicos de pacientes portadores de dermatopolimiosite.
Exame neurológico revelou hipotrofia muscular generalizada, tetraparesia 4/5 de predomínio
proximal, arreflexia de aquileu e hipostesia em padrão de bota e luva. Durante seu
tratamento com prednisona, apresentou quadro neurológico compatível com STC e STCU
e mais evidente em membro superior esquerdo, com comprometimento motor associado.
Notou-se hipostesia acentuada em território dos Nervos ulnar e mediano, além de paresia
grau 4/5 dos músculos flexores do 3° e 4° dígitos e oponente do polegar.
Após a orientação acerca das possibilidades terapêuticas, optou-se pelo tratamento
cirúrgico. O paciente foi submetido à descompressão simples do nervo ulnar ao nível
do cotovelo e do nervo mediano ao nível do túnel do carpo. Evoluiu bem, apresentando
recuperação relevante de função motora da mão esquerda, bem como redução da dor associada
nos territórios dos respectivos nervos ([Figs. 2A-2B ]).
Fig. 2 (A) Cicatriz do acesso cirúrgico para síndrome do túnel do carpo, cerca de 30 dias
após o tratamento. (B) Cicatriz do acesso cirúrgico para o tratamento da síndrome
do túnel cubital, cerca de 30 dias após o tratamento.
Discussão
Os critérios diagnósticos, definidos por Bohan & Peter, permitem a classificação da
DPM em cinco grupos: (1) juvenil, (2) primária idiopática, (3) amiopática, (4) associada
a neoplasias e (5) associada a outras doenças do tecido conjuntivo.[4 ] A suspeita clínica pode ser confirmada pelo exame das enzimas musculares séricas,
sendo a mais sensível a creatinoquinase (CK), pelos achados à ENMG e por biópsia muscular.[5 ]
As desordens sistêmicas que acometem pacientes com DPM incluem artrite reumatoide
(AR), síndrome de Sjögren (SS), pneumonia etc.[3 ] A doença ocorre mais frequentemente em indivíduos do sexo feminino, com idade média
de 40 anos ao diagnóstico (na forma juvenil, de 4 a 15 anos), e demanda a intervenção
terapêutica precoce, visto que responde ao uso de agentes imunossupressores.[4 ]
[6 ]
Quanto às manifestações clínicas, a doença leva a um quadro clássico de fraqueza muscular
proximal simétrica e lesões cutâneas típicas, como o edema eritematoso violáceo palpebral
(heliótropo) e as placas avermelhadas em superfícies extensoras das metacarpofalangianas
e das interfalangianas, de distribuição simétrica (pápulas de Gottron). Além disso,
alterações laboratoriais (principalmente das enzimas musculares), eletroneuromiográficas
e anatomopatológicas são úteis para reforçar o diagnóstico.[2 ]
[7 ]
As anormalidades cardiovasculares, muito comuns, podem ser assintomáticas ou manifestar-se
como arritmias, hipertensão arterial, pericardite e/ou miocardite. O aparelho respiratório,
os olhos e o aparelho urinário podem ser acometidos, levando respectivamente à doença
pulmonar restritiva, vasculite retiniana e insuficiência renal aguda. Por último,
podem ocorrer massas superficiais ou profundas de tamanho variável na pele (calcinose),
ocasionando deformações locais, bem como perda progressiva de tecido adiposo subcutâneo
em face e região superior do corpo (lipodistrofia).[7 ]
Em estudo recente, foram encontrados, entre 186 pacientes com DPM ou polimiosite (PM),
71 (38,2%) achados anormais ao estudo de condução nervosa, sendo 34 (18,3%) de neuropatia
periférica. Destes, 16 (8,6%) apresentavam STC, 14 (7,5%) apresentavam polineuropatia
e 4 apresentavam, respectivamente, mononeuropatia múltipla (0,5%), neuropatia sensorial
trigeminal (0,5%), neuropatia sensorial ulnar (0,5%) e envolvimento do plexo braquial
(0,5%). Dentre os 34 pacientes com neuropatia associada, 3 (8,8%) apresentavam tumores
malignos; 7, (20,6%) doenças do tecido conjuntivo; e 6, (17,6%) diabetes.[3 ]
A STC consiste no conjunto de manifestações clínicas decorrentes de uma condição de
compressão do nervo mediano no ponto em que este atravessa o punho. Trata-se da neuropatia
compressiva mais comum dos membros superiores, cujas queixas mais comuns são de parestesias
constantes ou intermitentes e dormência no território do referido nervo, associadas
a dor (às vezes, chegando a acordar o paciente durante a noite). Em casos mais graves,
pode ocorrer atrofia da musculatura tenar e fraqueza na oponência do polegar.[8 ]
[9 ] A síndrome pode estar relacionada a fatores ocupacionais, como o ato repetido de
flexão, pronação e supinação do punho, e fatores não ocupacionais, que incluem ocorrência
prévia de fratura de punho, artrite reumatoide, osteoartrite de punho ou carpo, obesidade,
diabetes e o uso de insulina, sulfonilureias, metformina e tiroxina, entre outros.[10 ]
[11 ]
A compressão do nervo ulnar ao nível do cotovelo é também frequente na prática clínica,
constituindo, depois da STC, a neuropatia compressiva mais comum dos membros superiores.[12 ] A STCU é possibilitada pela complexidade do trajeto do nervo ulnar no cotovelo e
apresenta forte associação com as variações anatômicas do ligamento retinacular cubital,
entre outras alterações congênitas e metabólicas, além de sequelas de trauma do cotovelo,
osteoartrose, estresse crônico em valgo etc.[13 ]
[14 ] Os pacientes geralmente apresentam parestesias no território de inervação do nervo
ulnar e atrofia da musculatura intrínseca da mão. A extensão da disfunção neural foi
estratificada por McGowan em três graus: apenas alterações sensitivas (grau I), fraqueza
muscular (grau II), e paresia e atrofia muscular (grau III).[14 ]
O tratamento conservador da STC pode ser utilizado nos pacientes com as seguintes
características: doença com menos de um ano de evolução, ausência de déficit motor
ou atrofia tenar, ausência de sinais de desnervação à ENMG.[15 ]
Quanto ao tratamento conservador da STC, a injeção local de esteroide não tem sido
muito aceita como opção, por aumentar o risco de lesão direta do nervo pela infiltração
intraneural e apresentar efeito transitório. É utilizada nos casos em que a cirurgia
não pode ser realizada.[15 ] Outra opção de tratamento conservador é a imobilização do membro acometido através
de tala.[15 ] Durante o seu uso, o paciente não realiza a flexão do punho, reduzindo a compressão
do nervo mediano ao longo da noite e, por conseguinte, reduzindo as parestesias. O
uso de vitamina B6 não tem mostrado resultados satisfatórios.[15 ]
Nos pacientes com sinais de hipotrofia muscular ou hipostesia permanente, a liberação
do nervo mediano como tratamento da STC está indicada.[15 ] Entre as técnicas cirúrgicas disponíveis para o tratamento da STC, encontra-se a
cirurgia aberta desenvolvida por Phalen na década de 1950. Possui inúmeras variações
quanto ao tipo de incisão e visa à secção do ligamento transverso do carpo liberando
o nervo mediano da compressão ao nível do punho. Esta técnica apresenta baixos índices
de complicação.[15 ]
A técnica endoscópica desenvolvida nos anos 1980 apresenta duas variantes: a técnica
monoportal, com uma incisão realizada ao nível do punho, e a técnica biportal, com
uma incisão realizada ao nível do punho e outra na região palmar. Apesar de ser uma
técnica menos invasiva, apresenta como dificuldade a curva de aprendizado mais longa
do cirurgião, quando comparada à técnica clássica. Os resultados são similares entre
as técnicas endoscópica e clássica, mas com o retorno do paciente mais rapidamente
ao trabalho na técnica endoscópica.[15 ]
O tratamento conservador da STCU está indicado para os pacientes com sintomas intermitentes,
neuropatia leve ou moderada, e consiste em evitar os movimentos de flexão forçada
do cotovelo por meio de mudança de hábito e/ou imobilização e uso de anti-inflamatórios
não hormonais. Nos pacientes com déficits neurológicos e alterações de inervação na
ENMG, a cirurgia para o tratamento da STCU está indicada. Existem duas técnicas distintas
para o tratamento da neuropatia do nervo ulnar ao nível do cotovelo: a descompressão
simples, na qual o nervo ulnar é exposto em todo o seu trajeto na região do cotovelo,
e uma segunda técnica, na qual, adicionalmente, o nervo é transposto à região anterior
da fossa cubital e posicionado no tecido celular subcutâneo ou sob a musculatura flexora-pronadora.[16 ]
Atualmente, as técnicas de liberação endoscópica do túnel carpal e do túnel cubital
são consideradas seguras e eficazes para o tratamento isolado da STC e da STCU, respectivamente.[19 ] Estudo recente, que avaliou os resultados da técnica de liberação endoscópica simultânea
dos túneis carpal e ulnar em 17 pacientes, demonstrou eficácia e segurança, sendo
os resultados e complicações pós-operatórios comparáveis àqueles inerentes ao uso
isolado das duas técnicas. No referido estudo, 82 e 100% dos pacientes apresentaram
resolução completa da dor e dos sintomas de nervo mediano, respectivamente.[17 ]
O tratamento cirúrgico leva a alívio significativo dos sintomas, bem como previne
estágios mais avançados de disfunção. As complicações da liberação endoscópica e da
cirurgia aberta incluem lesões de estruturas nervosas, lesões vasculares, lesões de
tendões, infecções locais e deiscência de ferida cirúrgica.[18 ]