Palavras-chave
deformidades congênitas dos membros - dismetria - escoliose - fêmur
Introdução
A deformidade femoral mais comum é o fêmur curto congênito. Alguns autores descreveram
raros casos de bifurcação femoral distal, que é característica do complexo de Gollop-Wolfgang,
uma síndrome genética rara, geralmente associada a deformidades no membro ipsilateral,
tais como aplasia tibial, hipoplasia, ou pé equinovaro.[1]
[2]
[3]
[4] Houve ainda um caso de duplicação femoral proximal relatado em 2009; no entanto,
duplicações femorais totais nunca foram descritas na literatura.
Relato de Caso
Um paciente foi avaliado no setor de ortopedia da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação,
em Brasília, aos 35 dias de vida por uma aparência estética anormal e encurtamento
do membro inferior direito. Tratava-se do segundo filho de uma mãe saudável, fruto
de gravidez sem intercorrências, nascido a termo, e sem fatores de risco identificáveis
para anomalias congênitas. Não havia parentes conhecidos com deformidade nos membros
ou histórico genético relevante. O membro direito era 3 cm mais curto e levemente
mais fino, sendo a redução do comprimento concentrada no fêmur, ao passo que as tíbias
e pés eram simétricos e sem deformidades ([Fig. 1]). Quadris e joelhos apresentavam amplitude de movimento regular e simétrica ao lado
oposto. Não houve achados nos sistemas renal, cardiovascular, gastrointestinal e nervoso,
e não foram observadas malformações nos membros superiores. O menino apresentou um
desenvolvimento neuropsicomotor global normal, e começou a andar aos 14 meses.
Fig. 1 Paciente com 35 dias de vida, apresentando discrepância entre os membros, sendo o
direito mais curto.
Com 1 ano de idade, uma radiografia mostrou duplicação total do fêmur. Na região proximal,
o fêmur medial se articulava no quadril sem anormalidades, apesar de certo valgo do
colo femoral ([Fig. 2]), e o fêmur lateral estava no nível do trocanter maior. A epífise proximal da tíbia
direita era hipoplásica e inclinada na direção do fêmur medial. A fíbula não mostrava
deformidades evidentes. Uma avaliação radiográfica da coluna vertebral não mostrou
desvios ou anomalias congênitas.
Fig. 2 Radiografia com 1 ano de idade. (A) Quadril direito e fêmur direito em incidência anteroposterior (AP). (B) Fêmur distal e tíbia em incidência AP. (C) Fêmur distal e tíbia em perfil. (D) Quadril direito e fêmur em perfil.
O próximo encontro ocorreu aos 3 anos de idade; naquele momento, a disparidade nos
membros inferiores havia aumentado para 6 cm ([Fig. 3]). Observou-se perda na amplitude de flexão do joelho no lado direito, que estava
entre 0° e 70°. Enquanto caminhava, o paciente mantinha o pé direito na posição de
equino (redutível), e o joelho esquerdo, semiflexionado para compensar a discrepância.
Fig. 3 Imagens clínicas do paciente com 3 anos de idade, mostrando uma discrepância de 6 cm
no comprimento das pernas.
Radiografias mostraram a presença de epífise distal no fêmur medial, e a epífise proximal
da tíbia manteve seu desenvolvimento concentrado no lado medial. Usando o método multiplicador
de Paley para a previsão de comprimento aos 3 anos de idade, a discrepância esperada
seria de 13,4 cm na maturidade esquelética. O paciente se adaptou bem a uma compensação
de sapato de 5 cm. Após essa visita, o paciente não retornou pelos próximos vinte
anos.
Em agosto de 2016, aos 23 anos, o paciente buscou novo atendimento. Sua principal
preocupação era a discrepância dos membros inferiores e dor lombar esporádica. Ele
não usava nenhuma compensação, sendo observada rotação externa do membro às custas
do quadril/fêmur, e, durante a marcha, mantinha o joelho esquerdo semi-flexionado
e o pé direito em posição equina. Além disso, havia evidente escoliose com convexidade
à direita e obliquidade pélvica ([Fig. 4]). À direita, a amplitude de flexo-extensão do joelho era de 0° a 95°, e a do quadril,
de -20° a 45°, comparada a -30° a 90° no lado esquerdo.
Fig. 4 Imagens clínicas do paciente com 23 anos, mostrando uma discrepância de 17 cm no
comprimento das pernas.
Uma radiografia mostrou um colo femoral valgo à direita, com articulação normal do
quadril, um joelho com dois côndilos femorais separados que se articulavam com a tíbia
proximal, e uma patela hipoplásica ([Fig. 5]). O domo do tálus apresentava configuração esférica, articulando-se com uma superfície
côncava na tíbia, configurando tornozelo esferoide (
tipo ball and socket
). As medidas radiográficas em ortostatismo foram 67 cm (fêmur: 33 cm; tíbia: 34 cm)
à direita, e 84 cm (fêmur: 46 cm; tíbia: 38 cm) à esquerda, revelando discrepância
de 17 cm, semelhante à medida clínica.
Fig. 5 Radiografia em AP dos membros inferiores, aos 23 anos de idade. A imagem mostra o
colo femoral valgo à direita, com articulação normal do quadril, um joelho com dois
côndilos femorais separados se articulando com a tíbia proximal, e uma patela hipoplásica.
O domo do tálus tem aspecto esférico, e articula-se com uma superfície côncava na
tíbia, configurando tornozelo esferoide (tipo ball and socket). A medida do membro inferior direito é de 67 cm (fêmur: 33 cm; tíbia 34: cm), e,
do esquerdo, de 84 cm (fêmur: 46 cm; tíbia: 38 cm).
Uma ressonância magnética (RM) mostrou côndilos femorais com superfície irregular,
e cartilagem fina nas porções posterolateral do côndilo lateral e anteromedial do
côndilo medial. Existem contornos de menisco, que predominam nas porções anterior
dos compartimentos lateral e posterior do compartimento medial. Uma estrutura de sinal
baixo é identificada em topografia intra-articular com trajeto oblíquo, inserido-se
na face medial do côndilo femoral lateral e no platô tibial posterior.
Após receber uma ortoprótese de 16 cm, houve resolução da queixa de lombalgia.
Discussão
Este é o primeiro relato da literatura de uma duplicação total do fêmur levando à
formação de um joelho peculiar. Nas imagens, pode-se observar a evolução do quadro,
desde os primeiros dias após o nascimento até a idade adulta. Apesar das repercussões
clínicas da grande dismetria, o paciente apresentou um bom desenvolvimento muscular
global, e trabalha como auxiliar de pedreiro, função com exigência física elevada.
Após o uso da ortoprótese por três meses, o paciente referiu melhora completa do quadro
de lombalgia, apresentando-se completamente assintomático nesse momento. Por conta
da estrutura anatômica do joelho, os autores não consideraram qualquer abordagem cirúrgica,
pois um eventual alongamento ósseo poderia resultar em piora funcional significativa.
O tratamento com ortoprótese mostrou-se eficaz em restabelecer a qualidade de vida
do paciente.
Foram feitos poucos relatos de bifurcação distal do fêmur desde a primeira descrição
de Erlich em 1889. De maneira geral, ela ocorre associada a outras deformidades no
membro ipsilateral, como aplasia tibial, hipoplasia do pé, e pé equinovaro, e é característica
do complexo de Gollop-Wolfgang.[1]
[2]
[3]
[4] Podem também estar associada a malformações dos membros superiores.[5]
Há algumas teorias sobre a etiologia da bifurcação femoral isolada, e é provável que
seja heterogênea, como postulado por Bodurtha et al.[6] Neuropatia embriológica pode levar a uma ampla variedade de anormalidades, dependendo
dos nervos envolvidos e de sua respectiva inervação. O crescimento de um órgão ou
parte dele está relacionado ao seu suprimento nervoso, devido à sua função de coestimulador
do crescimento.
Ogden[3] relatou um caso de bifurcação femoral e hemimelia tibial ipsilateral. Ele propôs
que a bifurcação femoral resultava da divisão do mesoderma do botão embrionário que
origina o membro, resultando em um desenvolvimento independente de cada uma dessas
metades. Essa divisão pode ser produzida mecanicamente a partir da pressão de bandas
amnióticas, levando à duplicação total ou parcial do membro.
Osuji et al.[7] relataram o caso de um paciente que apresentava duplicação proximal do fêmur, e
que foi submetido a excisão de uma das cabeças e colo do fêmur associada a uma osteotomia
de derrotação, osteotomia pélvica tipo Salter, e tenotomia de adutores devido a anteversão
remanescente da cabeça femoral de 70°. Comparado ao caso atual, a excisão completa
do fêmur não era uma opção, pois a porção lateral formava o côndilo lateral do fêmur,
e a porção medial, a cabeça e o colo do fêmur.
Como esse paciente não foi submetido a intervenção cirúrgica, é possível observar
a história natural dessa malformação incomum ao longo de 23 anos.