Palavras-chave coluna - escoliose - listas de espera - curvaturas vertebrais - política de saúde
Introdução
A organização do Sistema Único de Saúde (SUS) determina que o tratamento cirúrgico
das deformidades da coluna vertebral deve ser realizado em centros terciários especializados.
[1 ] Os pacientes encaminhados para centros terciários entram em fila de espera.
O tratamento cirúrgico das deformidades da coluna vertebral tem características especiais
(longa duração das cirurgias, exigência de recursos humanos especializados, alto custo
de implantes e recursos técnicos). Isso, associado ao subfinanciamento do SUS, tem
levado a um aumento constante na lista de espera cirúrgica. [2 ]
[3 ]
Evidências emergentes sugerem que o tratamento para escoliose é sensível ao tempo,
pois a escoliose piora com o crescimento da coluna vertebral e com o passar do tempo.[4 ]
[5 ]
[6 ]
[7 ] À medida que os pacientes aguardam tratamento, particularmente crianças e jovens,
suas deformidades na coluna se deterioram, tornando-se mais complexas e mórbidas,
causando sofrimento emocional indevido para os pacientes e seus familiares. [8 ] Além disso, o risco de complicações do tratamento cirúrgico de deformidades espinhais
maiores é substancialmente mais alto,[9 ] assim como o custo do tratamento. [10 ]
[11 ] Alguns estudos mostraram o impacto dos longos tempos de espera para o tratamento
cirúrgico da escoliose no Canadá[4 ]
[7 ]
[12 ] e no Brasil. [3 ]
[13 ]
[14 ]
Apesar da melhora na atenção primária à saúde, o SUS tem enfrentado desafios na prestação
de cuidados de saúde universais e equitativos a 209 milhões de brasileiros. [15 ] As decisões de alocação e o planejamento ocorrem nas Conferências Nacionais de Saúde,
que são realizadas a cada quatro anos, de acordo com uma lei federal. [16 ] O atual processo de tomada de decisão para a alocação de recursos em saúde para
o SUS tem sistematicamente falhado em responder às necessidades não atendidas de cuidados
cirúrgicos de crianças e jovens que são desproporcionalmente sobrecarregados com a
falta de acesso à assistência hospitalar no Brasil.[17 ]
[18 ]
[19 ]
Em um dos maiores hospitais acadêmicos quaternários do Brasil, um dos autores seniores
notou nos últimos dez anos um impacto dramático da crescente carga de escoliose em
decorrência da atual política pública de saúde, ou da falta dela, para a alocação
de recursos cirúrgicos para crianças e jovens com deformidades espinhais. O objetivo
deste estudo de caso é medir e documentar o impacto clínico do tempo de espera para
tratamento cirúrgico de pacientes com deformidades complexas da coluna vertebral em
um centro quaternário no Brasil.
Materiais e Métodos
Esta série de casos retrospectivos foi aprovada pelo comitê de ética em pesquisa sob
o número 833.475. Foi avaliada uma coorte de 59 pacientes com deformidades na coluna
vertebral na lista de espera cirúrgica a partir de dezembro de 2013 em um centro quaternário
no Brasil. Apenas deformidades pediátricas, definidas pela idade e etiologia do diagnóstico,
foram consideradas no estudo. Foram excluídas deformidades adultas ou degenerativas,
bem como um paciente que estava na lista de espera e já havia sido submetido a cirurgia
em outro hospital.
Os prontuários dos pacientes e as radiografias da coluna vertebral foram revisados.
As principais medidas de desfecho incluíram tempo de espera para cirurgia (quanto
tempo os pacientes aguardaram pelo tratamento cirúrgico até dezembro de 2013) e qualidade
de vida relacionada à saúde (QLRS) utilizando o questionário SRS-22r validado em português.
[20 ] O questionário foi aplicado para pacientes com mais de 10 anos de idade e com função
cognitiva completa.
As imagens radiográficas foram avaliadas quando o tratamento cirúrgico foi recomendado
(inclusão na lista de espera) e na consulta de acompanhamento mais recente. As medições
radiográficas foram feitas manualmente em imagens radiográficas impressas e digitais,[21 ] utilizando o programa Osirix (Pixmeo Sarl, Bernex, Suíça). Os parâmetros radiográficos
selecionados para comparação foram: ângulo de Cobb de curvas primárias e secundárias,
alinhamento coronal, translação de vértebra apical, obliquidade pélvica, eixo vertebral
sagital, cifose (T5-T12), e lordose (L1-S1). Para pacientes com escoliose neuromuscular,
a obliquidade pélvica foi avaliada de acordo com Gupta et al.[22 ]
Analisamos os dados com o programa John's Macintosh Project (JMP, SAS Institute, Inc.,
Cary, Carolina do Norte, EUA). Usamos o teste t de Student para médias e desvios-padrão para dados dados de distribuição normal.
Para dados com distribuição não paramétrica, calculamos medianas e intervalos interquartil
(IIQs), que analisamos com análise de variância (analysis of variance , ANOVA, em inglês) e o teste U de Mann-Whitney (análise intergrupo). Testes t de Student emparelhados foram utilizados para a análise intragrupo. A análise correspondente
foi descrita com a diferença média e o intervalo de confiança de 95% (IC95%). O nível
de significância (α) foi estabelecido como 0,05.
Resultados
Foram avaliados 59 pacientes (40 mulheres) que estavam na lista de espera cirúrgica
para tratamento de deformidades na coluna vertebral em 31 de dezembro de 2013. A idade
dos pacientes variou de 3 a 23 anos (média de 13,5 ± 3,7 anos). A etiologia das deformidades
foi: neuromuscular (17 pacientes; 28,3%), congênita (16 pacientes; 26,7%), idiopática
(15 pacientes; 25,0%), sindrômica (10 pacientes; 16,7%), síndrome de Marfan (1 paciente;
1,7%), e neurofibromatose (1 paciente; 1,7%). O tempo de espera para a cirurgia em
dezembro de 2013 variou de 2 a 117 meses (mediana: 13,5 meses; IIQ: 13,8 meses).
A avaliação da QLRS foi feita com o questionário SRS-22r em 36 pacientes com as seguintes
etiologias: 11 (30,6%) – neuromuscular,;10 (27,8%) – idiopática; 8 (22,2%) – congênita;
5 (13,9%) – sindrômica; 1 (2,8%) – síndrome de Marfan; e 1 (2,8%) – neurofibromatose.
A pontuação mediana para cada categoria foi: função – 3,60 (IIQ: 1,00); dor – 4,00
(IIQ: 1,40); autoimagem – 3,00 (IIQ: 0,80); saúde mental – 3,80 (IIQ: 1,00); e satisfação
– 4,00 (IIQ: 1,00) ([Fig. 1 ]).
Fig. 1 Resultado dos pacientes na lista de espera cirúrgica de acordo com os escores do
questionário SRS-22r. Cada barra corresponde à pontuação média de cada domínio no
questionário.
Os parâmetros radiográficos apresentaram diferenças estatisticamente significativas
comparando a avaliação no momento da indicação cirúrgica e no seguimento. Observou-se
diferença estatística nos parâmetros coronal e sagital que indicam a progressão da
deformidade ([Tabela 1 ], [Figs. 1 ], [2 ], [3 ] e [4 ]). Entre os pacientes com esqueletos imaturos na avaliação inicial, 18 (58,1%) atingiram
a maturidade esquelética enquanto aguardavam a cirurgia.
Tabela 1
Parâmetros radiográficos
Inicial
Final
Diferença média
IC95%
Valor de p
Plano coronal
Curva principal
61,19°
79,81°
18,61°
13,88°–23,35°
< 0,0001*
Curva secundária 1
39,07°
49,73°
10,66°
7,73°–13,58°
< 0,0001*
Curva secundária 2
21,16°
26,78°
5,63°
1,54°–9,72°
0,0086*
C7-CSVL (milímetros)
21,54
31,73
10,20
2,44–17,95
0,0113*
AVT (milímetros)
38,56
55,85
17,28
8,6–25,97
0,0003*
Obliquidade pélvica (horizontal)
8,88°
12,68°
3,80°
0,43°–7,17°
0,0287*
Obliquidade pélvica (T1)
12,44°
16,48°
4,04°
0,27°–7,81°
0,0369*
Plano sagital
EVS (milímetros)
29,53
41,00
11,47
1,55–21,39
0,0245*
Cifose (T5–T12)
33,74°
39,62°
5,88°
-0,04°–11,80°
0,05
Lordose (L1–S1)
-54,80°
-57,05°
-0,25°
-6,59°–6,09°
0,937
Principal deformidade sagital
69,15°
87,92°
18,77°
10,51°–27,03°
0,0003*
Fig. 2 Progressão radiográfica da escoliose idiopática adolescente a partir de 2005 (A ), em 2010 (B ), e em 2013 (C ).
Fig. 3 Progressão da escoliose sindrômica em uma menina de 10 anos de fevereiro de 2013
(A ) a janeiro de 2014 (B ).
Fig. 4 Progressão de deformidade de janeiro (A ) a outubro de 2013 (B ) em paciente com amiotrofia espinhal.
No plano coronal, o ângulo de Cobb da deformidade principal aumentou em média 18,6°
(IC95%: 13,9° a 23,4°; p < 0,0001). O aumento da deformidade foi observado em todas as etiologias ([Fig. 5 ]). O ângulo de Cobb da curva secundária aumentou em média 10,7° (IC95%: 7,7° a 13,6°;
p < 0,0001) ([Fig. 6 ]).
Fig. 5 Comparação entre os ângulos inicial e final de Cobb da curva principal de deformidade
nas diferentes etiologias, mostrando piora da deformidade em todos os subgrupos de
pacientes.
Fig. 6 Comparação entre os ângulos inicial e final de Cobb das curvas principal e secundária.
As barras e os números representam o ângulo médio de Cobb, e as barras de erro representam
o IC95%. O asterisco (*) indica diferença estatística.
Discussão
Este estudo documenta o impacto do longo tempo de espera para o tratamento cirúrgico
de deformidades da coluna vertebral em crianças e jovens em um centro quaternário
no Sistema Único de Saúde (SUS). A avaliação dos pacientes em nossa lista de espera
para tratamento cirúrgico de deformidades espinhais mostrou progressão das deformidades
e diminuição dos escores de QLRS. Contestamos o termo “esperar por cirurgia” porque
muitos pacientes nunca foram operados até o momento. A realização de tratamento cirúrgico
para maiores deformidades vertebrais, à medida que elas avançam com o tempo, representa
aumento do custo e da morbidade, e, em alguns casos extremos, o alto risco de complicações
fatais pode impedir que os cirurgiões realizem o tratamento cirúrgico recomendado.
O crescente número de processos judiciais para tratamento médico hospitalar no Brasil[23 ] ilustra esse complexo problema da política de saúde e os desafios envolvidos na
incorporação de tecnologia e tratamentos complexos (e seus custos inerentes) em um
sistema de saúde com recursos financeiros limitados. [24 ]
Os pacientes na lista de espera do nosso estudo foram manejados de acordo com as políticas
de saúde atuais do SUS; porém, essa abordagem não tem sido eficaz, como mostram nossos
dados. O SUS foi criado após a Constituição brasileira de 1988 reconhecer a saúde
como direito e dever do Estado. [15 ]
[16 ] Problemas relacionados ao tempo de espera para o tratamento de deformidades da coluna
vertebral foram relatados no Brasil[3 ]
[13 ]
[14 ] e em outros países como Canadá, Reino Unido,[10 ] e Nova Zelândia. [8 ] O tempo médio de espera foi de 1 ano no Canadá,[4 ]
[7 ]
[12 ] de 5 a 9 meses no Reino Unido (segundo Clark[10 ]), e de 2,5 semanas a 2,9 anos na Nova Zelândia. [8 ] Os perigos dos tempos de espera prolongados são muito conhecidos e caracterizados
pela progressão da curva, pelo aumento dos sintomas, e pelo impacto negativo na saúde
mental e na qualidade de vida do paciente. [6 ]
[7 ]
[25 ] Os resultados observados em nosso estudo apenas corroboram e concordam com os relatórios
anteriores.
Ao estudar a QLRS dos pacientes na lista de espera, pudemos observar baixos escores
no questionário específico de QLRS para pacientes com deformidades espinhais (SRS-22r).
Assim, Calman et al.[8 ] avaliaram o impacto do atraso no tratamento cirúrgico para pacientes com escoliose
idiopática correlacionado com o agravamento progressivo da QLRS. Em nosso estudo,
quando a decisão cirúrgica foi tomada, não havia dados de QLRS de linha de base, e
isso é uma limitação. Independente disso, pudemos observar pontuações no SRS-22 menores
do que as descritas na literatura. Camarini et al.,[20 ] no estudo que resultou na validação do SRS-22r para a população brasileira, aplicaram
o questionário a pacientes com escoliose idiopática e obtiveram pontuação superior
à do nosso estudo, exceto nas categorias “dor” e “saúde mental”, que eram as mesmas
do que a nossa. Farley et al. [26 ] aplicaram o questionário SRS-22r a pacientes com escoliose congênita, e obtiveram
escores maiores em cada categoria ([Tabela 2 ]).
Tabela 2
Domínio (SRS-22r)
Lista de espera cirúrgica (avaliação clínica)†
Escoliose idiopática*[20 ]
Escoliose congênita*[26 ]
Função
3,60 (1,00)
4,08 ± 0,75
4,64 ± 0,5
Dor
4,00 (1,40)
3,99 ± 0,87
4,53 ± 0,47
Autoimagem
3,00 (0,80)
3,53 ± 0,83
3,73 ± 0,85
Saúde mental
3,80 (1,00)
3,73 ± 0,75
4,21 ± 0,59
Satisfação
4,00 (1,00)
4,28 ± 0,83
4,02 ± 0,88
Total
3,73 (0,91)
Indisponível
4,23 ± 0,52
A avaliação das consequências radiográficas mostrou agravamento das deformidades do
paciente enquanto aguardava o procedimento cirúrgico. Houve aumento nos ângulos das
deformidades primárias e secundárias, progressão do desequilíbrio nos planos coronal
e sagital, e aumento do número de pacientes com obliquidade pélvica. Assim, Dabke
et al.[6 ] realizara uma análise retrospectiva em pacientes adolescentes com escoliose idiopática
tratada cirurgicamente, e relatou piora significativa da deformidade enquanto os pacientes
aguardavam a cirurgia, o que resultou em cirurgias mais complexas a serem realizadas
do que as originalmente previstas em 16,7% dos casos. Miyanji et al.[9 ] revisaram o tratamento de 325 pacientes com escoliose idiopática, e correlacionaram
o aumento da deformidade com o tempo cirúrgico, o número de níveis incluídos na cirurgia,
e o risco de necessidade de transfusão sanguínea. Embora o estudo não incluísse a
análise dos custos cirúrgicos, os autores concluíram que o aumento da utilização dos
recursos resulta em um aumento das despesas com o tratamento. Em outro estudo, Miyanji
et al.[7 ] analisaram a perspectiva dos cirurgiões responsáveis para o tratamento de pacientes
com deformidade espinhal, e relataram que o aumento da gravidade da deformidade enquanto
os pacientes aguardam o procedimento cirúrgico leva os cirurgiões a planejar um procedimento
mais difícil e mórbido. Ou seja, segundo a literatura, a piora radiográfica observada
em nosso estudo significa procedimentos mais complexos, com consequências clínicas
para os pacientes e consequências financeiras para o sistema de saúde. Em nosso estudo,
além do aumento da gravidade da deformidade e o consequente desequilíbrio observado
enquanto os pacientes aguardam tratamento cirúrgico, também houve aumento no número
de pacientes com obliquidade pélvica que necessitava de instrumentação pélvica. A
inclusão da pélvis leva a um aumento no tempo cirúrgico, perda de sangue, e risco
de infecção.[27 ]
[28 ]
[29 ]
[30 ] Martin et al.[31 ] analisaram um banco de dados multicêntrico com 1.890 pacientes submetidos a cirurgia
por deformidade pediátrica da coluna vertebral, e identificaram um aumento na complexidade
do procedimento, particularmente em pacientes que incluíram fixação pélvica, como
fator de risco para reinternação hospitalar não planejada nos primeiros trinta dias
após a operação. Com os resultados de maiores riscos de complicações, reinternação
hospitalar, e maiores custos de implante pélvico, os autores concluíram que pacientes
com obliquidade pélvica precisarão de cirurgias mais caras.
Listas de espera são comuns a todos os serviços financiados publicamente em todo o
mundo.[25 ]
[32 ] Longos tempos de espera para o tratamento cirúrgico têm corroído a confiança dos
cidadãos no sistema de saúde.[33 ] Portanto, os tempos de espera cirúrgicos tornaram-se uma importante questão social
e política. O impacto negativo dos tempos de espera prolongados para a cirurgia de
deformidade da coluna vertebral foi reconhecido. Foram feitas tentativas de estabelecer
um tempo de espera máximo aceitável com base na minimização do risco de cirurgia adicional
devido à progressão de deformidade. Como exemplo, o Canadian Pediatric Surgical Times
Project propôs um tempo máximo de espera de seis meses com base na opinião de um especialista,
que foi contestado e revisado para três meses com base em dados empíricos.[4 ]
Em nosso estudo, avaliamos todos os pacientes que aguardavam a correção cirúrgica
de sua deformidade, e não apenas os pacientes que receberam o tratamento. Reconhecemos
que o tempo de espera para a cirurgia e as consequências desse atraso podem ser subestimados.
No entanto, alguns desses pacientes podem nunca receber o tratamento desejado, e,
caso contrário, não seriam reconhecidos. Nosso estudo se soma à literatura que exige
uma melhora das políticas de saúde para dar conta das necessidades não atendidas do
cuidado cirúrgico a crianças e jovens brasileiros. Mais pesquisas sobre o tema são
necessárias para facilitar a formulação de políticas de saúde baseadas em evidências
no Brasil.
Conclusão
Neste estudo, com o tempo médio de espera de 13 meses para o tratamento cirúrgico
de deformidades da coluna vertebral de diversas etiologias, documentamos o agravamento
das deformidades e a deterioração da QLRS, o que está de acordo com estudos anteriores.
Isso representa um aumento evitável na carga da doença e no custo do tratamento. A
política de saúde pública para o manejo de pacientes com deformidades na coluna vertebral
no Brasil deve visar melhorar o acesso à assistência cirúrgica de crianças e jovens
para mitigar essa fardo evitável.