Palavras-chave traumatismos dos tendões - coelhos - suturas
Introdução
No tratamento das lesões dos tendões flexores na zona II, a colocação da sutura central
na região palmar do tendão, com a intenção de limitar a lesão vascular, é a orientação
clássica.[1 ]
[2 ] Porém, estudos experimentais concluíram que o posicionamento dorsal da sutura central
apresenta maior resistência do que o palmar.[3 ]
[4 ]
[5 ]
[6 ]
[7 ] A incerteza entre colocar a sutura central na região dorsal do tendão e obter maior
resistência, eventualmente prejudicando a irrigação sanguínea do tendão ou colocar
a sutura na região palmar para preservar a irrigação, porém com menor resistência,
persiste na prática cirúrgica.[8 ]
O objetivo do presente estudo foi analisar os aspectos mecânicos e histopatológicos
da cicatrização do tendão flexor com interesse no local de colocação da sutura, na
região vascularizada ou avascular.
Material e Métodos
O projeto do presente estudo foi previamente aprovado pela Comissão de Ética em Experimentação
Animal da instituição.
Foram utilizados 83 coelhos da raça Norfolk, do sexo masculino, com peso entre 1.500 g
e 2.000 g e idade de ∼ 90 dias.
Os animais foram divididos em grupos de acordo com a localização da sutura: grupo
tendão normal (TN), com sutura na região vascularizada; e grupo fibrocartilagem (FC),
com sutura na região avascular. Cada grupo foi subdividido em quatro subgrupos de
acordo com o tempo de seguimento pós-operatório, que foram de imediato e de 2, 3 e
6 semanas ([Tabelas 1 ] e [2 ]).
Tabela 1
Subgrupo
Imobilização
(semanas)
Seguimento
(semanas)
Número de animais (n = 42)
Biomecânica
Histopatologia
TN0
[* ]
0
0
6
0
TN2
2
2
6
4
TN3
3
3
6
6
TN6
3
6
6
8
Tabela 2
Subgrupo
Imobilização
(semanas)
Seguimento
(semanas)
Número de animais (n = 41)
Biomecânica
Histopatologia
FC0
[* ]
0
0
6
0
FC2
2
2
6
5
FC3
3
3
6
5
FC6
3
6
6
7
O tendão utilizado foi o flexor profundo dos dedos do pé, na região do tornozelo,
dentro de canal osteofibroso, envolto por tecido sinovial, onde apresenta nódulo de
forma elíptica, no qual se observa uma região com epitendão e vasos sanguíneos, denominada
na presente investigação de tendão normal, e uma região esbranquiçada e avascular,
denominada de tendão fibrocartilaginoso.[9 ]
[10 ]
[11 ] A lesão do tendão foi realizada por meio de acesso cirúrgico medial na região do
tornozelo e secção transversal completa do tendão no centro do nódulo. O tendão contralateral
foi utilizado como controle.
O reparo foi realizado com ponto tipo Kessler utilizando-se fio monofilamentar de
náilon 4.0 (agulha triangular 2,0 cm, Point Suture, Fortaleza, Ceará, Brasil) colocado
na região vascularizada no Grupo TN e na região avascular do tendão no Grupo FC, completada
por sutura circunferencial com fio monofilamentar de náilon 6.0 (agulha cilíndrica
1,5 cm, Ethicon, São Paulo, São Paulo, Brasil). A extremidade operada foi imobilizada
com tala plástica mantendo o tornozelo e os dedos em extensão ([Fig. 1 ]).
Fig. 1 (A) Sutura utilizada no grupo tendão normal vascularizado (TN). (B) Sutura utilizada
no grupo fibrocartilagem avascular (FC). (C) Animal com o membro pélvico operado imobilizado.
Após o sacrifício dos animais, os tendões foram retirados no tamanho de 4 cm, fixados
em garras metálicas sinusoidais com distância de 20 mm e local da cicatrização central.
As garras foram montadas axialmente em máquina universal de ensaio mecânico com célula
de carga de 1000N (EMIC - Equipamentos e Sistemas de Ensaio Ltda., Modelo DL 10000,
Curitiba, Parana, Brasil) e velocidade de aplicação de carga de 30 mm/minuto. A área
de secção do tendão foi obtida por meio da medida da área elíptica da região do nódulo
do tendão contralateral não operado, sendo este valor utilizado no cálculo das propriedades
mecânicas materiais dos tendões operados e não operados.
As propriedades mecânicas estudadas foram: carga máxima (N) e energia na carga máxima
(N.10–3), denominadas de estruturais e, tensão na carga máxima (MPa), módulo de elasticidade
(MPa) e energia por área (N.10–3/mm2), denominadas de materiais, dependentes, portanto,
da área de secção para o cálculo. Os aspectos histopatológicos foram estudados por
meio de microscopia óptica com as colorações de hematoxilina e eosina (H&E), tricrômico
de Masson, e picrossíruis red com luz polarizada.
O estudo estatístico das variáveis das propriedades mecânicas, segundo o local da
sutura central (grupos TN e FC), momentos experimentais (imediato, 2, 3 e 6 semanas)
e lado (operado e controle contralateral) foi realizado pela técnica da análise de
variância (ANOVA) não paramétrica para o modelo de dois fatores em medidas repetidas,
complementado com os respectivos testes de comparações múltiplas.[12 ] A discussão dos resultados foi realizada no nível de 5% de significância.
Resultados
Propriedades mecânicas
As [Tabelas 3 ]
[4 ]
[5 ]
[6 ]
[7 ] apresentam as medianas, os valores mínimo e máximo das propriedades mecânicas estudadas
em ambos os grupos (TN e FC), lado operado e controle, nos quatro momentos experimentais
acompanhados pelas letras de comparação (análise estatística).
Tabela 3
Tempo
(semanas)
Sutura
Lado
Controle
Operado
0
TN
189 (138–254) aAβ
25 (22–29) aAα
FC
149 (119–200) aAβ
29 (20–39) aAα
2
TN
172 (149–228) aAβ
29 (19–33) aAα
FC
171 (119–185) aAβ
32 (16–35) aAα
3
TN
195 (119–240) aAβ
29 (15–40) aAα
FC
139 (134–196) aAβ
32 (20–48) aAα
6
TN
174 (156–293) aAβ
91 (68–119) aBα
FC
208 (185–300) aBβ
89 (55–98) aBα
Tabela 4
Tempo
(semanas)
Sutura
Lado
Controle
Operado
0
TN
514 (291–638) bAβ
53 (14–75) aAα
FC
282 (209–522) aABβ
66 (46–108) aABα
2
TN
376 (320–580) aAβ
43 (18–76) aAα
FC
383 (216–463) aABβ
53 (18–101) aAα
3
TN
374 (184–524) aAβ
34 (12–54) aAα
FC
248 (176–347) aAβ
51 (28–99) aAα
6
TN
412 (308–899) aAβ
139 (87,5–239) aBα
FC
507 (260–1043) aAβ
107 (78–169) aBα
Tabela 5
Tempo
(semanas)
Sutura
Lado
Controle
Operado
0
TN
22 (16–32) aAβ
3,1 (2,7–3,4) aAα
FC
17 (14–22) aAβ
3,4 (2,2–4,7) aAα
2
TN
21 (18–27) aAβ
3,5 (2,2–3,8) aAα
FC
20 (13–23) aAβ
3,5 (1,9–4,2) aAα
3
TN
22 (15–27) aAβ
3,7 (1,9–4,3) aAα
FC
18 (14–32) aAβ
4,1 (2,9–7,8) aABα
6
TN
21 (18–40) aAβ
11,9 (7,5–13,6) aBα
FC
25 (20–29) aAβ
9,9 (4,5–13) aBα
Tabela 6
Tempo
(semanas)
Sutura
Lado
Controle
Operado
0
TN
119 (95,5–193) aAβ
16 (15–49) aAα
FC
99 (87–120) aAβ
17 (10–22) aAα
2
TN
114 (89–131) aAβ
31 (2,8–41) aAα
FC
114 (72–144) aAβ
30 (14–37) aAα
3
TN
164 (121–219) aAβ
35 (12–43) aAα
FC
135 (62–265) aAβ
37 (14–123) aAα
6
TN
161 (96–195) aAβ
72 (55–91) aBα
FC
119 (96–261) aAβ
71 (40–148) aBα
Tabela 7
Tempo
(semanas)
Sutura
Lado
Controle
Operado
0
TN
63 (35–76) bAβ
6,3 (1,7–8,3) aAα
FC
33 (25–60) aAβ
7,7 (5,0–12,8) aAα
2
TN
44 (39–69) aAβ
5,1 (2–8,9) aAα
FC
44 (26–55) aAβ
6,3 (2,1–11,0) aAα
3
TN
44 (27–57) aAβ
4,1 (1,5–6,6) aAα
FC
38 (21–55) aAβ
7,1 (4,2–15,8) bAα
6
TN
48 (34–108) aAβ
20 (11–25) aBα
FC
56 (39–87) aAβ
13 (7–18) aBα
As [Figs. 2 ] e [3 ] ilustram os resultados obtidos para cada propriedade mecânica.
Fig. 2 Propriedades biomecânicas estruturais. (A) Medianas da Carga Máxima (N) dos grupos
TN e FC, lado operado, nos quatro momentos experimentais; (B) Medianas da Energia
na Carga Máxima (N.10–3 m) dos grupos TN e FC, lado operado, nos quatro momentos experimentais.
Fig. 3 Propriedades biomecânicas materiais. (A) Medianas da Tensão na Carga Máxima (MPa)
dos grupos TN e FC, lado operado, nos quatro momentos experimentais; (B) Medianas
do Módulo de Elasticidade (MPa) dos grupos TN e FC, lado operado, nos quatro momentos
experimentais; (C) Medianas da Energia/Área (N.mm/mm2) dos grupos TN e FC, lado operado,
nos quatro momentos experimentais.
As rupturas ocorreram sempre no local da sutura ou da cicatrização dos tendões em
ambos os grupos experimentais. Nos tendões íntegros não operados, utilizados como
controle, as rupturas ocorreram sempre no segmento entre a garra e o nódulo.
Análise Histopatológica
O processo de cicatrização tendínea ocorreu de modo semelhante em ambos os grupos
experimentais, havendo diferenças somente nos subgrupos, relacionadas à evolução temporal
dos fenômenos observados.
Com 2 semanas de evolução pós-operatória, quando o espaço entre os cotos tendíneos
era amplo, ocorreu preenchimento principalmente por exsudato de fibrina e proliferação
de tecido de granulação. Nas situações em que o espaço entre os cotos tendíneos era
menor, houve preenchimento predominantemente por tecido de granulação com edema intersticial,
focos irregulares de depósitos de fibrina e de discreto infiltrado inflamatório mononuclear
permeado por poucos eosinófilos. Este tecido de granulação, na região central do espaço,
proliferou a partir dos vasos do interstício dos cotos tendíneos com deposição irregular
de fibras colágenas ainda imaturas. Em parte das amostras, a presença de pequeno espaço
entre os cotos esteve acompanhada de deposição de fibras colágenas com disposição
paralela ao eixo longitudinal do tendão, que se coraram pelo tricrômico de Masson
e demonstraram fibras delicadas e refringentes quando examinadas na coloração de picrossírius
red com luz polarizada. Nas zonas periféricas, o tecido de granulação se originou
a partir dos tecidos peritendíneos, formando aderências com a derme e tecido sinovial
circunjacentes; a deposição de colágeno nessas zonas apresentou disposição irregular.
Em meio ao processo de reparação, identificaram-se granulomas do tipo corpo estranho
que circundavam os fios de sutura e interrompiam a continuidade da deposição regular
de colágeno.
Nos animais sacrificados com 3 semanas de pós-operatório, houve redução do edema intersticial
no tecido de granulação, ausência dos depósitos de fibrina, presença de infiltrado
inflamatório mononuclear mínimo e deposição de colágeno mais denso em relação ao observado
no período de 2 semanas.
Na 6ª semana de pós-operatório, a maior parte do tecido de granulação foi substituída
por depósito de colágeno denso, de maneira semelhante ao tecido tendíneo dos cotos,
em arranjo paralelo ao eixo longitudinal do tendão; quando corado pelo picrossírius
red e examinado com luz polarizada, o colágeno reparativo foi caracterizado por fibras
mais delicadas e refringência pouco menos intensa quando comparado ao observado no
tecido tendíneo dos cotos. Os granulomas tipo corpo estranho que envolvem os fios
de sutura e as aderências aos tecidos dérmicos e sinoviais nas zonas periféricas foram
observados em todos os momentos experimentais, com progressivo aumento da densidade
do colágeno cicatricial.
A [Fig. 4 ] ilustra os resultados observados nos períodos de 2, 3 e 6 semanas de pós-operatório.
Fig. 4 (A) Duas semanas de pós-operatório – espaço entre os cotos encontra-se preenchido
por tecido de granulação com discreto edema intersticial e infiltrado inflamatório
mononuclear; observa-se, à esquerda do espaço, tecido de granulação a partir do interstício
das fibras tendíneas do coto (Hematoxilina-eosina – aumento original 100x); (B) Três
semanas de pós-operatório - presença de colágeno denso com intensa refringência no
coto tendíneo (*), em continuidade com deposição de colágeno menos refringente e mais
delicado, no espaço entre os cotos tendíneos(♢) (picrossírius red com luz polarizada
– aumento original 100x); (C) Seis semanas de pós- operatório – há distinção entre
o colágeno do coto (*), mais denso e refringente, em relação ao colágeno cicatricial,
mais delicado, menos refringente e com arranjo paralelo ao eixo longitudinal do tendão
(♢) (picrossírius red com luz polarizada – aumento original 100x).
Discussão
O comportamento mecânico e morfológico dos tendões suturados foi semelhante na maioria
dos parâmetros estudados nos animais dos grupos TN e FC, indicando que não houve diferenças
na cicatrização tendínea em relação à região de localização do ponto central de sutura,
na região de tendão normal vascularizada ou na região de tendão fibrocartilaginoso
avascular.
Os ensaios mecânicos realizados imediatamente após o reparo (subgrupos TN0 e FC0 ) avaliaram a resistência inicial da sutura. Soejima et al[4 ] e Stein et al[13 ] realizaram estudos semelhantes por meio de ensaios mecânicos lineares e com tendões
isolados. Soejima et al[4 ] encontraram perfil mecânico superior na sutura colocada na face dorsal, enquanto
Stein et al[13 ] não observaram diferenças em relação ao local da sutura. Estudos semelhantes, porém
por meio de ensaios mecânicos curvilíneos, demonstraram perfil mecânico superior na
sutura colocada na face dorsal.[3 ]
[5 ]
[6 ]
[7 ]
[14 ] É possível supor que o teste linear, realizado na presente investigação, anule o
efeito mecânico de transmissão de maior tensão na face dorsal que na face palmar do
tendão flexor. Além disso, a sutura periférica circunferencial contínua, que pode
aumentar em até 50% a resistência do reparo central, pode ter equalizado os reparos
realizados nas regiões de tendão normal e fibrocartilaginoso.[15 ]
Os ensaios mecânicos realizados nos períodos de 2, 3 e 6 semanas de pós-operatório
avaliaram a resistência da cicatriz tendínea. As propriedades mecânicas estudadas
nos grupos TN e FC não apresentaram diferenças estatísticas significativas, com exceção
da energia por área no período de 3 semanas de pós-operatório, no qual o Grupo FC
apresentou valores maiores do que o Grupo TN. Estes resultados indicam que não houve
diferença no processo de cicatrização tendínea em relação à localização do ponto central
da sutura. A colocação do ponto central da sutura na região vascularizada do tendão
(Grupo TN) poderia, em teoria, agredir o suprimento sanguíneo e prejudicar a cicatrização.
No entanto, a imobilização da extremidade operada por 3 semanas no pós-operatório
provavelmente favoreceu os mecanismos extrínsecos de cicatrização e diminuiu o possível
efeito deletério da sutura na região vascularizada do tendão. A presença de aderências
aos tecidos dérmicos e sinoviais, observadas na histologia em ambos os grupos e em
todos os momentos experimentais, na região periférica da cicatriz tendinosa, sugere
o predomínio dos mecanismos extrínsecos de cicatrização, fato também observado por
Wada et al.[16 ]
No período de 3 semanas, a energia por área foi maior no Grupo FC. A energia por área
pode ser caracterizada como a capacidade do corpo de prova de absorver impacto e,
nos materiais viscoelásticos como tendões, está relacionada à quantidade de material
e ao arranjo das fibras colágenas. É possível imaginar que, com 3 semanas, o Grupo
FC tenha apresentado cicatriz com maior volume e arranjo de colágeno irregular, o
que justificaria a maior capacidade de absorção de impacto. No entanto, tratou-se
de achado pontual, uma vez que, com 6 semanas, os valores foram semelhantes em ambos
os grupos.
A influência do tempo no processo de cicatrização tendínea foi semelhante em ambos
os grupos experimentais, TN e FC, com estabilização dos valores das propriedades mecânicas
do período imediato até 3 semanas de pós-operatório, seguido de aumento acentuado
com 6 semanas. As exceções a este padrão ocorreram no grupo FC em relação à tensão
na carga máxima, na qual se observou início da recuperação com 3 semanas, e em relação
à energia por área, no mesmo grupo, com queda na 2ª semana e recuperação na 3a semana. Na literatura consultada, não foram encontrados experimentos que variassem
a colocação do ponto central da sutura na região vascularizada ou fibrocartilaginosa
avascular do tendão e que avaliassem o processo de cicatrização. O estudo de Nessler
et al[17 ] relativo à cicatrização de regiões de tendão normal e de tendão fibrocartilaginoso
avascular em tendões flexores de cães indicou desempenho morfológico e mecânico superiores
da cicatrização da fibrocartilagem. No entanto, o modelo experimental foi de lesão
parcial, sem material de sutura e movimentação ativa imediata no pós-operatório. Nessas
circunstâncias, pode ter ocorrido predomínio de mecanismos intrínsecos de cicatrização
tendinosa e a fibrocartilagem, com seu arranjo irregular do colágeno apresentou cicatriz
mais precoce que o tendão normal, que exige maior tempo para o alinhamento das fibras
de colágeno.
Conclusões
A análise dos resultados mecânicos e histopatológicos obtidos na presente investigação
permitem concluir que a colocação do ponto central de sutura em região vascularizada
do tendão não prejudicou o processo de cicatrização tendínea.