Palavras-chave
artroplastia reversa do ombro - consolidação dos tubérculos - fratura em idade geriátrica
- fratura do úmero proximal
Introdução
Nos últimos 20 anos tem-se verificado um aumento da incidência das fraturas do úmero
proximal (FUPs), representando 5% de todas as fraturas, sendo atualmente a terceira
fratura mais frequente entre os idosos.[1]
[2] Além disso, nesta população, as fraturas tendem a ser mais complexas, como fraturas
em três ou quatro partes, e fraturas-luxações.[3] Estes dados demonstram que as FUPs representam um problema de saúde pública, com
tendência a agravar à medida que a população envelhece.
Na maioria das FUPs, principalmente nas mais simples, o tratamento conservador permanece
o tratamento de eleição, com bons resultados.[4]
[5] Contudo, nas fraturas em três ou quatro partes em idosos, o tratamento ideal ainda
é um tópico de debate. A decisão deve ser individualizada, dependendo das comorbidades,
necessidades funcionais, qualidade do osso, e experiência do cirurgião.[6] Cada vez mais estudos sugerem que, nas fraturas com grande cominuição e em doentes
com osso osteoporótico, a redução aberta e osteossíntese (RAO) e a hemiartroplastia
(HA) não são recomendadas.[7] Nestes casos, a RAO está associada a elevadas taxas de necrose avascular da cabeça
umeral, perda da redução e destruição da glenoide pelos parafusos. As HAs têm demonstrando
resultados pouco animadores e imprevisíveis:[8] um estudo randomizado[9] demonstrou resultado funcional semelhante ao do tratamento conservador. A distribuição
bimodal dos resultados das HA, em excelentes ou muito ruins, depende da consolidação
dos tubérculos,[10] que geralmente está diminuída em pacientes com osso osteoporóticos e/ou fraturas
cominutivas, ou seja, nos idosos.[11]
[12]
Assim, as próteses reversas do ombro (PROs) têm ganho popularidade no tratamento destas
fraturas, pois apresentam resultados mais consistentes e previsíveis.[8] Garrigues et al.[13] concluíram que os pacientes com PRO apresentam resultados funcionais superiores
aos pacientes com HA. Como as PROs foram concebidas para não necessitarem do manguito
rotador, nos estudos iniciais não havia preocupação com a consolidação dos tubérculos.[14] Contudo, tem-se verificado que a ausência do manguito rotador, principalmente do
infraespinal e do redondo menor, está associada a piores resultados (diminuição da
rotação externa). Alguns estudos subsequentes demonstraram que a consolidação dos
tubérculos leva a resultados funcionais superiores, tanto nas PROs quanto nas HAs.[8]
[15]
[16] Apesar de haver consciência da importância da consolidação dos tubérculos na obtenção
de melhores resultados funcionais, existem poucos estudos que demonstrem o impacto
clínico para o doente.
O principal objetivo deste trabalho foi comparar os resultados funcionais entre pacientes
com FUPs complexas submetidos a PRO com tubérculos consolidados e tubérculos não consolidados.
O objetivo secundário foi determinar a taxa de consolidação dos tubérculos com este
tipo de prótese.
Material e Métodos
Desenho do Estudo
Após aprovação pelo Conselho de Ética da instituição, foi desenvolvido um estudo tipo
coorte, retrospectivo, com coleta prospectiva de dados, entre janeiro de 2011 e dezembro
de 2015, no qual se pretendeu avaliar a consolidação dos tubérculos em doentes idosos
submetidos a PRO por FUP. Os critérios de inclusão foram: pacientes com idade ≥ 65
anos, submetidos a PRO por FUP complexa em 3 ou 4 partes, segundo Neer,[5] com ou sem luxação, e tempo de seguimento mínimo de 24 meses. Excluíram-se pacientes
com cirurgia local prévia e tempo desde o evento traumático até cirurgia superior
a quatro semanas. As cirurgias foram realizadas por dois ortopedistas seniores dedicados
a patologias do ombro, após consentimento do paciente.
Durante o período de estudo, 46 pacientes foram submetidos a PRO por FUP. Após a aplicação
dos critérios de inclusão e exclusão, 28 pacientes integraram este estudo ([Figura 1]).
Fig. 1 Pacientes incluídos no estudo após aplicação dos critérios de inclusão e exclusão.
Técnica Cirúrgica
As cirurgias foram realizadas sob anestesia geral, em posição de “cadeira de praia”,
por meio da via deltopeitoral. Foi utilizada sempre a mesma prótese (Aequalis-Reversed
Fracture, Tornier, Edina, MN, EUA).
Intraoperatoriamente, foram mais uma vez avaliados os sinais de irreparabilidade da
fratura: a) cominuição dos tubérculos; b) fragmentos indistinguíveis; c) osso osteoporótico;
d) desvio acentuado da fratura com cominuição do calcar.
O tendão da longa porção do bicípite (LPB) e a sua goteira serviram de referências
para a inserção dos tubérculos. Foram realizadas tenodese da LPB e excisão do tendão
do supraespinal sistematicamente. A fixação dos tubérculos foi preparada nesta fase
com passagem de quatro fios não absorvíveis (Ethibond no. 5, Ethicon, Somerville,
Nova Jersey, USA), dois pelo tendão do infraespinal, e dois pelo redondo menor. Nas
fraturas em quatro partes, dois fios adicionais foram passados pelo tendão do subescapular.
Após a preparação do canal, efetuou-se medição da altura da haste utilizando-se o
calcar e a redução dos tubérculos como referências. Na ausência de calcar, foi avaliada
a tensão das partes moles após a redução da prótese: tensão do músculo deltoide e
tendão conjunto, assim como a distância entre o bordo superior do músculo peitoral
maior e o acrômio, que deve ser de cerca de 5,6 cm.[17] Relativamente à versão da prótese foi usado o guia do sistema, tendo como referência
o antebraço, utilizando 20° de retroversão para conferir maior estabilidade.[18]
A glenoide foi preparada, e os componentes definitivos foram colocados. As hastes
foram cimentadas distalmente à região metafisária, permitindo uma fixação hibrida.
Após a secagem do cimento, efetuou-se a redução da prótese, avaliou-se novamente a
altura e a tensão das partes moles, e escolheu-se o tamanho do polietileno. As partes
moles estavam devidamente tensionadas quando a luxação após a aplicação de forças
axiais e laterais era difícil de conseguir.[19]
A fixação dos tubérculos foi realizada de acordo com a técnica descrita por Pascal
Boileau,[20] utilizando os fios não absorvíveis colocados anteriormente e adicionando outros
dois fios semelhantes passados através de dois furos realizados na diáfise umeral
previamente à cimentação. Assim, após a redução dos tubérculos, os fios dos tendões
infraespinal, redondo menor e subescapular fixam os tubérculos como cerclages horizontais, e os fios que passam na diáfise neutralizam a construção como duas bandas
de tensão verticais (uma para cada tubérculo).
No pós-operatório, os pacientes mantiveram o membro imobilizado com suporte por três
semanas, começando então movimentos pendulares. Movimentos de elevação e abdução só
foram permitidos após seis semanas, iniciando de seguida reabilitação fisiátrica com
o devido acompanhamento.
Avaliação Radiológica
A consolidação dos tubérculos foi avaliada radiograficamente utilizando as incidências
em rotação neutra, interna e externa, e de perfil aos seis meses após a cirurgia.[11] Quando os tubérculos se encontravam acima do polietileno, estavam a uma distância
superior a 1 cm da sua posição anatómica, ou não estavam presentes, considerou-se
não haver consolidação dos tubérculos. Sempre que alguma dúvida subsistisse, foi pedida
tomografia computorizada (TC) aos seis meses após a cirurgia como ferramenta adicional,
o que permitiu avaliar a existência de continuidade óssea entre a diáfise e os tubérculos.
A classificação das fraturas e a consolidação dos tubérculos foram determinadas por
dois cirurgiões especialistas em cirurgia de ombro, e sempre que houvesse divergência
de respostas foi pedida opinião a um terceiro cirurgião especialista em cirurgia de
ombro.
Avaliação Funcional
Todos os pacientes foram avaliados com 2, 6 e 12 semanas, com 6 e 12 meses, e anualmente.
Os resultados funcionais foram determinados por meio do sistema de pontuação de Constant
(Constant Score, CS), do registo da amplitude de movimento ativo em elevação anterior
(EA), abdução, rotação externa (RE) e interna (RI). A amplitude de movimento foi medida
em graus com goniômetro, e as rotações, com o cotovelo junto ao corpo. Foi também
avaliada a Escala Visual Analógica (EVA), e foram registadas as complicações intra
e pós-operatórias. Os resultados dos pacientes com tubérculos consolidados e tubérculos
não consolidados foram comparados.
Análise Estatística
Foram comparadas as médias do CS, da amplitude de movimento, e da VAS por teste não
paramétrico U de Mann-Whitney, dada a dimensão amostral. Para as variáveis binomiais,
foi usado o teste do qui-quadrado de Pearson, salvaguardando contagem em células igual
ou superior a 5.
Resultados
Dados Epidemiológicos
Foram incluídos 28 pacientes, 22 (78.6%) do gênero feminino, e 6 (21.4%) do gênero
masculino, com idade média de 70,1 anos (mínima: 65,2 anos; máxima: 89,8 anos). Obteve-se
5 fraturas em 3 partes e 23 em 4 partes. O tempo de seguimento médio foi de 58,4 meses
(32,5 a 88,2 meses).
Consolidação dos Tubérculos
A consolidação ocorreu em 21 (75%) pacientes ([Figura 2]). No total, 3 pacientes apresentaram reabsorção dos tubérculos, e 4 tiveram migração
dos tubérculos, representando um total de 7 (25%) pacientes com tubérculos não consolidados
([Figura 3]). A [Tabela 1] apresenta a distribuição das variáveis independentes pelos dois grupos.
Fig. 2 Tomografia computorizada demonstrando tubérculos consolidados.
Fig. 3 Radiografia demonstrando tubérculos não consolidados.
Tabela 1
|
Variável
|
Consolidação de tubérculos
|
Valor de p
|
|
Sim
(n = 21)
|
Não
(n = 7)
|
|
Sexo feminino (%)
|
16 (76,2%)
|
6 (85,7%)
|
0,595*
|
|
Idade mediana[1]
[mínima – máxima]
|
73,6 [60,2–82,1]
|
70,9 [60,7–89,8]
|
0,876**
|
|
Seguimento mediano (meses) [mínimo – máximo]
|
56,5 [33,2–88,2]
|
46,8 [32,5–73,1]
|
0,140**
|
Resultados Funcionais
A maioria dos pacientes (75.0%) estavam sem dor em repouso e durante as suas atividades
diárias.
As diferenças nos resultados funcionais entre pacientes com tubérculos consolidados
e não consolidados estão descritas na [Tabela 2]. Obtiveram-se diferenças estatisticamente significativas no CS, EA, RI e RE. As
[Figuras 4]
[5]
[6]
[7]
[8] demonstram a distribuição das variáveis em estudo por esses 2 grupos.
Tabela 2
|
Avaliação funcional
|
Consolidação dos tubérculos
|
Valor de p
|
|
Sim
(n = 21)
|
Não
(n = 7)
|
|
Pontuação de Constant
|
79,0 (5;0)
|
55,0 (11;0)
|
p < 0,001*
|
|
Elevação anterior
|
135,0° (46;0°)
|
90,0° (70;0°)
|
p = 0,02*
|
|
Abdução
|
105,0° (45;0°)
|
75,0° (60;0°)
|
p = 0,435
|
|
Rotação interna
|
60,0° (45;0°)
|
30,0° (0;0°)
|
p = 0,01*
|
|
Rotação externa
|
60,0° (32;5°)
|
30,0° (0;0°)
|
p = 0,03*
|
|
Escala Visual Analógica
|
1,0 (0;5)
|
1,0 (1;0)
|
p = 0,836
|
Fig. 4 Distribuição da pontuação de Constant por grupos (consolidação versus não consolidação).
Fig. 5 Distribuição da elevação anterior do ombro por grupos (consolidação versus não consolidação).
Fig. 6 Distribuição da abdução do ombro por grupos (consolidação versus não consolidação).
Fig. 7 Distribuição da rotação interna do ombro por grupos (consolidação versus não consolidação).
Fig. 8 Distribuição da rotação externa do ombro por grupos (consolidação versus não consolidação).
Na análise multivariada da influência potencial do gênero e/ou da idade nos resultados
obtidos, constatou-se a não interferência com relevância estatística com relação ao
CS (p = 0.630 e p = 0.868, respetivamente), EA (p = 0.157 e p = 0.853, respetivamente), abdução (p = 0.566 e p = 0.497, respetivamente), RI (p = 0.431 e p = 0.601, respetivamente), RE (p = 0.239 e p = 0.526, respetivamente), e VAS (p = 0.164 e p = 0.722, respetivamente). Contudo, isolando a consolidação como variável no modelo,
apenas o CS (p < 0.001) e a RI (p = 0.002) mantiveram relação estatisticamente significativa.
Complicações
Não houve nenhum episódio de luxação ou instabilidade.
Verificou-se uma infeção superficial aguda, submetida a desbridamento, correspondendo
a um dos casos de não consolidação dos tubérculos.
Discussão
O uso de PRO em pacientes com FUP está em crescimento, principalmente em idosos. Inicialmente,
a longevidade destas próteses causava preocupação, mas os bons resultados verificados
em estudos em médio e longo prazos tem ampliado o uso delas. Du et al.[21] verificaram que as PROs estavam associadas a um aumento significativo do CS e diminuição
de reintervenções, quando comparado com as HAs. Klein et al.[16] também relataram melhoria no CS e um formulário curto de pesquisa em saúde. Em estudo
prospectivo realizado por Bufquin et al.,[15] em que foram avaliados pacientes com FUPs complexas submetidos a PRO, foi concluído
que a não consolidação dos tubérculos não implica necessariamente um mau resultado
final. Torrens et al.[22] afirmam que os resultados clínicos são sobreponíveis, não dependendo da consolidação
dos tubérculos. As PROs se baseiam nos princípios clássicos da prótese desenvolvida
por Grammont: a) uma prótese semiconstritiva com ponto de fixação (fulcro) fixo, a
partir do qual o deltoide realiza elevação do braço sem necessidade de recurso dos
manguitos rotadores, e b) centro de rotação medializado e mais baixo, o que permite
alongar o deltoide e assim diminuir a força necessária para realizar abdução do braço.[23]
[24] Deste modo, percebe-se que as PROs podem demonstrar bons resultados mesmo sem a
consolidação dos tubérculos. Apesar disto, estudos mais recentes sugerem que a integração
dos tubérculos e o bom funcionamento dos manguitos rotadores apresentam um benefício
funcional para os pacientes, com aumento da amplitude de movimento, particularmente
das rotações. No nosso estudo, verificamos uma melhoria estatisticamente significativa
na EA (127.5° versus 101.4), na RE (60° versus 30°), e na RI (64.8° versus 34.3°). Estes resultados reforçam os dados demonstrados encontrados na literatura.
Lenarz et al.[25] descreveram uma EA de 139°, e uma RE de 27°, e Valenti et al.[26] relataram CS de 55, EA de 112°, abdução de 97°, e RE de 12.7°. Gallinet et al.[8] demonstraram EA de 104° e uma RE de 33°. Uma revisão sistemática recente resume
bem os resultados destes estudos, concluindo que a consolidação dos tubérculos parece
traduzir-se em resultados funcionais superiores, principalmente nas rotações.[27] Além disso, uma pequena melhoria na amplitude de movimento dos pacientes pode traduzir-se
numa melhoria real na sua qualidade de vida. No nosso trabalho, verificamos que o
aumento da mobilidade dos pacientes correspondeu à melhoria do CS (79 versus 55). Boileau et al.[28] resumem seu estudo afirmando não só que a consolidação dos tubérculos melhora a
EA e a RE como também, a qualidade de vida dos doentes.
Com relação ao segundo objetivo do trabalho, verificamos consolidação dos tubérculos
em 76.3% dos pacientes. Esta percentagem está de acordo com estudos mais recentes,[22]
[29]
[30] e é superior a trabalhos mais antigos. Boileau et al.[28] descrevem uma taxa de consolidação superior, de 84%, defendendo que a consolidação
dos tubérculos nas PROs por fratura é um procedimento reprodutível mesmo em idosos.
Também as próteses evoluíram, e a existência de próteses desenhadas especificamente
para fraturas, com janela na região metafisária, permitem melhor integração e consolidação
dos tubérculos.
Alguns estudos defendem a melhoria em todos os planos com a consolidação dos tubérculos.[29] Em nosso estudo, não tivemos melhoria significativa na abdução (106° versus 83°), mas esta foi superior nos pacientes com tubérculos consolidados. A EVA foi
semelhante nos dois grupos, observando-se que a consolidação dos tubérculos não interfere
na dor.
O procedimento demonstrou baixa incidência de complicações, com apenas uma infecção,
completamente debelada com desbridamento e antibioterapia. Não se verificaram luxações,
instabilidades ou lesões neurológicas.
As limitações deste trabalho são aquelas inerentes aos estudos retrospectivos. Além
disso, o uso de testes não paramétricos, devido ao fato de a amostra ser relativamente
pequena, não permite ampla discriminação na análise dos dados, apesar de os resultados
obtidos serem estatisticamente significativos. São necessários mais estudos randomizados
para comprovar definitivamente a superioridade dos resultados funcionais com a consolidação
dos tubérculos.
Concluindo, nosso trabalho demonstrou superioridade no CS, EA, RE e RI quando a consolidação
dos tubérculos foi conseguida, o que correspondeu a 78.6% dos casos.