Palavras-chave
artroplastia - artroplastia do joelho - comorbidades - complicações - joelho
Introdução
Com o aumento da expectativa de vida da população, as doenças degenerativas osteoarticulares
vêm se tornando mais prevalentes e a demanda por artroplastias de substituição vem
crescendo e pode chegar a 1,3 milhões de artroplastias por ano em 2030 nos Estados
Unidos.[1] Os avanços das técnicas cirúrgicas, o desenvolvimento de novos materiais, as melhoras
incrementais na seleção de pacientes e nos regimes de reabilitação permitiram que
as artroplastias de joelho apresentem melhores resultados funcionais e melhor qualidade
de vida após a cirurgia, assim como internações mais curtas.[1]
[2]
[3]
As complicações após artroplastias totais de joelho (ATJs) estão associadas a uma
maior morbidade, além de um aumento na permanência hospitalar, nos custos de tratamento
e piores resultados funcionais. Foram consideradas complicações precoces os eventos
ocorridos até 30 dias após o procedimento inicial que necessitam de reinternação,
prolongamento da internação ou terapias especificas. As complicações nas cirurgias
de artroplastia são diversas e muitas delas, de menor gravidade e que não retardaram
a alta ou que não necessitaram de intervenção especifica, não foram consideradas.[4] Dentre as complicações pós-operatórias, as infecções podem ser devastadoras, especialmente
as infecções profundas, gerando internações prolongadas e novos procedimentos ou cirurgias
de revisão.[5] Além destes, podem ocorrer solturas assépticas, artrofibrose, tromboembolismo venoso
e eventos cardiovasculares desencadeados pelo trauma cirúrgico, além dos relacionados
à internação hospitalar.[6]
Frequentemente, são utilizados parâmetros e escores para identificar os pacientes
de maior risco para ocorrência de complicações após o tratamento cirúrgico, como o
escore da Sociedade Americana de Anestesiologistas (ASA, na sigla em inglês). Comorbidades
clínicas, estimativas de tempo cirúrgico, idade e índice de massa corporal IMC também
são avaliados.[4]
[7]
[8]
[9] No entanto, novos estudos podem melhorar a capacidade do cirurgião de identificar
pacientes com maior risco de complicações pós-operatórias para que elas sejam manejadas
adequadamente com o uso de diferentes técnicas e estratégias.[10]
O objetivo primário do presente estudo foi identificar fatores de risco para o desenvolvimento
de complicações pós-operatórias precoces (até 30 dias após a cirurgia) em pacientes
submetidos a ATJ.
Método
No presente estudo observacional do tipo coorte retrospectiva, foram analisados os
registros médicos de pacientes submetidos a ATJ em nosso serviço. O presente estudo
foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa. Foram incluídos pacientes submetidos
a ATJ entre 1 de outubro de 2016 e 31 de agosto de 2018 com dados de prontuário completos.
Pacientes operados inicialmente em outros serviços que necessitaram de cirurgia de
revisão devido a complicações foram excluídos do estudo. Foram analisados dados demográficos
como gênero e idade, fatores relacionados ao tratamento como tempo de internamento,
lateralidade e tipo de implante, comorbidades clinicas prévias, escore ASA pré-cirúrgico,[11] classificação radiográfica da gonartrose,[12] deformidade inicial, uso de dreno suctor e ocorrência de complicações clínicas como
infecções do trato urinário, tromboembolismo venoso, injúria renal aguda e complicações
cardiovasculares, além de complicações cirúrgicas locais como artrofibrose, infecções
superficiais e profundas que necessitaram de desbridamento ou cirurgia de revisão,
além de dor refratária nos primeiros 30 dias após a cirurgia.[4] Foram considerados como dor refratária os casos nos quais o quadro álgico referido
pelo paciente retardou a alta hospitalar ou comprometeu a reabilitação fisioterápica
nos primeiros 30 dias após a cirurgia. Foram considerados casos de artrofibrose os
pacientes que cursaram com rigidez com amplitude de movimento de flexão ativa < 90°
e > 10° de contratura em flexão que necessitaram de internamento para a realização
de manipulação articular sob anestesia.[13] Complicações que ocorreram > 30 dias após a cirurgia foram consideradas tardias
e foram excluídas do presente estudo. Complicações de menor gravidade que não necessitaram
de intervenção e não retardaram a alta do paciente não foram incluídas no estudo.
A gravidade da gonartrose foi classificada conforme a classificação radiográfica de
Ahlback para osteoartrite do joelho.
Resultados
Um total de 157 pacientes foram selecionados para o estudo. Destes, 35 (22,3%) eram
do sexo masculino. A idade dos pacientes variou entre 35 e 84 anos (média 66,3; σ = 8,03).
A maioria dos pacientes era do grupo ASA II, e apenas 33 (21%) dos pacientes não apresentavam
comorbidades prévias. A comorbidade mais prevalente foi hipertensão arterial sistêmica,
seguida de diabetes mellitus e artrite reumatoide, conforme observado na [Tabela 1]. Todos os joelhos apresentaram algum grau de deformidade do eixo mecânico, sendo
a deformidade em varo a mais frequente (89,2%; n = 140) e joelhos valgos totalizaram 10,8% (n = 17). A gravidade da osteoartrite foi classificada segundo a classificação de Ahlback
e o grau III incluiu 3,2% (n = 5), grau IV 59,9% (n = 54) e grau V 36,9% (n = 58) dos pacientes. Os casos de bilateralidade de gonartrose totalizaram 88 pacientes
(56,1%). Nos casos de gonartrose unilateral, não houve diferença significativa de
lateralidade, conforme observado na [Tabela 2]. Os pacientes ficaram internados de 2 a 98 dias (média 5,38; σ = 7,62) e os pacientes
com mais comorbidades demandaram internações mais prolongadas (p = 0,026).
Tabela 1
|
Variáveis
|
|
n
|
%
|
Complicação (%)
|
Sem Complicação (%)
|
Significância (p)
|
|
Gênero
|
Feminino
|
122
|
77,7
|
101
|
(82,8%)
|
21
|
(17,2%)
|
0,992[a]
|
|
Masculino
|
35
|
22,3
|
29
|
(82,9%)
|
6
|
(17,1%)
|
|
|
Idade
|
< 70 anos
|
65
|
41,4
|
0
|
(0,0%)
|
65
|
(100,0%)
|
< 0,001[c]
|
|
≥ 70 anos
|
92
|
58,5
|
27
|
(29,3%)
|
65
|
(70,7%)
|
|
|
Escore ASA
|
I
|
32
|
20,4
|
28
|
(87,5%)
|
4
|
(12,5%)
|
0,881[a]
|
|
II
|
105
|
66,9
|
86
|
(81,9%)
|
19
|
(18,1%)
|
|
|
III
|
19
|
12,1
|
15
|
(78,9%)
|
4
|
(21,1%)
|
|
|
IV
|
1
|
0,6
|
1
|
(100,0%)
|
0
|
(0,0%)
|
|
|
Número de comorbidades
|
Nenhuma
|
33
|
21
|
29
|
(87,9%)
|
4
|
(12,1%)
|
0,045[b]
|
|
1
|
73
|
46,5
|
62
|
(84,9%)
|
11
|
(15,1%)
|
|
|
2
|
42
|
26,8
|
34
|
(81,0%)
|
8
|
(19,0%)
|
|
|
3
|
8
|
5,1
|
5
|
(62,5%)
|
3
|
(37,5%)
|
|
|
4
|
1
|
0,6
|
0
|
(0,0%)
|
1
|
(100,0%)
|
|
|
Hipertensão arterial
|
111
|
71,3
|
91
|
(82,0%)
|
21
|
(18,9%)
|
0,416[a]
|
|
Diabetes mellitus
|
36
|
22,9
|
26
|
(72,2%)
|
10
|
(27,8%)
|
0,055[a]
|
|
Cardiopatia
|
|
6
|
3,8
|
4
|
(66,7%)
|
2
|
(33,3%)
|
0,286[a]
|
|
Artrite reumatoide
|
8
|
5,1
|
6
|
(75,0%)
|
2
|
(25,0%)
|
0,414[a]
|
|
Obesos
|
|
4
|
2,5
|
4
|
(100,0%)
|
0
|
(0,0%)
|
0,466[a]
|
|
Hipotireoidismo
|
4
|
2,5
|
3
|
(75,0%)
|
1
|
(25,0%)
|
0,675[a]
|
|
Transtorno psiquiátrico
|
4
|
2,5
|
4
|
(100,0%)
|
0
|
(0,0%)
|
0,356[a]
|
|
Insuficiência renal
|
2
|
1,3
|
1
|
(50,0%)
|
1
|
(50,0%)
|
0,216[a]
|
|
Asma
|
|
2
|
1,3
|
1
|
(50,0%)
|
1
|
(50,0%)
|
0,216[a]
|
|
Hepatite C
|
|
1
|
0,6
|
1
|
(100,0%)
|
0
|
(0,0%)
|
0,648[a]
|
Tabela 2
|
Variáveis
|
|
n
|
%
|
Complicação (%)
|
Sem Complicação (%)
|
Significância (p)
|
|
Gonartrose
|
Bilateral
|
88
|
56,1
|
75
|
(85,20%)
|
13
|
(14,80%)
|
0,366
|
|
Unilateral
|
69
|
43,9
|
55
|
(79,70%)
|
14
|
(20,30%)
|
|
|
Classificação de Ahlback
|
III
|
5
|
3,2
|
3
|
(60,00%)
|
2
|
(40,00%)
|
0,258
|
|
IV
|
94
|
59,9
|
83
|
(88,30%)
|
11
|
(11,70%)
|
|
|
V
|
58
|
36,9
|
44
|
(75,90%)
|
14
|
(24,10%)
|
|
|
Deformidade
|
Varo
|
140
|
89,2
|
116
|
(82,90%)
|
24
|
(17,10%)
|
0,959
|
|
Valgo
|
17
|
10,8
|
14
|
(82,40%)
|
3
|
(17,60%)
|
|
|
Prótese
|
Primária
|
149
|
94,9
|
123
|
(82,60%)
|
26
|
(17,40%)
|
0,72
|
|
Revisão
|
8
|
5,1
|
7
|
(87,50%)
|
1
|
(12,50%)
|
|
|
Lateralidade da cirurgia
|
Esquerdo
|
86
|
54,8
|
71
|
(82,60%)
|
15
|
(17,40%)
|
0,929
|
|
Direito
|
71
|
45,2
|
59
|
(83,10%)
|
12
|
(16,90%)
|
|
|
Dreno suctor
|
Utilizado
|
140
|
89,2
|
27
|
(19,30%)
|
113
|
(80,70%)
|
0,047
|
|
Não Utilizado
|
17
|
10,8
|
0
|
(0,00%)
|
17
|
(100,00%)
|
|
Das 157 ATJs realizadas no período do estudo, 17,1% (n = 27) apresentaram alguma complicação pós-operatória ([Tabela 3]). A complicação mais frequente foi a artrofibrose (n = 10, 6,4%), seguida de infecção profunda (n = 7; 4,4%)
Tabela 3
|
Complicações
|
Frequência
|
Porcentagem
|
|
Sem complicações
|
130
|
82,8
|
|
Artrofibrose
|
10
|
6,4
|
|
Infecção profunda
|
7
|
4,4
|
|
Infecção superficial
|
4
|
2,5
|
|
Dor persistente
|
3
|
0,6
|
|
Fratura periprotética
|
1
|
0,6
|
|
Injuria renal aguda
|
1
|
0,6
|
|
Infecção urinária
|
1
|
0,6
|
|
Total
|
157
|
100,0
|
Os pacientes apresentaram em média 1,18 comorbidades (σ =0,84), e o número de comorbidades
foi relacionado à ocorrência de complicações. O grupo que apresentou complicações
pós-operatórias tinha mais comorbidades prévias (média de 1,5) em relação ao grupo
sem complicações (média de 1,1) (p = 0,04). Os pacientes mais idosos apresentaram mais comorbidades (p < 0,001) e cursaram com mais complicações (p = 0,045). Os pacientes com mais comorbidades necessitaram de internamentos mais prolongados
e apresentaram mais complicações, como pode-se observar na [Figura 1]. Apesar dos pacientes diabéticos apresentarem mais complicações pós-operatórias
(os ratio [OR] = 2,35) a correlação não chegou a ser significante (p = 0,055).
Fig. 1 Comparação entre número de comorbidades e média de dias internado por grupo de complicações.
Na maioria das cirurgias (89,2%, n = 140) foi utilizado dreno custo. Do grupo em que o dreno não foi utilizado (10,8%;
n = 17), nenhum paciente apresentou complicações pós-operatórias, e esta diferença
foi estatisticamente significativa (p = 0,047; OR = 8,48).
O tipo de implante, escore ASA, deformidade, classificação da gonartrose, tempo de
internamento e gênero não foram estatisticamente significativas para a ocorrência
de complicações.
Discussão
Diversos autores estratificam os pacientes pelo escore ASA. Apesar dos pacientes classificados
como ASA 3 ou superior apresentarem um maior risco de complicações, grande parte dos
pacientes são classificados como ASA 2, diminuindo a relevância do escore, pois ele
não contempla o número de comorbidades. Foi observado que o número de comorbidades
aumentou o risco de complicações e este dado deve ser considerado na avaliação pré-operatória
do paciente[1]
[6]
[7]
[8]
[14] Foi também observado que pacientes com maiores idades tendem a ter mais complicações,
e estudos recentes evidenciam que com > 80 anos são de risco para a ocorrência de
complicações. No entanto, a literatura sugere que a presença de comorbidades parece
ser mais relevante do que a idade isoladamente.[10] Dentre as comorbidades, vale notar que os pacientes portadores de diabetes mellitus
apresentaram mais complicações em geral segundo dados da literatura, especialmente
as complicações relacionadas com deiscência de feridas e infecções.[15]
[16] Observou-se no presente estudo que pacientes cardiopatas apresentaram maior risco
de desenvolver artrofibrose, provavelmente por dificuldade de realizar uma reabilitação
adequada, mas novos estudos devem ser realizados para investigas tal associação.[3]
[13] Nenhuma outra comorbidade foi capaz de alterar o risco de complicações em geral
com significância estatística independentemente, provavelmente devido ao pequeno tamanho
amostral dos subgrupos destas patologias na amostra observada.
Nenhum dos pacientes do grupo em que não foi colocado dreno suctor apresentou complicação,
o que foi estatisticamente significativo. Não é possível afirmar com o presente estudo
se o dreno é um fator de risco ou se este recurso não foi utilizado quando o cirurgião
se sentiu confortável em não colocar o dispositivo devido à boa hemostasia obtida
e tempo operatório curto em pacientes sem comorbidades significativas, e estes achados
devem ser considerados com cautela. A literatura sugere que o tempo operatório prolongado
aumenta a chance de infecção e cirurgias de maior morbidade aumentam a dor pós-operatória
e dificultam a reabilitação.[3]
A complicação mais frequente foi a artrofibrose, de acordo com observações de outros
autores. Sua incidência pode estar relacionada a uma reabilitação de má qualidade
e analgesia insatisfatória no pós-operatório, visto que estes fatores são classicamente
relacionados à gênese desta patologia. O tratamento da artrofibrose demanda reabilitação
fisioterápica agressiva e analgesia multimodal nos estágios iniciais, sendo necessária
reinternação para a realização de manipulação articular ou até mesmo cirurgias de
revisão em casos refratários. Novos estudos são necessários para elucidar se os pacientes
atendidos pelo sistema único de saúde têm dificuldade de acesso a reabilitação fisioterápica
adequada e acesso a analgesia multimodal.[3]
[13]
Não se observou correlação significativa entre ocorrência de complicações agudas e
obesidade, mas dados da literatura apontam que pacientes obesos, especialmente os
que têm IMC ≥ 40 estão mais susceptíveis a complicações como deiscência de feridas
e dificuldade na reabilitação.[2] A classificação radiográfica, deformidade e emprego de próteses de revisão não foram
significativos para a ocorrência de complicações na amostra estudada, mas a literatura
sugere que o tempo cirúrgico prolongado, esperado em casos de artrose mais grave com
falhas ósseas ou cirurgias de revisão, influencie negativamente os resultados, elevando
principalmente o risco de infecção.[14]
A duração da internação foi em média 5,3 dias. No entanto, há uma tendência global
a buscar tempos de internação menores para a redução de custo de internação e complicações
relacionados à colonização por bactérias hospitalares, e estudos recentes evidenciam
esta queda progressiva do tempo de internação na literatura internacional.[1] Ainda não há consenso se a realização do procedimento de forma ambulatorial reduza
a ocorrência de complicações.[17]
[18]
[19] Protocolos bem definidos de reabilitação e analgesia, além de equipe multidisciplinar
especializada parecem ser cruciais para o sucesso do procedimento de forma ambulatorial.
O presente estudo apresenta limitações, especialmente por ser unicêntrico e retrospectivo
baseado em dados de prontuário. O pequeno número de indivíduos em subgrupos específicos
dificulta a análise estatística. Outra possível limitação que deve ser considerada
é que, por se tratar de um centro de referência ortopédico de alta complexidade, casos
de deformidades mais graves e pacientes com comorbidades clínicas significativas sejam
referenciados para o mesmo, aumentando indiretamente o risco de complicações e tempo
de internação.
Conclusão
A idade e o número de comorbidades aumentaram o risco de complicações pós-operatórias
na população estudada. Novos estudos são necessários para elucidar se as comorbidades
influenciam mais nos resultados do que a idade dos pacientes isoladamente, visto que
os pacientes mais velhos tendem a ter um maior número de comorbidades e dificultam
a análise dos resultados. O escore ASA, amplamente utilizado para avaliar o risco
cirúrgico dos pacientes, é insuficiente para estratificar o risco de complicações
dos pacientes, visto que não contempla o número de comorbidades clínicas ou a idade
em sua avaliação. Escores mais abrangentes como o SF-36 ou outras ferramentas podem
se mostrar mais confiáveis para estimar o risco de complicações após ATJs, mas novos
estudos são necessários para elucidar este questionamento.