Palavras-chave angiografia/métodos - artéria/patologia - tomografia computadorizada multidetectores
- paraplegia - medula espinal
Introdução
O déficit neurológico no pós-operatório de procedimentos cirúrgicos vasculares e espinhais
é uma grave complicação potencial devido ao envolvimento e comprometimento do suprimento
sanguíneo da coluna vertebral.[1 ] Estudos anteriores mostraram uma incidência de paraplegia e paraparesia pós-operatória
de 11,3%.[2 ] Puertas et al.[3 ] relataram uma incidência de lesão neurológica permanente de 4% nos pacientes tratados
cirurgicamente para a correção da escoliose idiopática através de instrumentação e
artrodese por via posterior. A artéria de Adamkiewicz (AAK) fornece o principal suprimento
sanguíneo para a medula espinhal, do nível T8 para o cone medular.[4 ]
[5 ]
[6 ] Portanto, a identificação pré-operatória da AAK desempenha um papel crítico na prevenção
da isquemia ou infarto da medula espinhal.
A taxa de identificação da AAK pela angiografia espinhal seletiva varia entre 65 e
86%.[1 ]
[7 ] No entanto, a angiografia seletiva da coluna pode ser demorada e tecnicamente desafiadora,
além de apresentar riscos potenciais para o paciente. Complicações relacionadas ao
procedimento foram relatadas em 1,2% dos pacientes.[8 ] A angiotomografia computadorizada por multidetectores (ATCM) é um método alternativo
não invasivo e eficiente que permite a visualização da AAK.[8 ]
[9 ]
[10 ]
A identificação da AAK é viável com as técnicas atuais da ATCM.[8 ]
[10 ]
[11 ]
[12 ] No entanto, esses métodos frequentemente exigem não apenas sequências ou protocolos
específicos, mas também estações de trabalho caras e elaboradas, e podem consumir
recursos.[11 ] Assim, na maioria dos centros, a identificação de AAK não faz parte da avaliação
de rotina pré-operatória nas cirurgias de coluna vertebral e vasculares.
Embora as demonstrações da AAK tenham sido bem documentadas na Europa, na América
do Norte, e na Ásia, a visualização da AAK pode variar entre diferentes regiões, e
poucos estudos em populações latino-americanas detalharam a localização da AAK.[8 ]
[11 ]
[12 ]
[13 ]
[14 ] Nossa hipótese era que a posição da AAK diferiria dos dados previamente relatados.
O objetivo do presente estudo foi avaliar a localização da AAK em uma amostra populacional
brasileira.
Materiais e Métodos
O Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (Parecer no 957.443, data da Relatoria 13/11/2014) aprovou o presente estudo. O estudo é de caráter
retrospectivo e foi composto por avaliações consecutivas de ATCM de 96 pacientes que
foram submetidos a investigações de doença arterial coronariana de janeiro de 2015
a janeiro de 2016. Indivíduos com evidência de patologia aguda ou pacientes com sinais
de cirurgia prévia na coluna foram excluídos do estudo. Um total de 86 pacientes preencheram
os critérios de inclusão e foram considerados para nossa avaliação. Avaliamos as imagens
de ATCM de 57 homens e 29 mulheres. A idade média dos pacientes do sexo masculino
foi de 56,9 anos (variação de 31–82 anos) e a idade média das pacientes do sexo feminino
foi de 59,7 anos (variação de 18–83 anos).
Aquisição e Reconstrução de Imagens
Todos os dados das ATCM foram adquiridos usando o scanner de tomografia computadorizada
Aquilion Prime 160 cortes por rotação (Toshiba Medical Systems Corporation, Otawara-shi,
Tochigi, Japão). Os parâmetros de escaneamento foram 120 kV, 250 mA em média, 0,50
de colimação, e um período de rotação de 0,35 segundos (pitch 0,641). Reconstruções
multiplanares de tomografia computadorizada (TC) foram obtidas no plano axial com
0,5 mm de espessura, intervalo de reconstrução de 0,3 mm, e campo de visão de 300
a 340 mm. Além disso, reconstruções multiplanares coronais oblíquas de 8 mm de espessura
usando a técnica de máxima intensidade de projeção (MIP) foram obtidas usando uma
estação de trabalho Vitrea (Vital Images, Inc., Minnetonka, MN, EUA).
Protocolo de Injeção Intravenosa e de Escaneamento
O protocolo de injeção envolveu o uso do agente de contraste não-iônico Iopamidol,
755 mgI / m (Iopamiron 370, Patheon, Ferentino, Frosinone, Itália). Uniformemente,
80 mL do contraste foram administrados através de uma linha IV de 16 a 18 gauge colocada
na veia antecubital a uma taxa de fluxo de 5 mL/s, seguido por um bolus de 40 mL de
solução salina. O escaneamento foi iniciado 7 segundos após o contraste ter atingido
180 unidades Hounsfield (UH) na região de interesse (RDI), posicionadas na aorta ascendente.
Análise de Imagem
O segmento distal da AAK e da artéria espinhal anterior tipicamente demonstra uma
configuração em grampo de cabelo ([Figura 1 ]). Portanto, para identificar a AAK, aplicamos os seguintes critérios: uma estrutura
vascular contínua com um curso reto que se estende de uma artéria intercostal ou lombar,
subindo na superfície média sagital anterior da medula espinhal, com a curva característica
em grampo de cabelo na anastomose com a artéria anterior da coluna. Inicialmente,
reconstruções multiplanares coronais oblíquas obtidas por meio da técnica MIP foram
utilizadas para identificar o giro na junção da artéria espinhal anterior e da grande
artéria radiculomedular anterior. O próximo passo foi identificar o nível de origem
e o lado em que a AAK estava localizada ([Figura 2 ]).
Fig. 1 Configuração típica da AAK em aspecto de grampo de cabelo.
Fig. 2 Entrada da AAK pelo lado esquerdo ao nível de T11.
Reprodutibilidade Interobservador e Intraobservador
Dois observadores avaliaram independentemente os exames tomográficos usando a mesma
estação de trabalho (Vitrea, Vital Images, Inc.). O observador 1 foi um radiologista
com 15 anos de experiência na realização e interpretação de angiografias diagnósticas,
e o observador 2 foi um cirurgião de coluna com 20 anos de prática. O observador 1
realizou uma avaliação aleatória adicional com um intervalo de 2 meses entre as avaliações
para a estimativa da confiabilidade intraobservador.
Análise Estatística
Avaliamos a reprodutibilidade da identificação da AAK calculando as concordâncias
interobservador e intraobservador da detecção de AAK, o nível de origem e o lado da
localização usando o valor kappa de Cohen. Considerou-se que os valores apresentaram
concordância fraca entre 0 e 0,20, concordância pequena entre 0,21 e 0,40, concordância
moderada entre 0,41 e 0,60, concordância substancial ou boa quando estavam entre 0,61
e 0,80 e concordância quase perfeita ou muito boa quando estavam entre 0,81 e 1,0.
Usamos o software Stata13 (StataCorp, 2013, College Station, TX, EUA para a análise
estatística.
Resultados
O observador 1 identificou a AAK em 71 pacientes (82,5%) durante a primeira análise
de imagem. Assim, em 15 pacientes (17,5%) da amostra do estudo, o observador 1 não
detectou a AAK. Em relação ao lado da localização, quando identificado, a AAK originou-se
do lado esquerdo do corpo em 65 pacientes (91,5%) e do lado direito em 6 pacientes
(8,5%). A nível segmentar variou do 6° nível torácico ao 1° espaço intervertebral
lombar. Os níveis de origem mais frequentes em nossa amostra foram T10, T9, e T11
em 23 (32,5%), 19 (26,7%) e 14 (20%) exames, respectivamente. Por outro lado, os níveis
de origem menos comuns incluíram os níveis de T6 e L1 ([Tabela 1 ]). Não encontramos anomalias da AAK ou duplicações ipsilaterais ou bilaterais em
nosso estudo. Os resultados relacionados ao lado e ao nível de origem da AAK estão
demonstrados na [Tabela 1 ]. Após uma seleção aleatória de 18 exames (20% da amostra), o observador 1 realizou
a segunda avaliação. A AAK foi identificada em 17 exames (95%), e em 1 exame (5%),
a AAK não foi identificada. O nível de origem variou de T6 a L1, e a AAK originou-se
do lado esquerdo em 16 pacientes (94%) e do lado direito em apenas 1 paciente (6%).
A concordância intraobservador foi perfeita (kappa = 1) não só para a identificação
da AAK, mas também para o lado e nível de origem. O observador 2 avaliou a AAK nos
mesmos 17 (95%) exames e não foi capaz de identificar a AAK em 1 exame. Dos 17 exames,
o nível de origem variou de T6 a L1 e a AAK originou-se do lado esquerdo em 16 pacientes
(94%) e do lado direito em 1 paciente (6%). A concordância interobservador também
foi perfeita (kappa = 1) para a demonstração da AAK e a determinação do lado e do
nível de origem.
Tabela 1
Nível de origem da AAK
Lado da AAK
Esquerdo
Direito
T5
0
0
T6
1
0
T7
0
0
T8
5
0
T9
17
2
T10
22
1
T11
14
3
T12
5
0
L1
1
0
Discussão
Nossos resultados revelaram que a ATCM é uma técnica viável para identificar a artéria
de Adamkiewicz (AAK), e nossos resultados são consistentes com os dados previamente
relatados.[8 ]
[11 ]
[12 ]
[13 ]
[14 ]
Partindo do princípio de que a anatomia da AAK em nossa população pode diferir de
outras populações, o estudo anatômico da localização dessa artéria torna-se importante
e tem implicações terapêuticas potenciais, especialmente para o planejamento de procedimentos
que poderiam comprometer a AAK por subsequente isquemia de a medula espinhal distal.[15 ] Como muitas outras variações anatômicas são encontradas em raças e etnias distintas,
consideramos que os dados obtidos a partir de estudos anteriores devem ser interpretados
com cautela, pois podem não se aplicar universalmente.[15 ]
[16 ]
[17 ]
Embora vários estudos de imagem tenham abordado o reconhecimento da AAK, ainda existe
um debate sobre a melhor técnica para identificar a AAK.[17 ] Vários estudos descreveram complicações relacionadas ao procedimento quando se utilizou
angiografia seletiva da coluna vertebral.[1 ]
[7 ] Publicações mais recentes têm favorecido técnicas menos invasivas, como a angiorressonância
magnética (ARM) ou a angiotomografia computadorizada (ATC).[10 ] No entanto, como esses métodos podem exigir protocolos especiais, administração
de contraste intravenoso, tempo, e recursos, na maioria dos centros, a identificação
de AAK não faz parte da análise clínica de rotina. A ATC, embora não seja invasiva,
expõe o paciente a uma dose significativa de radiação ionizante. Decidimos avaliar
a localização da AAK através do ATCM, um exame bem conhecido que é empregado para
a vascularização coronariana.
Estudos anteriores da ATCM sobre a visualização da AAK e suas características anatômicas
incluíram populações européias, americanas, e asiáticas.[8 ]
[12 ]
[13 ]
[14 ] Apesar da aumento de procedimentos vasculares e espinhais com implicações na alteração
na perfusão da medula espinhal, podem existir características anatômicas distintas
no tratamento de diferentes grupos étnicos. Melissano et al.[18 ] revisaram dados publicados sobre a visualização da AAK por meio de ARM ou ATC em
toda a literatura inglesa e identificaram uma tendência a um resultado homogêneo,
independentemente da técnica. O reconhecimento da AAK foi obtido em 466 de 555 exames
(83,96%). Em 384 (83,3%) casos, a AAK originou-se de uma artéria intercostal esquerda
e, em 77 (16,7%) casos, originou-se de uma artéria intercostal direita. Nossa avaliação
mostrou que o ATCM é efetiva para visualizar a AAK, e a identificação da AAK foi obtida
em 71 pacientes (82,5%). Consistentemente com estudos anteriores, descobrimos que
a AAK se originou do lado esquerdo do corpo em 65 pacientes (91,5%) e do lado direito
em 6 pacientes (8,5%). Além disso, as concordâncias intra e interobservador foram
perfeitas (kappa = 1,0) para a avaliação da AAK por meio da ATCM.
Outra possível preocupação, a diferenciação entre a AAK e a veia radiculomedular anterior,
é importante, pois a interpretação errônea desses dois vasos pode causar complicações
cirúrgicas críticas.[18 ] A veia radiculomedular anterior é frequentemente semelhante em forma e tamanho à
AAK e pode seguir uma trajetória semelhante à da AAK. Para evitar essa má interpretação,
seguimos um protocolo restrito de injeção e escaneamento que foi iniciado 7 s depois
que o agente de contraste atingiu 180 UH na RDI. Assim, concordamos com Utsunomiya
et al.[19 ] que um protocolo de injeção com uma alta concentração de iodo em um alto fluxo é
adequado para identificar a AAK. Além disso, a veia radiculomedular anterior geralmente
mostra uma trajetória tortuosa, o que pode ajudar a distinguir a veia da artéria.
Algumas limitações do nosso estudo merecem atenção. Primeiro, esta é uma avaliação
retrospectiva. A segunda limitação está relacionada ao fato de que os pacientes foram
submetidos a ATCM para a investigação de doença arterial coronariana, e a AAK pode
ter sido localizada fora da área estudada. Os níveis mais proximais e distais examinados
foram T4 e L1, respectivamente.
Conclusões
Obtivemos resultados para a identificação de AAK usando ATCM que foram consistentes
com a literatura prévia. Nossos resultados sugerem que a ATCM deve ser considerada
uma opção para identificar a AAK. Além disso, encontramos uma distribuição da AAK
em pacientes latino-americanos semelhante à de outras populações, com a AAK originando-se
mais comumente à esquerda dos níveis T9 a T12.