Palavras-chave
consolidação da fratura - efeitos da radiação - fraturas espontâneas - radioterapia
Introdução
A radioterapia é uma importante ferramenta terapêutica principalmente para o controle
local de tumores. É utilizada no tratamento de diversas patologias oncológicas, contribuindo
para sua cura. No entanto, não é isenta de complicações. Os tecidos saudáveis expostos
ao campo de ação sofrem alterações fisiológicas que podem provocar complicações de
difícil resolução.[1]
Especificamente no tecido esquelético, a radioterapia pode causar necrose, osteíte
actínica, osteomielite e fraturas patológicas que podem evoluir para a ausência de
consolidação. Embora estas complicações sejam descritas com frequência, pouco se sabe
sobre sua etiologia e resolução.[1]
Alguns estudos abordam fraturas em ossos irradiados.[2]
[3] Tais pesquisas, porém, não descrevem o método utilizado para a irradiação e criação
das fraturas. Um modelo experimental deve ser reprodutível e padronizar tanto quanto
possível as variáveis a serem estudadas.
Nosso objetivo é descrever um modelo experimental para estudo de fraturas de fêmur
em ratos após exposição a radiação ionizante, demonstrando uma forma de aplicação
da substância para análise, o método de padronização da fratura e da irradiação e
a avaliação de sua eficácia com base em estudos radiográficos.
Método
O presente estudo começou após a autorização do Comitê de Ética no Uso de Animais
(CEUA). Esta autorização é identificada pelo protocolo 40/2014.
Nosso estudo utilizou 24 ratas Wistar fêmeas, com 3 meses de idade, que foram divididas
em 2 grupos de 12 animais. Os animais do grupo ESTUDO foram submetidos a uma sessão
de radioterapia e receberam 0,3 mL de solução fisiológica no local da fratura. O grupo
CONTROLE não foi submetido à radioterapia e recebeu 0,3 mL de soro fisiológico no
foco da fratura.
Qualquer procedimento que pudesse causar sofrimento físico ou emocional aos animais
foi realizado sob anestesia. A anestesia foi composta pela administração intraperitoneal
de cloridrato de cetamina em dose de 60 mg/kg e cloridrato de xilazina em dose de
15 mg/kg.
Irradiação
A irradiação foi realizada no Laboratório de Irradiação Gama do Centro de Desenvolvimento
da Tecnologia Nuclear/Comissão Nacional de Energia Nuclear (LIG–CDTN/CNEN). O laboratório
utiliza um irradiador panorâmico multiuso de categoria II, fabricado por MDS Nordion
(Canadá), modelo/número de série IR-214 e tipo GB-127, equipado com fonte de armazenamento
a seco de Cobalto-60 (60Co) com atividade máxima de 2.200 TeraBequerel (TBq) ou 60.000
Curio (Ci) ([Fig. 1])
Fig. 1 Método de irradiação. (A) Planta tridimensional da sala do colimador; (B) Fonte de
cobalto-60; (C) Blindagens de chumbo para direcionamento do feixe radioativo; (D)
Animal anestesiado e posicionado para o procedimento.
O foco do feixe radioativo foi direcionado para a área do fêmur direito. A dose de
radiação, com exposição da área a ser estudada à fonte de 60Co, foi de 18 Gy(2), em
dose única em profundidade de 1,5 cm. Os animais foram colocados a 30 cm de distância
da fonte radioativa e expostos por 77 segundos.
Como esse é um irradiador panorâmico, a radiação foi direcionada para o fêmur direito
das ratas por meio de blindagens de chumbo desenvolvidas especificamente para esta
finalidade. Estas blindagens possuíam orifícios de 5 cm de diâmetro que direcionavam
a radiação exclusivamente para o fêmur direito dos animais ([Fig. 1]).
Fratura da Diáfise do Fêmur
Duas semanas após a irradiação, os animais foram submetidos a fratura diafisária do
fêmur direito. Para padronizar o tipo de fratura, usamos uma guilhotina desenvolvida
especificamente para este fim, que produziu uma fratura diafisária transversa ou oblíqua
curta, semelhante em todos os animais ([Fig. 2]).
Fig. 2 Guilhotina desenvolvida para fraturas diafisárias do fêmur. À esquerda, toda a estrutura
pode ser vista. No centro, um detalhe do peso no final do trilho. À direita, a ponta
da guilhotina com simulação da geração de fraturas.
A guilhotina era composta por um peso de aço inoxidável de 1,3 kg que percorria um
trilho de 50 cm, acelerado pela força da gravidade. O impacto era amortecido por uma
mola, também em aço inoxidável, com 6,0 cm de altura. O impacto era transmitido ao
fêmur dos animais pela lâmina da guilhotina, que possuía ponta romba. O fêmur era
posicionado sobre suportes, também de aço, espaçados a cada 2,5 cm.
Fixação da Fratura Femoral
Os animais foram anestesiados e submetidos a redução cirúrgica da fratura diafisária
do fêmur. Depois da anestesia, realizamos a tricotomia do sítio cirúrgico e a assepsia
cutânea com solução alcoólica de digluconato de clorexidina a 5%. O acesso cirúrgico
longitudinal foi realizado na face lateral da coxa, com abertura da pele e da musculatura
da coxa do animal. A abertura da musculatura expôs a fratura.
A fratura foi fixada com fio de Kirschner de 1 mm de diâmetro e fechada por sutura
em planos. Primeiro, fechamos a musculatura e, depois, procedemos à sutura da pele.
A seguir, fizemos uma infiltração com 0,3 mL de solução de cloreto de sódio a 0,9%.
A solução fisiológica pode substituir qualquer substância a ser estudada. A [Fig. 3] traz um esquema do procedimento cirúrgico.
Fig. 3 Exemplo do procedimento cirúrgico realizado em animais. (A) Animal anestesiado, tricotomizado
e preparado para o procedimento cirúrgico. (B) Representação esquemática do acesso
cirúrgico nos planos cutâneo e muscular. (C) Representação esquemática com exposição
do foco de fratura e fixação com fio intramedular liso. (D) Representação esquemática
da ferida após o fechamento e administração de solução fisiológica.
Estudo Radiográfico
Três semanas após a fratura, os animais foram submetidos a eutanásia e remoção do
fêmur direito. Os exames de imagem foram compostos por radiografias digitais. O fêmur
direito retirado foi colocado em solução de formalina tamponada a 10% por 5 dias e,
depois, radiografado.
As radiografias digitais foram realizadas em equipamento radiográfico (Raiotécnica,
modelo 30 × 60, série 2577) acoplado a um processador AGFA (modelo CR30X). As imagens
foram impressas por uma impressora OKI (modelo C911 MDI). As radiografias foram realizadas
em dose de 40 quilovolts (kV), 2 mAs a 1 m de distância da fonte de raios X, em ambiente
climatizado a 20°C.
As radiografias foram avaliadas quanto à presença da fratura, ao seu grau de cominuição,
à sua localização e à sua evolução até a consolidação óssea. Fraturas cominutivas
ou segmentares seriam excluídas e apenas fraturas simples, transversas ou oblíquas
curtas foram incluídas no estudo.
A classificação de Lane-Sandhu[4]
[5] foi utilizada para medir o grau de consolidação das fraturas à radiografia: (0)
ausência completa de consolidação; (1) início da formação de calos ósseos; (2) início
da ossificação; (3) início do desaparecimento da linha de fratura; (4) consolidação
completa da fratura. A [Fig. 4] discrimina essa classificação.
Fig. 4 Classificação radiográfica da consolidação de fraturas em ratos. (A) Exemplo radiográfico
de consolidação. (B) À esquerda: radiografia do animal número 20, classificada como
tipo “1”, ou seja, consolidação insuficiente. Ao centro: radiografia do animal número
4, classificada como tipo “3”, ou seja, consolidação suficiente. À direita: peça anatômica
no momento da radiografia.
Para fins estatísticos, os tipos 0 e 1 foram agrupados como “consolidação insuficiente”
e os tipos 2, 3 e 4, como “consolidação suficiente”.
Análise Estatística
Os dados foram comparados com IBM SPSS Statistics for Windows versão 22 (IBM Corp.,
Armonk, NY, EUA). A comparação foi feita com o teste de qui-quadrado e correção de
Fisher. Estabelecemos um poder de teste de 80%, com intervalo de confiança (IC) de
5%. O valor-p foi determinado como < 0,05.
A avaliação da eficácia do método no estudo de fraturas em ossos irradiados foi baseada
na comparação da consolidação entre os grupos. Um grupo com maior número de amostras
com consolidação ineficiente indica que o método é eficaz. A análise do método de
padronização das fraturas foi baseada na frequência de obtenção de fraturas cominutivas,
pois queríamos fraturas transversais ou oblíquas curtas.
Resultados
A cicatrização da fratura, avaliada por exames radiográficos, foi mais eficiente em
ossos não expostos à radiação ionizante (p = 0,012). No grupo ESTUDO, dos 12 animais, 10 apresentaram consolidação insuficiente.
No grupo CONTROLE, três dos 12 animais apresentaram consolidação insuficiente ([Tabela 1], [Fig. 5]).
Fig. 5 Exemplos de radiografias de animais de cada grupo. À esquerda: radiografia típica
dos animais do grupo ESTUDO, classificada como tipo “0” (insuficiente). À direita:
exemplo de imagem típica do grupo CONTROLE, classificada como tipo “3” (suficiente).
Tabela 1
Avaliação radiográfica
|
Estudo
|
Controle
|
valor-p
|
Insuficiente
|
10 (83,3%)
|
03 (25,0%)
|
0,012
|
Suficiente
|
02 (16,7%)
|
09 (75,0%)
|
|
Todas as fraturas atenderam aos critérios de serem simples, diafisárias, transversas
ou oblíquas curtas.
Discussão
As fraturas são complicações frequentes da radioterapia. Este assunto, no entanto,
é pouco estudado. A criação de um modelo experimental reprodutível tem grande potencial
para ajudar a preencher esta lacuna na literatura. O desenvolvimento de um método
acessível, padronizando variáveis como tipo de fratura, dose e direção do feixe de
irradiação, processamento da amostra e sua disponibilidade para estudos de imagem
ou histologia são importantes para o estudo deste problema.
O animal ideal para estudos experimentais de fraturas de ossos longos é o rato (Rattus norvegicus).[6] O rato é capaz de reproduzir o processo de cicatrização do tecido ósseo humano e
tem ossos longos o suficiente para estudos baseados em um modelo experimental padronizado.
No nosso estudo, utilizamos fêmeas Wistar com 3 meses de idade. Estes animais têm
ossos longos de tamanho suficiente para a manipulação adequada em laboratório.
No nosso estudo, observamos diferenças na consolidação das fraturas ao comparar os
grupos. Os animais do grupo ESTUDO tiveram consolidação menos eficiente do que os
do grupo CONTROLE. Como a única diferença entre eles é a exposição do fêmur à radiação
ionizante, este resultado sugere que o método é eficiente para a reprodução experimental
da fratura que ocorre em ossos irradiados.
Existem algumas alternativas à exposição dos tecidos à radiação ionizante. A maioria
das publicações usa um aparelho específico de radioterapia hospitalar. No nosso modelo,
utilizamos um irradiador panorâmico com fonte de Co60 e direcionamento do feixe radioativo
por blindagens de chumbo. Desta forma, usamos o mesmo isótopo radioativo que a maioria
dos aparelhos de radioterapia. A eficácia deste método foi comprovada pela diferença
relevante na consolidação das fraturas nos grupos ESTUDO e CONTROLE em exames radiográficos.
Nossos resultados também indicam a eficácia dos parâmetros empregados. Destacamos
a exposição única e a dose de radiação utilizada. Utilizamos uma dose única de 18
Gy em profundidade de 1,5 cm. Esta foi a mesma dose usada por Nicholls et al.,[2] também com eficácia comprovada.
Uma importante limitação deste modelo experimental é sua diferença em relação à patologia
observada em humanos. Aqui, apresentamos uma forma de estudar a consolidação de uma
fratura em um osso previamente irradiado, que é diferente de uma fratura patológica
pós-radioterapia. Em humanos, a fratura se deve à falha mecânica, provavelmente relacionada
a fatores como necrose tecidual e resposta inflamatória local, e ocorre após um período
longo.[1]
[7]
[8]
A metodologia aplicada para a simulação de fraturas é um ponto importante do presente
estudo. Outros modelos publicados não descrevem como as fraturas foram padronizadas.[2]
[9]
[10] Parece-nos relevante que as fraturas tenham o mesmo padrão. Conseguimos esta padronização
usando uma guilhotina projetada especificamente para isto. Todas as fraturas obtidas
foram diafisárias transversas ou oblíquas curtas, o que demonstra a boa padronização
de seu tipo. Portanto, recomendamos o uso deste método para a padronização da fratura
do fêmur.
O tratamento cirúrgico das fraturas foi composto por redução aberta e fixação intramedular
com fio de Kirschner de 1,0 mm de espessura. Em nossa experiência, a fixação intramedular
retrógrada é eficiente para a estabilização da fratura e promove sua consolidação.
O intervalo entre a fratura e a eutanásia dos animais foi de 3 meses. Este tempo é
suficiente para a consolidação inicial da fratura. Acreditamos que este seja o período
ideal para avaliação dos resultados em ratos.
Após o fechamento da ferida cirúrgica, infiltramos 0,3 mL de solução fisiológica no
sítio da fratura. Esta infiltração no foco da fratura pode ser usada em estudos para
análise da eficácia de qualquer composto.
Optamos por avaliar os desfechos com base em exames radiográficos digitais. Existem
outras formas de avaliação das amostras obtidas.[3]
[11]
[12] Estas amostras podem ser descalcificadas e colocadas em blocos de formol para estudo
histológico caso esta seja a opção escolhida.
Há algumas opções para o estudo experimental de fraturas em ossos irradiados. A utilização
de uma fonte de cobalto-60 direcionada por blindagens de chumbo para o ponto a ser
estudado, com padronização da dose de radiação, o método de geração da fratura, sua
fixação e a forma de administração do material a ser estudado são pontos centrais
para a redução de fatores de confusão. Aqui apresentamos um método eficiente e reprodutível
para este fim.