Palavras-chave artéria ulnar - lesão arterial - doppler - lúmen arterial - reparo arterial
Introdução
A lesão arterial do antebraço é responsável por 50% das lesões vasculares periféricas.[1 ]
[2 ] Essas lesões são comumente associadas a traumatismos penetrantes ou contusos/penetrantes.
Esse tipo de lesão é, em sua maioria, observado na população jovem do sexo masculino
e é causado por lesão com vidro.[3 ]
[4 ]
De modo geral, essas lesões são acompanhadas por danos em estruturas musculotendíneas.
Lesões ortopédicas e neurológicas geralmente são provocadas por traumatismo contuso.[5 ]
[6 ]
O diagnóstico de lesão arterial pode ser estabelecido à avaliação clínica; os sintomas
incluem hemorragia, isquemia e déficits neurológicos associados devido à proximidade
dos nervos às artérias. Exames complementares de imagem são indicados quando os sinais
clínicos não podem confirmar a existência ou localização de uma lesão arterial.[5 ]
[6 ]
Exames clínicos, como palpação do pulso arterial, teste de Allen e Doppler portátil,
podem ser usados para avaliação da perviedade arterial. A ultrassonografia com Doppler
pode ser usada para avaliação como técnica de diagnóstico por imagem.[5 ]
No teste de Allen, o examinador oclui as artérias radial e ulnar por compressão digital
e pede ao paciente que abra e feche a mão para drenar o sangue do arco palmar. O paciente
então relaxa a mão e o examinador para de comprimir a artéria a ser avaliada, observando
o tempo necessário para normalização da cor da palma da mão. O teste é considerado
positivo quando a artéria está pérvia, apresentando retorno à cor normal em menos
de 6 segundos.[1 ]
A ultrassonografia com Doppler tem precisão de cerca de 98% no diagnóstico de obstrução
arterial e é considerada um exame não invasivo e de baixo custo. É mais específica
do que sensível, além de demorada e dependente do examinador.[4 ]
Uma complicação associada ao reparo é a trombose do vaso, que leva ao insucesso do
tratamento. A taxa de perviedade após o reparo da artéria radial ou da artéria ulnar
com técnicas microcirúrgicas varia de cerca de 46 a 84%.[4 ] As maiores taxas de sucesso são observadas nas lesões reparadas em até 36 horas,
causadas por objetos pontiagudos (não por avulsão ou laceração), e na artéria radial.[4 ]
Devido ao risco de trombose já discutido nos reparos arteriais, decidimos realizar
exames clínicos e diagnósticos (ultrassonografia com Doppler) para a avaliação de
pacientes submetidos à cirurgia de emergência para verificar a perviedade arterial
e propor a avaliação clínica como alternativa à ultrassonografia com Doppler.
Material e Métodos
Pacientes com lesão da zona volar V do antebraço associada à lesão arterial foram
submetidos ao reparo primário da lesão e acompanhados com avaliação clínica e ultrassonográfica
no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto entre maio de
2018 e setembro de 2019.
Os pacientes submetidos à ligadura da artéria danificada ou com necessidade de interposição
do enxerto para reparo arterial foram excluídos.
Dos 33 pacientes selecionados, 15 não completaram o acompanhamento no ambulatório,
ou seja, não retornaram para as consultas e devidas avaliações. Obtivemos todas as
informações necessárias para o estudo de 18 pacientes, em sua maioria (72%) homens
jovens, com idade média de 30 anos (variação de 16–60 anos) e sem comorbidades.
Os pacientes retornaram para uma consulta de acompanhamento em 1 semana para avaliação
do curativo e em 4 semanas para avaliação da amplitude de movimento (caso apresentassem
lesão tendínea associada) e do fluxo arterial por meio do teste de Allen e Doppler
portátil ([Figs. 1 ] e [2 ]). Cerca de 12 semanas após a lesão, os pacientes foram avaliados à ultrassonografia
com Doppler e, aproximadamente 14 a 16 semanas após a lesão, foram reavaliados pelo
teste de Allen e exame com Doppler portátil.
Fig. 1 Dispositivo Doppler portátil usado para avaliação dos pacientes.
Fig. 2 Avaliação de um paciente com Doppler portátil.
O mecanismo de trauma mais frequente foi o traumatismo penetrante, responsável por
cerca de 78% dos casos; em 22% dos casos, o mecanismo foi o traumatismo contuso/penetrante,
como em acidentes de trabalho.
A sutura mais utilizada foi o polipropileno (88%), enquanto o náilon foi utilizado
em 12% dos casos, de acordo com a escolha do cirurgião.
Todos os reparos foram realizados com lupas, com aumento de até 3,5 vezes em 9 casos
e de 4 a 6 vezes em 9 casos. Todas as cirurgias foram realizadas de maneira idêntica
por dois cirurgiões que estavam no final do treinamento em cirurgia da mão e sob a
tutela do autor sênior.
Setenta e sete por cento dos pacientes foram submetidos à arteriorrafia em até 120
horas (5 dias) após a lesão, com tempo médio de 82 horas (cerca de 3 dias após a lesão).
A análise estatística descritiva dos dados foi realizada. O teste t de Student, o teste exato de Fisher[7 ] e o teste de McNemar foram usados. Todas as análises estatísticas foram conduzidas
com o software estatístico SAS 9.4 (SAS Institute Inc., Cary, NC, EUA).[7 ]
[8 ]
[9 ]
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos e todos
os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
Resultados
Na primeira avaliação clínica (cerca de 4 semanas após a lesão), 77% dos pacientes
apresentaram perviedade com base no teste de Allen; o pulso foi identificado com Doppler
portátil em 72% dos pacientes ([Figs. 1 ] e [2 ]).
Na segunda avaliação clínica (cerca de 14 a 16 semanas após a lesão), 61% dos pacientes
apresentaram perviedade com base no teste de Allen e a taxa de identificação de pulso
com Doppler portátil continuou em 72%, como observado 2 meses antes.
A avaliação por ultrassonografia com Doppler (cerca de 12 semanas após a lesão) indicou
uma taxa de sucesso da arteriorrafia de 88%. Em relação à perviedade final (avaliação
por ultrassonografia com Doppler) e ao mecanismo de trauma, todos os pacientes com
traumatismo penetrante apresentavam artérias pérvias; a taxa de sucesso foi de 85%
em pacientes com traumatismo contuso/penetrante (valor de p de 1,0).
Todos os pacientes submetidos à arteriorrafia com fio de náilon apresentavam artérias
pérvias à avaliação final. Entre os pacientes submetidos à arteriorrafia com polipropileno,
87% apresentaram perviedade à ultrassonografia com Doppler (valor de p de 1,0).
Todas as cirurgias foram realizadas com uso de lupa de 3,5× ou 4× de aumento durante
o reparo e não houve diferença entre os grupos (valor de p de 1,0) ou entre os cirurgiões.
Todos os pacientes submetidos ao reparo em 5 dias apresentavam artérias pérvias à
avaliação final. A taxa de perviedade em pacientes submetidos à arteriorrafia tardia
foi de 50% (valor de p de 0,03) ([Tabela 1 ]). Todos os pacientes com resultados positivos no teste de Allen à primeira avaliação
clínica (4 semanas) apresentaram artérias pérvias à avaliação ultrassonográfica final.
Dos pacientes com resultados negativos ao teste de Allen (oclusão arterial) à primeira
avaliação clínica, apenas 50% tinham artérias pérvias à avaliação final de ultrassonografia
com Doppler (valor de p de 0,03) ([Fig. 3 ]). Na segunda avaliação clínica (14–16 semanas), a concordância do teste de Allen
com a avaliação ultrassonográfica continuou em 100% nos pacientes com artérias pérvias
com base no teste de Allen, mas a taxa de concordância diminuiu para 28% para pacientes
com resultados negativos no teste de Allen (valor de p de 0,13) ([Fig. 4 ]).
Fig. 3 Comparação do primeiro teste de Allen com a última ultrassonografia.
Fig. 4 Comparação do segundo teste de Allen com última ultrassonografia.
Tabela 1
INTERVALO
DOPPLER
Total
Lúmen obstruído
Lúmen desobstruído
até 120 horas
0
0,00
14
77,78
14
77,78
> 120 horas
2
11,11
2
11,11
4
22,22
Total
2
11,11
16
88,89
18
100,00
O exame com Doppler portátil realizado durante a primeira avaliação clínica também
mostrou 100% de concordância com a avaliação ultrassonográfica em pacientes com artérias
pérvias e 40% de concordância quando não houve localização do pulso (valor de p de 0,06). Esses parâmetros foram mantidos na segunda avaliação clínica ([Fig. 5 ]).
Fig. 5 Comparação da primeira avaliação com Doppler portátil à última avaliação por ultrassonografia.
Discussão
O tratamento das lesões arteriais pode ser feito por ligadura, reparo primário (em
lacerações com menos de 2 cm e boa mobilidade dos cotos para suturas sem tensão) ou
reparo com interposição de enxerto (em lacerações com mais de 2 cm).[10 ]
[11 ]
Em caso de lesão das duas artérias (radial e ulnar), mesmo que a mão esteja bem perfundida,
o reparo arterial deve ser realizado para diminuir os sintomas de isquemia.[1 ]
[4 ] Alguns estudos demonstraram que a perda de perfusão pela artéria radial ou ulnar
para a mão pode causar intolerância ao frio, atrofia muscular e óssea e perda de força.[12 ] Isso confirma a importância do reparo arterial e da perviedade mesmo em lesões de
uma única artéria em uma mão bem perfundida.
Na presença de uma lesão neurológica associada, há um ganho importante na recuperação
quando a perviedade da artéria é alcançada após o reparo arterial. De acordo com a
literatura, 87% dos pacientes com lesão do nervo ulnar obtiveram recuperação neurológica
boa, adequada ou excelente em caso de perviedade da artéria ulnar; a taxa de bons
resultados diminuiu para 33% em pacientes com obliteração da artéria ulnar.[5 ]
[12 ]
As causas da trombose do vaso ainda não são bem compreendidas, mas acredita-se que
a pressão retrógrada no arco palmar provoca turbulência vascular e diminui o fluxo
na artéria reparada, levando à sua obstrução.[13 ]
[14 ]
Como a epidemiologia relatada por outros estudos, em nossa amostra, a maior prevalência
de lesões arteriais no antebraço foi observada em pacientes jovens do sexo masculino.
A ultrassonografia com Doppler é uma técnica não invasiva, rápida e precisa para avaliação
dos resultados do reparo vascular, além da taxa e das características do fluxo; em
nosso estudo, a taxa de sucesso de demonstração de artérias pérvias à ultrassonografia
com Doppler foi de 88%, índice superior ao relatado na literatura, de até 84%.[2 ]
[4 ] A maior taxa de sucesso ocorreu em pacientes com trauma penetrante (100%) e chegou
a 85% nos casos de trauma penetrante/contuso.
Ao analisarmos a perviedade final em relação ao tipo de sutura utilizada, o maior
índice de sucesso foi associado ao uso de náilon (100%) em comparação a polipropileno
(87%); entretanto, como apenas duas artérias foram reparadas com náilon (dois procedimentos),
esse achado tem pouca significância estatística (valor de p de 1,0). Segundo a literatura, a taxa de perviedade é semelhante entre os tipos de
suturas, com melhor biocompatibilidade associada ao polipropileno.[15 ]
Todos os reparos foram realizados com lupas cirúrgicas, e a literatura demonstra que
o uso de técnicas microcirúrgicas aumenta a taxa de sucesso da arteriorrafia.
Em relação ao intervalo entre a lesão e o reparo, obtivemos uma taxa de perviedade
de 100% nas artérias reparadas em 5 dias ([Fig. 6 ]), com diminuição significativa para 50% quando o intervalo era superior a 5 dias
e boa significância estatística para esses dados (valor de p de 0,03). Tivemos uma alta taxa de sucesso mesmo quando o procedimento foi realizado
depois de 36 horas, ao contrário do relatado na literatura.[4 ]
Fig. 6 A ultrassonografia com Doppler revela a artéria pérvia após a arteriorrafia.
Quanto às avaliações clínicas e ultrassonográficas, constatamos que tanto o teste
de Allen quanto o Doppler portátil foram confiáveis para determinar a perviedade arterial
ao indicarem resultados positivos (artéria pérvia), com alto valor preditivo positivo.
No entanto, os resultados da ultrassonografia com Doppler não foram bem correlacionados
aos resultados dos exames clínicos que mostram oclusão arterial ([Fig. 7 ]), gerando muitos falso-negativos. O tamanho de nossa amostra foi pequeno, mas propomos
que as avaliações clínicas são suficientes para avaliar o reparo vascular.[4 ]
Fig. 7 A ultrassonografia com Doppler revela uma artéria obstruída.
Concluímos que a avaliação clínica com Doppler portátil e o teste de Allen é confiável
ao mostrar uma artéria pérvia. No entanto, se a avaliação clínica revelar artérias
não pérvias, o resultado deve ser confirmado por ultrassonografia.