Palavras-chave impacto femoroacetabular - força muscular - articulação coxofemoral
Introdução
Morfologias coxofemorais anormais têm sido relacionadas a diversas patologias de membros
inferiores. A proeminência do fêmur na junção cabeça-colo (tipo CAM) e a cobertura
excessiva da cabeça do fêmur pelo acetábulo (tipo PINCER) são anomalias que, sozinhas
ou combinadas, induzem o impacto do fêmur contra o acetábulo (impacto femoroacetabular,
IFA) durante movimentos extremos. Esse impacto pode causar laceração labral e levar
ao desenvolvimento prematuro de osteoartrite.[1 ]
[2 ]
Outra anomalia femoral importante é a torção baixa ou excessiva do colo. No primeiro
caso, o ângulo entre o colo e o eixo longitudinal da diáfise é maior, ou o ângulo
entre o colo e o côndilo femoral é diminuído (< 10°),[3 ] o que induz a rotação externa (RE) do fêmur. No entanto, para manter o pé apontado
para frente, o fêmur gira em sentido interno, reduzindo o deslocamento entre a borda
anterior do acetábulo e o colo do osso. Essa morfologia diminui a amplitude de movimento
(AM) em rotação interna (RI), e aumenta o impacto[4 ] e o estresse de contato articular.[5 ] Por outro lado, em caso de anteversão excessiva do fêmur, o ângulo entre o colo
e o eixo longitudinal da diáfise diminui, ou o ângulo entre o colo e o côndilo femoral
aumenta (> 22°),[3 ] o que afeta diretamente o joelho. O fêmur distal é posicionado em RI, e a patela
gira em sentido medial.[4 ] Essa posição aumenta a pressão de contato, levando ao desenvolvimento de síndrome
patelofemoral (SPF).[6 ]
Curiosamente, tanto a SPF quanto o IFA foram relacionados a um desequilíbrio da força
muscular. Indivíduos com SPF apresentaram fraqueza na abdução e RE do quadril,[7 ]
[8 ] enquanto pacientes com IFA demonstraram fraqueza na abdução, adução e RE do quadril
em comparação a controles assintomáticos.[9 ] Além disso, uma fraqueza sugestiva foi observada na RI, e não houve diferença na
extensão entre indivíduos sintomáticos e assintomáticos.[9 ] Diamond et al[10 ] observaram fraqueza isométrica de abdutores e desequilíbrio de rotadores em indivíduos
com IFA. Na comparação de quadris contralaterais sintomáticos e assintomáticos, Nepple
et al[11 ] detectaram déficits de força isométrica em abdutores e flexores.
A fraqueza generalizada dos músculos do quadril relatada por indivíduos com quadris
sintomáticos[9 ] e a recuperação da força após a redução da dor[12 ] levou os autores a concluir que a fraqueza estava relacionada à dor causada pela
osteoartrite. No entanto, a comparação baseada em sintomas sem avaliação morfológica
do quadril não pode sugerir se a morfologia anormal responsável pelo IFA está associada
à fraqueza. A ressecção da deformidade de tipo CAM e a redução da dor foram associadas
à recuperação da força.[12 ]
A deformidade do tipo CAM reduz a amplitude de RI, e o aumento do movimento pode estar
associado à recuperação da força dos rotadores internos.
No entanto, nossa hipótese é a de que anomalias na versão femoral também podem estar
associadas à fraqueza em indivíduos com impacto do tipo CAM e quadris sintomáticos.
Um modelo simplificado das fibras anteriores do glúteo médio e mínimo é mostrado na
[Fig. 1 ] para explicar a teoria da fraqueza da rotação interna relacionada à versão femoral.
A retroposição do trocânter maior em relação à cabeça com o pé apontado para a frente
na anteversão excessiva do fêmur diminui o ângulo entre o vetor do músculo e o eixo
do colo femoral. Esta posição pode aumentar a magnitude do vetor responsável pela
pressão da cabeça dentro do acetábulo, e diminuir o vetor de torque interno. Além
disso, a anteversão pode ser responsável pela relação tensão-comprimento desvantajosa
dos rotadores internos e do psoas.[13 ] A retroposição do trocânter menor pode alongar as fibras, diminuindo o número de
pontes cruzadas de actina-miosina e a capacidade de produção de força máxima. Por
outro lado, o deslocamento do trocânter maior para uma posição avançada aumenta o
ângulo entre o vetor do músculo e o eixo do colo femoral. Assim, a magnitude do vetor
responsável pelo torque interno aumenta, e o vetor responsável pela pressão da cabeça
contra o acetábulo diminui.
Fig. 1 A visão posterior do quadril em 90 ° de flexão e vetores de fibras anteriores do
glúteo médio e mínimo em anteversão femoral normal (10–22 °), baixa (< 10 °) e alta
(> 22 °), respectivamente. Os vetores pontuais são os responsáveis pelo movimento
de rotação interna. O ângulo fechado entre o eixo femoral e o vetor muscular, apresentado
em alta anteversão, pode resultar em diminuição do vetor responsável pela rotação
em relação à baixa anteversão. O efeito oposto pode ser mostrado no caso de anteversão
baixa.
Portanto, a soma de alterações de vetores e a relação comprimento-tensão desvantajosa
pode ser suficiente para alterar a força dos músculos do quadril durante a comparação
de indivíduos com anteversão femoral excessiva e baixa. Considerando isso, o presente
estudo avaliou a correlação da versão femoral com a força muscular isocinética em
mulheres com impacto do tipo CAM sintomático.
Métodos
Pacientes
A amostra deste estudo foi composta por pacientes avaliados em nosso instituto entre
julho de 2016 e dezembro de 2017. Os critérios de inclusão foram a avaliação da imagem
de ressonância magnética articular pelo mesmo radiologista, ter IFA do tipo CAM patológico,
e ser capaz de executar os movimentos necessários do protocolo isocinético sem dor
excessiva (escala analógica visual [EAV] < 4). Todos os pacientes deram seu consentimento
para o uso dos dados. O estudo foi previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
do nosso instituto.
Avaliação da morfologia do quadril
Todas as avaliações de morfologia do quadril foram realizadas por meio de ressonância
magnética articular (GE Infinity, GE, Boston, MA, EUA). Após a anestesia com 5 mL
de lidocaína a 2%, 18 mL de solução tampão fisiológica, e 0,4 mL de ácido gadotérico
foram injetados no quadril. As varreduras foram realizadas com sequências ponderadas
T1 com espessura de 0,3 cm e saturação de gordura axial nos eixos do colo do fêmur
e nos planos sagital e coronal. Imagens coronais em short tau inversion recovery (STIR) com saturação de gordura, 0,5 cm de espessura e densidade axial de prótons
também foram adquiridas. A versão femoral foi medida por uma linha que cruza o centro
do colo femoral e outra linha que cruza os dois côndilos posteriores. A presença do
impacto do tipo CAM foi avaliada pelo ângulo α. O ângulo α foi medido traçando uma
linha que cruza o eixo do colo e outra que cruza a junção cabeça-colo e o centro da
cabeça do fêmur. O ângulo igual ou superior a 55° foi considerado positivo para o
impacto do tipo CAM.[14 ]
[15 ]
Avaliação da força muscular
O pico de torque concêntrico foi avaliado com um dinamômetro pró-isocinético System
4 (Biodex Medical System, Shirley, NY, EUA). Os protocolos do fabricante foram seguidos
para avaliação dos movimentos de flexão/extensão e abdução/adução. A posição supina
foi adotada para análise das forças dos músculos flexores e extensores. A AM foi ajustada
o mais próximo possível de 5° de flexão para evitar o contato da coxa com a cadeira.
O limite superior foi estabelecido entre 60° e 70°. Os movimentos de abdução e adução
foram realizados em decúbito lateral. A posição inferior foi fixada em 0° de adução,
e a AM, entre 45° e 55°. A correção da gravidade foi realizada no limite inferior
da AM para os movimentos de flexão/extensão e abdução/adução. A RI e a RE foram avaliadas
em posição sentada, com o quadril e o joelho fixos em flexão de 90°. O eixo do dinamômetro
foi ajustado ao eixo longitudinal do fêmur e fixado na perna, acima do maléolo medial.
Para evitar movimentos de adução e abdução durante o teste, o quadril e a porção distal
da coxa foram imobilizados. A AM foi definida pelo paciente a fim de evitar qualquer
sensação de dor, sendo que a AM mínima aceita foi de 20°. A correção da gravidade
não foi necessária. Uma sessão de aquecimento de cinco repetições foi realizada em
todos os movimentos. O pico de torque foi registrado em cinco repetições com velocidade
de 30°/s, que foram realizadas 2 minutos após o aquecimento.
Análise Estatística
Os dados do pico de torque foram normalizados pela massa corpórea. A correlação entre
a versão femoral e o pico de torque foi avaliada por meio do ajuste de uma curva de
regressão linear simples, e a análise de variância avaliou a significância da regressão.
O nível de significância foi estabelecido em 0,05.
Resultados
Um total de 37 mulheres atenderam aos critérios de inclusão; 23 mulheres apresentaram
sintomas unilaterais, e 14 tinham sintomas bilaterais. Assim, 51 quadris foram avaliados.
Os dados dos ângulos de versão femoral e as características dos pacientes estão resumidos
na [Tabela 1 ]. Não houve correlação entre ângulo de versão femoral e o pico de torque em flexão
(p = 0,59), extensão (p = 0,22), abdução (p = 0,75), adução (p = 0,61) e rotação externa (p = 0,17). Houve uma correlação fraca da versão femoral com o pico de torque em rotação
interna (p = 0,013; rajustado = 0,10) ([Fig. 2 ]).
Fig. 2 Dispersão de torque de flexão, extensão, abdução, adução, rotação interna e rotação
externa (N.m/Kg) versus ângulo da versão femoral.
Tabela 1
Descrição
Média
Desvio padrão
Mínimo
Máximo
Ângulo de versão femoral (graus)
17
7,8
0
31
Ângulo alfa (graus)
60
6,39
55
86
Idade
36
8,23
24
52
Altura (m)
1,63
0,06
1,5
1,78
Massa corpórea (kg)
63
8,32
51
98
Discussão
O objetivo deste estudo foi avaliar a correlação entre a versão femoral e a força
isocinética concêntrica dos músculos do quadril. Os resultados mostraram que a versão
não influenciou a força de flexão, extensão, abdução, adução e RE; eles mostraram
também a existência de uma correlação fraca com a força de RI em mulheres com IFA
do tipo CAM patológico.
A ação dos músculos rotadores depende da posição relativa entre as inserções femoral
e pélvica, que determina o vetor dos músculos relacionados ao eixo de rotação do fêmur.
Os músculos com vetor em frente ao eixo de rotação do fêmur no plano horizontal são
responsáveis pela RI quando o quadril está em 0° de flexão. Os principais músculos
rotadores internos são as fibras anteriores do glúteo médio e mínimo,[16 ] o pectíneo e o tensor da fáscia lata. Os adutores longo e curto são rotadores internos
secundários.[17 ] Com o quadril em flexão de 90°, as fibras posteriores do glúteo médio e as fibras
anteriores do glúteo máximo também se tornam rotadores internos, aumentando o momento
interno em comparação à flexão do quadril em 0°.[17 ]
[18 ]
Cibulka et al[19 ] avaliaram o efeito da AM assimétrica na RI dos músculos rotadores do quadril. Indivíduos
assintomáticos com maior AM de RE em comparação à AM de RI (RE > RI) e indivíduos
com as características opostas (RE < RI) foram avaliados. Embora os autores não tenham
analisado a morfologia do quadril, o primeiro padrão é semelhante ao padrão de AM
observado em indivíduos com anteversão femoral baixa, em que o deslocamento entre
o colo femoral e o rebordo acetabular anterior é curto, levando à baixa AM de RI,
e o deslocamento em relação à borda posterior é grande, o que causa alta AM de RE,[3 ]
[20 ] como mostrado na [Fig. 1 ]. O segundo padrão é semelhante àquele observado em indivíduos com anteversão excessiva,
em que o deslocamento entre o colo femoral e a borda acetabular anterior é grande,
e o deslocamento em relação à borda acetabular posterior é curto, o que gera maior
AM de RI em comparação à AM de RE.[3 ]
[20 ] Os indivíduos com RE > RI apresentaram maior força isométrica de RI em comparação
aos indivíduos com RE < RI quando o ângulo da AM de RE utilizado para medir a força
foi semelhante.[19 ] Segundo os autores, as fibras musculares eram mais alongadas no padrão RE < RI do
que no padrão RE > RI para esta AM. Os autores também observaram que quando a força
de rotação interna era medida com o pé apontando para a frente (como mostra a [Fig. 1 ]), os indivíduos com RE > RI tinham mais força do que aqueles com RE < RI.
Estudos anteriores sugeriram que a anteversão excessiva pode afetar a força de abdução.
A eletromiografia dos músculos do quadril mostrou que atletas assintomáticos com anteversão
excessiva apresentaram menor atividade eletromiográfica isométrica do glúteo médio
durante a abdução associada ao teste de RE em decúbito lateral.[21 ] Outro estudo realizou uma análise de elementos finitos de uma prótese de quadril
mal posicionada em anteversão excessiva, e mostrou uma pequena diminuição no braço
de momento e habilidades de geração de força dos abdutores e aumento na força dos
flexores.[22 ]
Embora não tenhamos avaliado a existência de SPF em nossa amostra, uma relação entre
a anteversão excessiva e a fraqueza dos músculos do quadril tem sido sugerida como
causa dessa doença, devido à RI resultante do fêmur distal quando o pé está apontando
para a frente.[4 ] Indivíduos com SPF mostraram esse posicionamento femoral durante atividades dinâmicas
como corrida[23 ] e agachamento.[24 ] Essa biomecânica foi associada à incapacidade do glúteo máximo de equilibrar a RI,
uma vez que indivíduos com SPF apresentaram fraqueza de abdutores e rotadores externos.[7 ]
[8 ]
Nossos resultados não mostraram nenhum efeito dos diferentes ângulos de versão no
torque isocinético de rotadores, abdutores e flexores externos. Nossa hipótese é a
de que a posição em decúbito lateral na cadeia aberta usada para avaliação da força
de abdução isocinética pode permitir o ajuste de uma orientação mais favorável das
fibras musculares para desenvolvimento de força máxima. Um possível déficit de abdutor
relacionado à versão femoral pode se tornar evidente durante a ação excêntrica dos
músculos para estabilizar a queda da pelve no plano frontal e controlar o momento
de RI, como observado em pacientes com SFP.[6 ]
[25 ]
Esses achados relatam que a versão femoral não é um fator determinante para a fraqueza
muscular. Além disso, concordam com estudos que mostraram que a anteversão femoral
anormal não altera os resultados após a artroscopia para tratamento de IFA.[4 ]
[26 ] No entanto, para entender melhor o efeito da versão femoral, outros estudos devem
considerar a avaliação do quadril assintomático para evitar o viés da dor no desenvolvimento
máximo de torque. Embora dor limitante (EAV < 4) não tenha sido relatada, o movimento
de RI com flexão de 90° pode empurrar o fêmur contra o acetábulo, desencadeando dor.
Portanto, não é possível assegurar que a dor não tenha influenciado o desenvolvimento
do pico máximo de torque. A ausência de um grupo controle é a principal limitação
deste estudo.
Conclusão
A versão femoral não foi correlacionada à força de flexão, extensão, abdução, adução,
RE e RI em mulheres sintomáticas com IFA.