Palavras-chave fraturas do úmero - luxação do ombro - âncoras de sutura - técnicas de sutura
Introdução
A fratura da tuberosidade maior (FTM) do úmero corresponde a 20% das fraturas do úmero
proximal.[1 ] A despeito de sua menor prevalência, há grande relevância funcional para ombro,
pois é local de inserção dos músculos do supraespinal e infraespinal, responsáveis
pela flexão, abdução e rotação externa dessa articulação. Assim, a redução anatômica
da tuberosidade maior é fundamental para que haja uma boa evolução funcional do ombro.[2 ] Aproximadamente 10% a 30% das luxações evoluem com FTM,[3 ] e podem associar-se à lesão de Hill-Sachs.[4 ] A redução da luxação glenoumeral pode levar à redução concomitante da tuberosidade
maior. Um estudo[5 ] mostrou que apenas 4% dos pacientes que apresentaram FTM associada a luxação anterior
do úmero necessitaram de tratamento cirúrgico para correção do desvio da fratura.
O tratamento cirúrgico da tuberosidade maior é indicado se o desvio da fratura for
≥ 5 mm.[6 ] Recomenda-se mais o tratamento operatório a pacientes jovens ou que realizam atividades
com elevação do braço acima da cabeça.[7 ] O tratamento cirúrgico tem como objetivo uma redução anatômica entre a tuberosidade
maior e cabeça umeral em uma porção, em média, 9 mm distalmente ao aspecto mais proximal
da cabeça do úmero.[7 ] A redução inadequada pode causar síndrome do impacto secundária e/ou insuficiência
do manguito (tuberosidade alta), ou ruptura do tendão devido à tensão excessiva (tuberosidade
baixa).[6 ]
As vias de acesso mais utilizadas no tratamento das fraturas do úmero proximal são
a deltopeitoral e a anterolateral.[8 ] A via anterolateral é realizada lateralmente ao úmero proximal, e melhora a exposição
da tuberosidade maior.[9 ]
A técnica de osteossíntese pode ser influenciada pela morfologia da fratura: FTMs
com fragmento grande (tipo split ) podem ser tratadas com sistema de compressão composto de placa e parafuso. Para
a fixação de fragmentos cominuídos e pequenos, o uso da banda de tensão ou sutura
transóssea pode ser uma opção.[7 ]
Existem poucos estudos sobre o tratamento cirúrgico da FTM e a avaliação da influência
dessa lesão associada com luxação glenoumeral no resultado funcional do ombro pós-operatório.
O presente estudo teve como objetivo primário avaliar a função do ombro e a posição
final de consolidação das FTMs tratadas com sutura transóssea pela via anterolateral;
o objetivo secundário foi avaliar se a luxação glenoumeral associada poderia influenciar
nesses resultados.
Materiais e Métodos
Foi realizado um estudo retrospectivo com análise de prontuário dos pacientes submetidos
a osteossíntese da tuberosidade maior com suturas ósseas entre janeiro de 2010 e agosto
de 2019.
Os critérios de inclusão foram: pacientes maiores de 18 anos, com FTM (desvio maior
do que 5 mm), tratados cirurgicamente com sutura transóssea pela via de acesso anterolateral
e com seguimento mínimo de um ano de pós-operatório.
Os critérios de exclusão foram: fraturas do úmero proximal classificadas como Neer
III e IV, ou seja, quando há fratura da tuberosidade menor e ou do colo cirúrgico
ou anatômico associada a fratura da tuberosidade maior,[10 ] e presença de lesões prévias no ombro (lesão do manguito ou lesões neurológicas).
Os pacientes foram colocados em posição de cadeira de praia. Realizou-se a via de
acesso anterolateral[11 ] (Mackenzie) em todos os casos. Uma incisão de aproximadamente 5 cm foi realizada
inferiormente à extremidade anterior do acrômio, percorrendo a região lateral do braço.
O músculo deltoide foi dividido no mesmo sentido de suas fibras, entre a porção anterior
e média. Nos casos em que uma incisão de 5 cm foi suficiente para a osteossíntese,
o nervo axilar não foi isolado. Entretanto, nos casos em que uma exposição mais ampla
foi necessária, o nervo foi dissecado e protegido com um dreno de Penrose. Realizou-se
a perfuração óssea da tuberosidade maior (em casos com fragmento ósseo maior) ou sutura
pelos tendões do supraespinal ou infraespinal. Em seguida, realizou-se uma perfuração
na diáfise umeral e a sutura transóssea com fios inabsorvíveis 5 de Ethibond (Ethicon,
Inc., Bridgewater, NJ, Estados Unidos).
Foram obtidos os dados demográficos e do trauma por meio de registro em prontuário.
A avaliação funcional pós-operatória foi realizada com a aplicação da versão validada
para português brasileiro do Constant-Murley Shoulder Outcome Score.[12 ] A avaliação pré-operatória do nervo axilar foi realizada pelo teste de sensibilidade
do dermátomo correspondente. No pós-operatório, foram avaliadas as alterações do dermátomo
e a presença de subluxação inferior do úmero aos exames clínico ou radiográfico.
As análises radiográficas pré e pós-operatórias foram realizadas por meio das incidências
anteroposterior verdadeira, de perfil da escápula, e axilar. Calculou-se a distância
em milímetros entre o ápice da tuberosidade maior e a superfície articular do úmero
proximal (incidência anteroposterior verdadeira), o que resultou na posição final
de consolidação da fratura ([Figura 1 ]). A consolidação foi considerada completa quando não se observou o traço de fratura
em pelo menos duas incidências. As imagens radiográficas e as medidas foram realizadas
por meio do programa de radiologia digital Synapse (Fujifilm Healthcare, Lexington,
MA, Estados Unidos).
Fig. 1 Distância (mm) entre a FTM e a superfície articular do úmero.
A análise inferencial foi obtida pelos testes do Chi-quadrado ou Exato de Fisher para
as variáveis categóricas independentes (comorbidades, gênero, lado da fratura). Para
as numéricas, após a avaliação da normalidade pelo teste de Kolmogorov-Smirnov, foram
utilizados os testes t de Student (idade) ou de Mann-Whitney (distância até a posição final de consolidação
da fratura). Os dados foram analisados por meio do programa Statistical Package for
the Social Sciences (IBM SPSS Statistics for Windows, IBM Corp., Armonk, NY, Estados
Unidos), versão 27.0, e admitiu-se um nível de significância de 5%.
O estudo foi aprovado pelo comitê de ética institucional sob número CAAE 73273317.8.0000.5404.
Resultados
O estudo avaliou 59 pacientes, mas foram excluídos 33 que não preencheram os critérios
de inclusão, e ao final restaram 26 pacientes. Os principais motivos da exclusão foram
a presença de traço de fratura com extensão para a tuberosidade menor e perda de seguimento.
O tempo médio de seguimento dos pacientes foi de 15 ± 13 meses.
A idade média dos participantes foi de 39,72 ± 16,27 anos, com predomínio do gênero
masculino e do lado direito (73%). As principais comorbidades associadas foram diabetes
mellitus, drogadição, etilismo, tabagismo, epilepsia e hipotireoidismo, sendo a epilepsia
a de maior prevalência (11%). Os dados demográficos estão resumidos na [Tabela 1 ].
Tabela 1
Luxação
Total (n)
Não – n (%)
Sim – n (%)
Valor de p
Gênero
Masculino
20
10 (50%)
10 (50%)
0,05a
Feminino
06
6 (100%)
0 (0,0%)
Idade (anos)
Média ± desvio padrão
41,1 ± 15,3
42,5 ± 12,4
0,73b
Comorbidades
Sim
11
6 (54,5%)
5 (45,5%)
0,68a
Não
15
10 (66,6%)
5 (33,3%)
Lado fraturado
Dominante
19
14 (73,7%)
5 (26,3%)
0,69a
Não dominante
07
2 (28,6%)
5 (71,4%)
A associação de luxação glenoumeral com a FTM foi observada em 10 pacientes (38%).
Os homens tiveram mais luxação associada do que as mulheres (p = 0,05).
A pontuação média na escala de Constant-Murley foi considerada boa (82,5 ± 8,02 pontos).
A presença da luxação associada não alterou o resultado funcional ([Tabela 2 ]).
Tabela 2
Luxação
Não
Sim
Valor de p
Pontuação na escala de Constant-Murley: mediana (mínimo-máximo)
83,0 (72-95)
84,0 (78-92)
0,63c
Distância (mm) do ápice da tuberosidade maior até a superfície articular: mediana
(mínimo-máximo)
6,92 (2-13)
9,98 (7-16)
0,01c
Quanto à avaliação radiológica, o tempo médio até a consolidação foi de 2,2 ± 0,9
meses. A posição final média do ápice da tuberosidade maior foi de 9 ± 4,3 mm abaixo
da superfície articular da cabeça umeral. Não houve nenhum caso de redução pós-operatória
acima do nível da cabeça umeral. A avaliação funcional não sofreu influência da posição
final da FTM (p = 0,32).
Pacientes com luxação tiveram uma redução maior da tuberosidade maior (hiper-redução)
comparados com aqueles sem luxação (p = 0,01). Entretanto, a presença de luxação não influenciou na pontuação na escala
de Constant-Murley ([Tabela 2 ]).
Dois pacientes evoluíram com reabsorção da tuberosidade maior. Não houve casos de
infecção pós-operatória ou de lesão do nervo axilar pós-operatória. Somente em 1 caso
foi necessária dissecção e proteção do nervo axilar pois a redução da fratura exigiu
uma incisão maior do que 5 cm.
Discussão
Kim et al.,[13 ] em um estudo composto por 610 fraturas do úmero proximal com o intuito de comparar
epidemiologicamente a FTM (grupo I) e outros tipos de fratura do úmero proximal (grupo
II), concluíram que os pacientes mais jovens (com idade média de 42,8 anos) e homens
(67,8%) foram predominantes no grupo I, o que se assemelha ao presente estudo. Em
contrapartida, os outros tipos de fratura do úmero proximal apresentaram predomínio
na população mais idosa e feminina.[13 ] Neste mesmo estudo,[13 ] houve uma associação de luxação glenoumeral de 6,9% no grupo I e de 3,4% no grupo
II. Robinson et al.[14 ] analisaram 2.208 luxações anteriores traumáticas, e encontraram uma incidência de
34% de FTM associada, resultado muito semelhante ao do presente estudo (38%).
Não observamos relação entre presença de comorbidades, idade do paciente, e lateralidade
da fratura com a prevalência de luxação associada a FTM ([Tabela 1 ]). A prevalência de comorbidades é maior nos pacientes mais idosos, os quais evoluem
com padrão de fratura com acometimento de mais estruturas anatômicas associadas (colo
cirúrgico, fratura da tuberosidade menor) do que as fraturas isoladas da tuberosidade
maior.[13 ]
[15 ]
A pontuação na escala de Constant-Murley foi considerada boa em média, e o menor valor
foi de 72 pontos. Rouleau et al.[16 ] observaram um resultado considerado bom ou excelente em 80% a 100% dos pacientes.
Flatow et al.[17 ] encontraram bons resultados funcionais acompanhados de consolidação em sua série
de os casos.
Não observamos complicações relacionados ao nervo axilar. Apesar de, teoricamente,
o nervo axilar estar mais em risco na via de acesso anterolateral (incisões maiores
do que 5 cm) em comparação com a deltopeitoral, alguns autores[18 ]
[19 ] demonstram que essa abordagem é segura para essa estrutura, e os pacientes evoluem
com bom resultado funcional. Neste mesmo contexto, uma revisão sistemática,[20 ] de 24 artigos com 831 pacientes operados pela via anterolateral, observou baixa
incidência de lesão iatrogênica do nervo axilar e bom resultado funcional (pontuação
na escala de Constant-Murley de 75,2) após osteossíntese de fratura do úmero proximal.
A presença da luxação influenciou a qualidade da redução pós-operatória (p = 0,01) no presente estudo ([Tabela2 ]). Assim, nos pacientes com luxação, a mediana da distância do ápice da tuberosidade
maior até a superfície articular foi maior (9,98 mm) se comparada à dos casos com
ausência de luxação (6,92 mm). Uma hipótese para a essa diferença é que a presença
de lesão de Hill-Sachs pode alterar os parâmetros anatômicos e dificultar a redução
da tuberosidade maior.
Bhatia et al.[21 ] estudaram a FTM com fragmentos desviados e cominuídos tratados com redução aberta
e fixação com âncora, e observou uma consolidação do fragmento abaixo do nível articular
da cabeça umeral na maioria dos pacientes. No presente estudo, não se avaliou especificamente
a cominuição da fratura. Entretanto, acreditamos que a presença da lesão de Hill-Sachs
atua da mesma forma, pois altera os parâmetros anatômicos e dificulta a redução da
fratura.
Em nossos resultados, a avaliação funcional do ombro pela escala de Constant-Murley
total não sofreu influência da presença da luxação glenoumeral. Além disso, os vários
aspectos considerados nessa escala, como a rotação lateral e a força, não foram estatisticamente
diferentes nos pacientes que evoluíram com ou sem luxação associada à FTM. A posição
pós-operatória final da tuberosidade maior não influenciou a pontuação na escala de
Constant-Murley. Uma possível hipótese é a de que, como a tuberosidade ficou reduzida
abaixo da superfície articular do úmero, não houve um impacto subacromial secundário
e uma possível deterioração funcional. Hébert-Davies et al.[22 ] obtiveram uma pontuação média de 83 na escala de Constant-Murley, muito semelhante
à do presente estudo (84 pontos), em uma amostra de pacientes com FTM.
O presente estudo apresenta algumas fragilidades. A principal limitação foi o desenho
retrospectivo. Além disso, o número reduzido de pacientes e o tempo de seguimento
de um ano podem diminuir a taxa de identificação de complicações. Entretanto, a menor
prevalência das FTMs, principalmente as tratadas cirurgicamente, favorece a realização
de estudos transversais ou retrospectivos, a fim de se criar subsídios para novas
pesquisas prospectivas.
Conclusão
As FTMs submetidas ao tratamento cirúrgico com sutura transóssea pela via de acesso
anterolateral evoluíram com bom resultado funcional.
A presença de luxação glenoumeral dificultou a redução anatômica da tuberosidade maior.
Entretanto, não influenciou no resultado funcional do ombro dos pacientes.