Palavras-chave artroplastia do joelho - complicações pós-operatórias - injeções intra-articulares
- infecções relacionadas à prótese
Introdução
A infecção articular periprotética (IAP) representa uma complicação grave com incidência
variando de 1 a 4% após artroplastias primárias, contudo, podendo alcançar 5 a 15%
nos pacientes de alto risco e naqueles submetido à cirurgia de revisão. Assim, a infecção
periprotética é, atualmente, em muitas séries, a principal causa de revisão da moderna
artroplastia do joelho.[1 ]
[2 ]
[3 ]
O diagnóstico precoce e a identificação do patógeno são fundamentais para o tratamento
adequado e erradicação da infecção. Entretanto, o diagnóstico de IAP, frequentemente,
representa um desafio, devido às diferentes formas de apresentação clínica e à inexistência
de um único teste clínico capaz de confirmar ou excluir essa complicação. Assim, desde
2011, diversas sociedades propuseram critérios para a padronização do diagnóstico
de IAP.[4 ]
[5 ]
[6 ]
Esses critérios permitem a confirmação diagnóstica de infecção periprotética mesmo
em pacientes com cultura microbiológicas negativas. Entretanto, a identificação do
patógeno é, ainda hoje, princípio fundamental para o tratamento destas infecções.[5 ]
[7 ] Dessa forma, o objetivo deste estudo é caracterizar o perfil microbiológico das
infecções periprotéticas do joelho tratadas em um hospital terciário brasileiro.
Material e métodos
Participantes do estudo
Todos os pacientes submetidos à cirurgia de revisão de artroplastia total do joelho
(RATJ), no período compreendido entre novembro de 2019 e dezembro de 2021, e que tiveram
o diagnóstico de infecção periprotética confirmado de acordo com critérios do International Consensus Meeting (ICM) 2018 foram incluídos no estudo. Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa
(no 20309419.0.0000.5273), os voluntários confirmaram a sua participação no estudo
após assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.
Os critérios de exclusão são demonstrados na [Tabela 1 ].
Tabela 1
Critérios de exclusão
- Recusa em assinar o TCLE
- Revisão de artroplastia unicompartimental
- Reimplantes em pacientes com espaçadores (2o tempo)
- Impossibilidade de coleta de líquido sinovial
- Informações insuficientes para confirmação ou exclusão diagnóstico infecção
- Utilização de medicações antibióticas no período de 15 dias prévios à cirurgia
- Portadores de outras doenças infecciosas bacteriana ativas
- Portadores de síndrome de imunodeficiência adquirida
Após a aplicação dos critérios de exclusão, permaneceram no estudo 62 pacientes com
diagnóstico de infecção periprotética do joelho.
Procedimento cirúrgico e coleta das amostras biológicas
No dia anterior à cirurgia, foi coletada amostra de sangue periférico de todos os
pacientes para exames sorológicos da rotina pré-operatório da instituição, a qual
incluía velocidade de hemossedimentação (VHS), proteína C reativa (PCR) e D-dímero.
Todos os pacientes foram submetidos à anestesia raquidiana associada a bloqueio de
nervo periférico. Todos os procedimentos foram realizados sob isquemia com o manguito
pneumático inflado com pressão de 100 mmHg superior à pressão arterial sistólica.
Após exsanguinação do membro e colocação dos campos cirúrgicos, foi realizada a coleta
de líquido sinovial (LS) por artrocentese com agulha 20G, isto é, sem acesso cirúrgico
e, também, sem bloqueio anestésico local adicional, com objetivo de minimizar a possibilidade
de contaminação do líquido sinovial por sangue ou agentes contaminantes ([Fig. 1 ]). Nos casos em que não foi possível a coleta de LS nesse momento, uma segunda tentativa
foi realizada por visualização direta após realização do acesso cirúrgico parapatelar
medial.
Fig. 1 Procedimento cirúrgico e coleta de materiais biológicos. (A) Radiografia anterior-posterior
do joelho direito evidenciando falha da artroplastia total do joelho; (B) Após a colocação
dos campos estéreis foi realizada a artrocentese antes da incisão cirúrgica para evitar
contaminação do líquido sinovial por sangue, (C) Coleta de amostras de tecido ósseo
periprotético para análise microbiológica, (D) Coleta de membrana periprotética para
análise histopatológica.
Alíquotas de 1 a 2 mL de LS foram acondicionadas em tubo de coleta de sangue à vácuo,
contendo ácido etilenodiaminotetracético (EDTA) e enviadas, imediatamente, para o
laboratório, para a realização da contagem total de células brancas e identificação
do percentual de polimorfonucleares. A citometria global e específica do LS foi realizada
por método automatizado em aparelho Abbott Cell Dyn 3700 SL (Abbott Laboratories,
Chicago, IL, EUA).
Alíquotas de 3 a 5 mL de LS foram inoculadas em um tubo de hemocultura para aeróbio
e, caso possível, 3 a 5 mL do LS foram, também, inoculados em um tubo de hemocultura
para anaeróbio. Os tubos de hemocultura foram, imediatamente, enviados para realização
de cultura microbiológica. Todas as amostras foram cultivadas por 14 dias.
Após a remoção dos componentes protéticos, foram coletadas as seguintes amostras para
análise microbiológica: três amostras de tecido ósseo femoral, três amostras de tecido
ósseo tibial e um fragmento de membrana periprotética. Nos casos em que não foi possível
a coleta de fragmento de membrana periprotética, foi coletada uma amostra de partes
moles peri-implantes. Para a análise histopatológica foi coletada uma amostra de membrana
periprotética do fêmur e uma amostra da membrana periprotética da tíbia. Antibioticoterapia
somente foi iniciada após a coleta de todas as amostras biológicas.
Os fragmentos ósseos foram acondicionados em tubos estéreis aos quais foi adicionado
1 mL de soro fisiológico a 0,9%. As amostras foram, imediatamente, enviadas ao para
realização de cultura microbiológica. Todas as amostras foram cultivadas por 14 dias.
Para o exame histopatológico, um ou dois fragmentos de membrana periprotética foram
coletados e armazenados em frasco contendo formol a 10%. As membranas foram classificadas
de acordo com os parâmetros propostos por Morawietz et al.[8 ]
Definição do diagnóstico e formação dos grupos
A confirmação do diagnóstico de IAP foi realizado de acordo com o critério do ICM
2018: i) identificação de crescimento do mesmo patógeno em duas ou mais culturas de
tecidos periprotéticos ou ii) presença de fístula, são consideradas critérios maiores
e, quando presentes, são suficientes para a confirmação do diagnóstico. Além disso,
foram considerados infectados os pacientes que apresentaram nota igual ou maior que
6, quando avaliados pelo algoritmo proposto ([Tabela 2 ]).
Tabela 2
Critérios maiores (pelo menos um positivo)
Decisão
Duas culturas positivas para o mesmo micro-organismo
Infectado
Fístula
Diagnóstico pré-operatório
Critérios menores
Pontuação
Decisão
Soro
PCR ou d-dímero elevado
2
≥ 6 infectado
VHS elevado
1
Líquido sinovial
Contagem de leucócitos elevada ou esterase leucocitária positiva
3
2–5 possivelmente infectado*
Alfa defensina positivo
3
0–1 não infectado
% PMN elevado
2
PCR elevado
1
Diagnóstico intraoperatório
Critérios pré-operatórios inconclusivos ou ausência de LS
Pontuação
Decisão
Escore pré-operatório
–
≥ 6 infectado
Histopatológico positivo
3
4–5 possivelmente infectado
Presença de purulência
3
Uma cultura positiva
2
≤ 3 não infectado
Análise estatística
As análises descritivas para os dados quantitativos foram analisadas e apresentadas
na forma de médias, acompanhadas dos respectivos desvios padrão (DPs), medianas, valores
mínimos e máximos. As variáveis categóricas foram expressas através de suas frequências
e porcentagens. As variáveis categóricas foram analisadas com o teste de Qui Quadrado
ou Exato de Fisher quando necessário. Todas as análises foram realizadas usando os
programas Med Calc e GraphPad Prism (GraphPad Software Inc., La Jolla, CA, EUA). O
valor de p foi considerado significativo quando menor que 0,05.
Resultados
População de estudo
Após avaliação dos dados clínicos e exames laboratoriais, 84 pacientes submetidos
à cirurgia de RATJ foram avaliados quanto ao diagnóstico de IAP de acordo com os critérios
propostos pelo International Consensus Meeting (ICM), em 2018. Dessa forma, 62 pacientes foram diagnosticados com IAP e incluídos
no estudo. As características demográficas destes pacientes estão resumidas na [Tabela 3 ].
Tabela 3
Variável
Infecção
n
62
Sexo , n (%)
Feminino
23 (37%)
Masculino
39 (63%)
Idade (anos),
média (±DP)
68,9 (±8,7)
IMC (kg/m2 ),
média (±DP)
27,4 (±9,9)
Diabetes,
n (%)
12 (19%)
Doença inflamatória,
n (%)
11 (18%)
Implante prévio,
n (%)
Prótese primária
38 (61%)
Revisão
18 (29%)
Frequência de eventos característicos de infecção,
n (%)
Fístula
16 (25%)
≥ 2 culturas positivas
46 (74%)
Tempo entre a colocação da prótese e revisão,
n (%)
≤ 3 meses
23 (37%)
3–12 meses
9 (15%)
> 12 meses
30 (48%)
Os pacientes do grupo infecção foram avaliados segundo a classificação temporal (30
dias), conforme a [Fig. 2 ].
Fig. 2 Distribuição dos pacientes portadores de IAP aguda e crônica.
Identificação dos patógenos
As culturas microbiológicas apresentaram resultados positivos, que permitiram a identificação
dos patógenos, em 77% (48 pacientes) dos casos. Culturas monomicrobianas foram identificadas
em 79% e polimicrobianas em 21% dos casos. Infecção articular periprotética com culturas
negativas ocorreram em 23% dos pacientes.
Em 24% das culturas foram identificados patógenos gram negativos. Considerando apenas
as infecções monomicrobianas, as infecções causadas exclusivamente por germes gram
positivos ocorreram em 86% dos pacientes e gram negativos em 14%. A bactéria mais
frequentemente identificada nas culturas microbiológicas de tecidos periprotéticos
e LS foi a Staphylococcus aureus , presente em 26% dos pacientes com infecção periprotética. As bactérias identificadas
nas culturas microbiológicas dos pacientes com IAP e a frequência com que foram identificadas
estão descritas na [Fig. 3 ].
Fig. 3 Distribuição dos patógenos identificados em cultura.
Quando avaliados apenas os pacientes que apresentaram resultados positivo na cultura
microbiológica, identificamos que as infecções polimicrobianas foram, significativamente,
mais frequentes nos pacientes com infecção precoce, ou seja, aquelas que ocorreram
até 3 meses após a cirurgia, em relação aos pacientes que apresentaram infecções intermediárias
ou tardia (p = 0,02) ([Fig. 4 ]). A distribuição de pacientes com IAP com culturas negativas foi similar entre as
infecções agudas, intermediária e crônica.
Fig. 4 Frequência de infecções mono ou polimicrobianas em relação ao tempo entre a cirurgia
prévia e a revisão da ATJ.
Discussão
Embora o risco de infecção periprotética pós artroplastia de joelho seja baixo, o
aumento exponencial no número de ATJs realizadas anualmente torna esta complicação
um problema importante e cada vez mais frequente.
Os critérios para o diagnóstico de infecção periprotética de acordo com o International Consensus Meeting de 2018 possibilitam a confirmação diagnóstica mesmo na ausência de culturas positivas;
entretanto, a identificação dos patógenos permanece sendo princípio fundamental para
o diagnóstico e adequado tratamento das doenças infecciosas bacterianas, assim como
para a escolha dos antibióticos mais apropriados. Neste contexto, um dos grandes desafios
relacionados aos ensaios microbiológicos é a sensibilidade, uma vez que é reportado
que a cultura microbiológica falha em identificar o agente causador da infecção periprotética
em 5 a 45% dos casos.[9 ]
[10 ]
[11 ] As culturas negativas impõem enorme desafio para o tratamento da infecção periprotética,
uma vez que a falta de identificação do patógeno conduz ao uso empírico de antimicrobianos
com potencial não cobertura do verdadeiro agente infectante e são associados a 4,5
vezes maior risco de reinfecção quando comparados com casos de culturas positivas.[12 ]
[13 ]
[14 ] Dessa forma, nossos resultados evidenciam o perfil microbiológico nas infecções
periprotéticas do joelho tratadas em um hospital terciário brasileiro especializado
em cirurgia ortopédica de alta complexidade.
Em nossa casuística, o patógeno mais frequentemente identificado foi o S. aureus , seguido por Staphylococcus coagulase negativa . Tal resultado é consistente com o reportado em outras séries, nas quais as infecções
causadas por estes patógenos podem representar de 50 a 60% dos casos.[15 ]
[16 ] As infecções polimicrobianas representaram 21% dos casos, sendo mais comuns nas
infecções precoces. Cobo et al.[17 ] encontraram resultado similar, com incidência de 32% de infecções polimicrobianas
em indivíduos com IAP precoce. Outros estudos corroboram este achado, e sugerem que
essa maior frequência de infecções polimicrobianas em infecções precoces possivelmente
reflete a inoculação de múltiplos microrganismos no momento da cirurgia ou disseminação
contígua a partir da incisão cirúrgica.[15 ]
[18 ]
[19 ]
Em um estudo conduzido por Tan et al.,[10 ] a incidência suspeitada de infecção periprotética com cultura negativa foi de 22%;
entretanto, obedecendo os critérios diagnósticos Musculoskeletal Infection Society (MSIS), a incidência de infecções com culturas negativas foi de 6,4%. Pelo ICM 2018,
a verdadeira incidência de infecção periprotética com culturas negativa varia entre
7 e 15%.[11 ] Tais resultados reforçam a importância de diferenciar se as infecções periprotéticas
com culturas negativas são realmente negativas ou se são falso negativo, isto é, os
testes diagnósticos falharam em identificar o microrganismo, mas existe infecção no
implante.[11 ]
Os principais fatores que contribuem para a cultura negativa são: (1) administração
de antibioticoterapia prévia à coleta de amostras para cultura, (2) meio de cultura
inadequado para germes atípicos ou aqueles encapsulados em biofilme, (3) inadequado
manuseio e transporte das amostras, (4) tempo de incubação inadequado sobretudo para
germes raros e indolentes, (5) limitado número de amostras ou inadequada coleta de
tecidos, (6) atraso no transporte para o laboratório, (7) infecção com organismo de
baixo virulência.[9 ]
[10 ]
[11 ] É importante ressaltar que, diferentemente do observado em outras áreas do diagnóstico
microbiológico, não há padronização dos métodos de cultivo para o diagnóstico da IAP.
O ICM 2018 recomenda que durante as cirurgias de revisão sejam coletados no mínimo
três e idealmente cinco ou mais amostras de tecido peri-implante para a realização
de culturas, além da amostra de LS. Entretanto, não existe consenso quanto ao tipo
de tecido sólido mais adequado para ser utilizado na realização de culturas convencionais.
Dessa forma, fica evidente a necessidade de estudos que busquem a padronização dos
métodos de cultura de forma a otimizar a eficiência deste exame.[18 ]
Em nossa casuística, aproximadamente um quarto dos pacientes apresentaram resultado
negativo na cultura biológica. O diagnóstico de infecção nestes pacientes somente
foi possível devido a avaliação de outros exames que compõem o critério diagnóstico
proposto pelo ICM. Estudos apontam que os cirurgiões tendem a minimizar a IAP e a
realizar avaliações incompletas para confirmar o diagnóstico.[20 ] Além disso, é sabido que na rotina dos hospitais públicos brasileiro, muitos destes
exames não estão disponíveis. Entretanto, diante deste cenário, ressaltamos a importância
da adoção de uma rotina criteriosa de avaliação dos pacientes que apresentam ferida
secretiva persistente ou uma articulação quente, inchada ou dolorosa, com o objetivo
de excluir ou confirmar o diagnóstico de IAP, possibilitando no diagnóstico precoce
e maior efetividade no tratamento.
Este estudo apresenta como limitações o fato de não ter sido avaliado o perfil de
resistência a antibióticos das bactérias identificadas, e o fato de ter sido realizado
no período da pandemia, o que pode ter impactado no perfil dos pacientes atendidos
no instituto.
Conclusão
Nossos resultados evidenciam: i) alta prevalência de bactérias do gênero Staphylococcus como causadores da IAP do joelho; ii) a alta incidência de infecções polimicrobianas
nas infecções precoces e iii) IAP com culturas negativas ocorre em, aproximadamente,
um quarto dos pacientes.