Descritores procedimentos de cirurgia plástica - neoplasias de cabeça e pescoço - retalhos cirúrgicos
- terapêutica - complicações pós-operatórias
Introdução
O retalho deltopeitoral foi descrito pela primeira vez por Aymard em 1917 para reconstruções
nasais. Todavia, recebeu destaque em 1965, quando Bakamjian começou a utilizar o retalho
para reconstruções faringoesofágicas.[1 ]
[2 ]
Este retalho tem padrão axial, baseado nos vasos perfurantes da artéria torácica interna,
em sua porção medial, e padrão randomizado em sua porção lateral.[1 ]
[2 ]
[3 ]
A utilização deste retalho havia perdido popularidade devido aos retalhos livres,
contudo permanece no cenário atual como alternativa em regiões onde não há disponibilidade
de equipe microcirúrgica ou quando o paciente não é elegível para esta técnica.[1 ]
[4 ]
Objetivo
Apresentar as aplicações do retalho deltopeitoral para fechamento de grandes defeitos
na região cervicofacial, bem como apresentar dois casos e a técnica cirúrgica empregada
no serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Federal da Lagoa.
Métodos
O estudo foi realizado através de uma análise retrospectiva de pacientes operados
no ano de 2022 em conjunto com a equipe da Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Dentre estes,
foram selecionados dois pacientes que foram submetidos à reconstrução cervicofacial
com retalho deltopeitoral.
Estes foram avaliados em relação à idade, sexo, etiologia da lesão, localização do
defeito e número de tempos cirúrgicos realizados por paciente. Foram ainda analisados
complicações pós-operatórias e satisfação pessoal dos pacientes.
Este estudo seguiu os princípios éticos de Helsinque e foi aprovado pelo comitê de
ética do Hospital Federal da Lagoa.
Técnica cirúrgica
O retalho possui formato retangular, na região torácica superior desde o esterno até
a região anterior do deltoide. A base do retalho está localizada paraesternalmente
a 2cm da borda esternal, sendo o limite superior a clavícula e o limite inferior,
paralelo ao limite superior, entre o 3° ou 4° espaço intercostal.[1 ]
Há casos em que para alcançar o defeito, o comprimento do retalho precisa ser estendido
até a região lateral do deltoide. Existe ainda a possibilidade do uso de expansores
previamente a transferência tecidual para promover um alongamento dos tecidos. Outra
estratégia que pode ser utilizada para diminuir chances de necrose do retalho, seria
a autonomização prévia da extremidade distal do retalho promovendo uma neovascularização
nesta localização.[5 ]
O suprimento sanguíneo deste retalho é proveniente dos vasos perfurantes da artéria
torácica interna com a contribuição do 2° e 3° ramos perfurantes na sua porção medial.
Já a porção lateral ao sulco do deltoide, possui padrão randômico derivado das artérias
musculocutâneas dos ramos deltoide e acromial da artéria tóracoacromial.[1 ]
[2 ]
A incisão é feita de acordo com a marcação prévia do retalho e o plano de dissecção
profundamente à fáscia deltoide na região deltoide e à fáscia peitoral no tórax, no
sentido distal para a base. O comprimento do retalho irá variar conforme a distância
até o defeito para que o alcance e seja suturado sem tensão. O pedículo do retalho
permanece, em média, por um período de 2 a 3 semanas até que ocorra a neovascularização
na área receptora.[1 ]
No segundo tempo cirúrgico, o pedículo é seccionado e recolocado na área doadora e
o defeito remanescente do local doador pode ser coberto com enxertos de pele até a
sua completa cicatrização. O retalho deltopeitoral em geral alcança um bom resultado
estético, fornecendo uma coloração e textura aceitáveis.[1 ]
[6 ]
Paciente 1
Paciente do sexo masculino de 71 anos, apresentou-se na unidade com lesão ulcerada
em região cervical esquerda com tempo de evolução de aproximadamente 4 anos ([Fig. 1 ]). Foi realizado o planejamento cirúrgico do caso para a ressecção da lesão bem como
confecção do retalho deltopeitoral ([Fig. 2 ]). Aspecto após ressecção da lesão tumoral demonstrou margens livres após a congelação
intraoperatória ([Fig. 3 ]). O retalho deltopeitoral promoveu o fechamento do defeito cervical ([Fig. 4 ]). No segundo tempo cirúrgico, após 4 semanas, foi realizado a secção do pedículo
e enxertia de pele total no defeito remanescente. ([Fig. 5 ]). Follow-up com 6 meses, observa-se boa cicatrização tanto do retalho quanto da
área enxertada. ([Figs. 6 ] e [7 ]). Histopatológico da lesão confirmou o diagnóstico de carcinoma basocelular ceratótico
com estadiamento pT2N0.
Fig. 1 Aspecto macroscópico da lesão em região cervical.
Fig. 2 Planejamento cirúrgico e dermarcação da lesão cervical com margens.
Fig. 3 Aspecto após a ressecção tumoral.
Fig. 4 Aspecto após a confecção do retalho deltopeitoral e cobertura da região cervical.
Fig. 5 Aspecto pós 2° tempo cirúrgico com o reposicionamento do pedículo e enxerto da região
anterior do ombro esquerdo com curativo de Brown.
Fig. 6 Imagem da área doadora do retalho (follow-up de 6 meses) demonstrando boa cicatrização
da área enxertada.
Fig. 7 Imagem da área receptora do retalho (follow-up de 6 meses) demonstrando boa cicatrização
e cobertura do defeito.
Paciente 2
Paciente do sexo masculino de 51 anos, apresentou-se na unidade com lesão ulcerovegentante
e friável em região cervicofacial à esquerda com tempo de evolução de 6 meses e crescimento
recente acelerado ([Fig. 8 ]). Foi realizado o planejamento cirúrgico do caso para a ressecção da lesão bem como
confecção do retalho deltopeitoral ([Fig. 9 ]). Aspecto imediato após ressecção da lesão tumoral ([Fig. 10 ]). O retalho deltopeitoral promoveu o fechamento do defeito cervicofacial ([Fig. 11 ]). No segundo tempo cirúrgico, após 4 semanas, foi realizado a secção do pedículo
e enxertia de pele total no defeito remanescente. ([Fig. 12 ]). Follow-up de 3 meses, observa-se área de deiscência de ferida operatória após
o reposicionamento do retalho na área doadora em cicatrização. ([Fig. 13 ]). Follow-up de 6 meses com completa cicatrização da ferida ([Figs. 14 ] e [15 ]). Histopatológico evidenciou carcinoma do tipo mucoepidermoide de alto grau de parótida
esquerda com linfonodo positivo.
Fig. 8 Aspecto macroscópico da lesão em região cervicofacial à esquerda.
Fig. 9 Planejamento do retalho deltopeitoral.
Fig. 10 Aspecto após a ressecção tumoral com exposicão do arco e ramo mandibulares bem como
da região cervical esquerda.
Fig. 11 Aspecto no pós-operatório imediato da confecção do retalho e enxertia da região do
ombro esquerdo com curativo de Brown.
Fig. 12 Imagem do pós-operatório recente do 2° tempo cirúrgico com reposicionamento do pedículo
e fechamento da região cervicofacial.
Fig. 13 Follow-up de 3 meses com deiscência de ferida operatória em área doadora.
Fig. 14 Imagem oblíqua esquerda do follow-up de 6 meses, com cicatrização completa da área
de deiscência e integração completa do retalho na região cervicofacial esquerda.
Fig. 15 Perfil esquerdo do follow-up de 6 meses, com cicatrização completa da área de deiscência
e integração complete do retalho na região cervicofacial esquerda.
Devido ao estadiamento avançado, necessitou de tratamento adjuvante, sendo realizado
radioterapia pela técnica de intensidade modulada (IMRT) com dose total de 6000 cGy
divididas em 30 sessões. Segue em acompanhamento pelas equipes de Cirurgia Plástica,
Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Radioterapia.
Resultados
Os pacientes foram submetidos à reconstrução da região cervicofacial após ressecção
tumoral e ambos necessitaram mais de um tempo cirúrgico para refinamento e transecção
do pedículo.
Em nenhum dos pacientes houve grandes complicações, como necroses parcial ou total
do retalho, assim como hematoma e infecção. Um dos pacientes apresentou deiscência
de ferida operatória após o reposicionamento do retalho na área doadora, evoluindo
com cicatriz hipertrófica e hipocromia em relação às áreas adjacentes.
Durante as visitas de pós-operatório, as diferenças de textura e cor da pele do retalho
com a área receptora foram pequenas. Ambos os pacientes ficaram satisfeitos com os
resultados obtidos aos 6 meses de pós-operatório.
Discussão
Algumas outras opções de retalhos podem promover o fechamento dos defeitos de cabeça
e pescoço, entre eles o retalho miocutâneo pediculado do músculo peitoral maior, o
retalho miocutâneo do músculo trapézio e os retalhos livres, como exemplo o retalho
antebraquial.[7 ]
O primeiro é um tipo de retalho pediculado fino e flexível derivado de perfurantes
da musculatura do peitoral maior, com mínima morbidade da área doadora e boa combinação
de cor e textura nas reconstruções da cabeça e pescoço. Contudo, em alguns casos,
pode ser esteticamente desagradável devido ao volume do retalho.[7 ]
[8 ]
O retalho miocutâneo do músculo trapézio foi descrito por Nakajima e Fujino, em 1984.
É comumente utilizado em pacientes pós-radioterapia e repetidos procedimentos cirúrgicos
pela limitação do uso de retalhos livres. Estes últimos são menos apropriados em paciente
idosos devido ao tempo cirúrgico prolongado e por requererem equipe especializada,
podendo o retalho de músculo trapézio ser uma alternativa. Uma desvantagem para a
confecção deste retalho é a necessidade de mudança de decúbito no intraoperatório,
que pode ser crucial em pacientes oncológicos, sendo esta uma das limitações do seu
uso.[7 ]
[8 ]
[9 ]
Os retalhos livres têm como vantagens a pouca espessura acarretando menor volume na
área doadora, seu pedículo vascular ser, geralmente, constante e boa tolerância à
radioterapia.[8 ]
Os casos apresentados foram realizados em dois tempos cirúrgicos. Haveria ainda a
possibilidade de autonomização prévia à transposição do retalho no intuito de promover
o fenômeno de neovascularização da extremidade distal do retalho e, por consequência,
diminuir chances de necrose nesta área. Este procedimento pode ser extremamente importante
em reconstruções após falha de um retalho anterior. Entretanto, haveria a necessidade
de aguardar de 7 a 15 dias para que o retalho pudesse ser transferido e, além de prolongar
por mais um tempo cirúrgico, a espera aumentaria ainda mais o defeito naqueles pacientes
portadores de neoplasias com pior prognóstico.[10 ]
Nos casos descritos, optou-se pela confecção do retalho deltopeitoral por fornecer
um retalho com pele fina, textura e cor semelhantes à região cervicofacial, pedículo
constante e previsível, bom alcance aos defeitos, segurança e reprodutividade do retalho,
técnica cirúrgica rápida e sem necessidade de mudança de decúbito no intraoperatório.
Por fim, o retalho deltopeitoral também é utilizado para tratamento de complicações,
como fístulas salivares, contraturas cervicais e necroses cutâneas pós-radioterapia.[7 ]
Conclusão
O retalho deltopeitoral permanece como importante opção de tratamento na reconstrução
de grandes defeitos da cabeça e pescoço mesmo após o advento da microcirurgia. Permite
a transferência de tecido de forma eficiente e confiável com pequena deformidade na
área doadora, possibilitando uma reconstrução esteticamente aceitável.
Bibliographical Record José Paulo Guedes Saint-Clair, Alberto Figueiredo Andrade, João Luiz Tavares Mendes,
Marco Aurélio Vieira Borges, Mayra Joan Costa, Renata Lowndes Francalacci. Aplicações
do retalho deltopeitoral na reconstrução de grandes defeitos da cabeça e pescoço:
Relato de dois casos. Revista Brasileira de Cirurgia Plástica (RBCP) – Brazilian Journal
of Plastic Surgery 2024; 39: s00451801848. DOI: 10.1055/s-0045-1801848