Palavras-chave manguito rotador - artroscopia - amplitude de movimento articular
Introdução
A rotura do manguito rotador acomete 20% da população geral e até 50% dos pacientes
acima de 80 anos.[1 ] A melhora clínica após o procedimento cirúrgico ocorre na maioria dos pacientes,[2 ]
[3 ]
[4 ] mas rerroturas ocorrem em 27% dos casos.[5 ]
A avaliação de fatores preditivos é importante para definir pacientes de risco para
resultados insatisfatórios após o reparo do manguito rotador. Existem alguns estudos
que avaliam fatores que aumentam o risco de falha de cicatrização[6 ]
[7 ]
[8 ]
[9 ]
[10 ]
[11 ]
[12 ] e de resultados clínicos desfavoráveis.[13 ]
[14 ]
[15 ]
[16 ] Já foram descritos como fatores de risco para piores resultados clínicos: pacientes
mais idosos;[14 ]
[15 ] sexo feminino;[15 ] pior função pré-operatória; cirurgia prévia e problemas trabalhistas;[16 ] tabagismo;[17 ] grau de degeneração gordurosa; e dimensão da rotura.[18 ]
As roturas do manguito rotador têm padrões estruturais distintos, classicamente descritos
como crescente (C), L, e U.[19 ] Até o momento, poucos estudos avaliaram a influência do padrão da rotura nos resultados
clínicos pós-cirúrgicos,[20 ]
[21 ] sem evidência de diferença entre os grupos. Estes estudos incluíram em sua casuística
roturas do infraespinal[20 ]
[21 ] e do subescapular,[20 ] o que, embora aumente a validade externa dos resultados, aumenta os fatores de confusão.
O objetivo deste estudo é analisar a influência do padrão da rotura do supraespinal
na avaliação funcional pré e pós-operatória.
Métodos
Desenho
Estudo de coorte retrospectivo, comparando a avaliação funcional pré e pós-operatória
entre dois grupos de pacientes, de acordo com o padrão da rotura do supraespinal:
C versus L ou U.
Local e datas
Foram analisados pacientes submetidos a reparo artroscópico completo do supraespinal
com procedimentos realizados entre novembro de 2012 e novembro de 2016, por um dos
médicos do Grupo de Ombro e Cotovelo de nossa instituição.
Procedimento cirúrgico e reabilitação
As cirurgias foram realizadas por artroscopia, sob anestesia geral e bloqueio interescalênico.
Os pacientes foram posicionados em cadeira de praia ou decúbito lateral, de acordo
com a preferência do cirurgião. Bursectomia, acromioplastia e ressecção distal da
clavícula foram realizadas conforme necessário. O manguito rotador foi reparado após
o desbridamento do tubérculo maior com técnica de fileira simples, utilizando âncoras
duplamente carregadas. O tendão da cabeça longa do bíceps foi abordado quando apresentava
subluxação ou luxação, lesões parciais superiores a 50%, ou na existência de lesões
do lábio superior dos tipos 2, 3 e 4. O procedimento realizado era a tenotomia, nos
pacientes com idade maior ou igual a 60 anos, ou a tenodese, nos pacientes mais novos.
A tenodese, quando indicada, era realizada ou com um dos fios da âncora mais anterior,
ou com uma âncora especificamente para esse fim. Antes de se iniciar o reparo do manguito
rotador, a lesão era mensurada com o auxílio de uma probe milimetrada, e o padrão
era avaliado conforme a redutibilidade dela ao leito ósseo. O número de âncoras e
a necessidade de pontos tendão-tendão foi decidido no decorrer do ato cirúrgico.
Após a cirurgia, os pacientes permaneceram por 6 semanas imobilizados com tipoia Velpeau.
Movimentos com os dedos, punho e cotovelo foram incentivados desde o primeiro dia.
Arco de movimento passivo do ombro foi iniciado com quatro semanas, e movimentos ativos,
após a retirada da tipoia. Fortalecimento foi realizado após os três meses, e liberação
completa para as atividades laborais e esportivas, aos seis meses.
Ressonância magnética
Todos os pacientes realizaram ressonância magnética (RM) previamente ao procedimento
cirúrgico, num aparelho de 1,5-T (HDxt, GE Medical Systems, Milwaukee, WI, EUA) e
bobina para ombro, sem uso de contraste intra-articular ou intravenoso.
Participantes (critérios de eligibilidade)
Foram incluídos pacientes submetidos a cirurgia artroscópica para tratamento de roturas
isoladas do supraespinal, com reparo completo. Os pacientes ainda precisavam ter realizado
RM pré-operatória, terem sido submetidos a coleta padronizada de achados intraoperatórios,
e ter respondido aos questionários pré e pós-operatório (6, 12 e 24 meses). Não foram
incluídos pacientes com rotura associada ou isolada dos tendões do subescapular ou
infraespinal, os submetidos a cirurgia aberta, ou aqueles nos quais foi obtido apenas
o reparo parcial.
Grupos
Os pacientes foram divididos em dois grupos: C e L ou U, de acordo com Burkhart e
Lo.[19 ] A categorização foi realizada baseada na inspeção artroscópica. As roturas do tipo
C são aquelas que apresentam mobilidade de medial para lateral. As roturas em L ou
em U apresentam mobilidade principalmente no sentido anteroposterior, e podem necessitar
de pontos tendão-tendão ([Figura 1 ]).
Fig. 1 Padrões de rotura do manguito rotador: (A ) lesão em crescente; (B ) lesão em L; (C ) lesão em U.
Desfechos
A avaliação clínica foi feita pelas escalas The American Shoulder and Elbow Surgeons
Standardized Shoulder Assessment (ASES)[22 ]
[23 ] e Modified-University of California at Los Angeles Shoulder Rating Scale (UCLA).[24 ]
[25 ]
Demais variáveis analisadas
Todas as variáveis referentes à lesão, à exceção da degeneração gordurosa, foram analisadas
durante a artroscopia. A degeneração gordurosa foi aferida no corte sagital oblíquo
T1 de RM de 1,5T.
Análise estatística
Submetemos as variáveis contínuas à avaliação da normalidade, por meio do teste de
Kolmogorov-Smirnov, e da homogeneidade, por meio do teste de Levene. Apresentamos
as variáveis contínuas em médias e desvio padrão, e as categóricas, em valores absoluto
e percentual.
A comparação entre o padrão da rotura do supraespinal (C versus L ou U) e os resultados funcionais, de acordo com as escalas da ASES e da UCLA, foi
realizada pelo teste de Mann-Whitney. Para as demais variáveis, foi utilizado o teste
de Mann-Whitney para as variáveis contínuas, e do Chi-quadrado para as categóricas.
Utilizamos para a análise dos dados o programa Statistical Package for the Social
Sciences (SPSS, IBM Corp., Armonk, NY, EUA), versão 21.0, e nível de significância
de 5%.
Resultados
No período estudado, realizamos 341 reparos artroscópicos do manguito rotador. Não
foram incluídos 174 casos, por terem sido submetidos a reparo do subescapular e/ou
do infraespinal, ou por ter sido possível apenas o reparo parcial. Dessa maneira,
analisamos uma amostra de 167 ombros (de 163 pacientes).
As variáveis referentes aos pacientes que demonstraram o padrão em C têm uma menor
proporção de pacientes do sexo feminino e menor frequência de pacientes diabéticos
([Tabela 1 ]).
Tabela 1
Rotura do supraespinal
Crescente (n = 104)
L ou U (n = 63)
Valor de p
n (%)
n (%)
Sexo*
Masculino
44 (42)
16 (25)
0,027*
Feminino
60 (58)
47 (75)
Lado dominante
Sim
71 (68)
48 (76)
0,273
Não
33 (32)
15 (24)
Diabetes*
Sim
9 (9)
14 (22)
0,014*
Não
95 (91)
49 (78)
Tabagismo
Não
73 (70)
42 (67)
0,175
Ex-tabagista
21 (20)
9 (14)
Tabagista
10 (10)
12 (19)
Idade, anos (média ± desvio padrão)
53,9 ± 7,9
54,7 ± 7,9
0,822
As variáveis referentes à cirurgia demonstraram que o padrão em C tem menor retração,
menor degeneração gordurosa do supraespinal, e menor necessidade de procedimentos
no tendão da cabeça longa do bíceps ([Tabela 2 ]).
Table 2
Rotura do supraespinal
Crescente (n = 104)
L ou U (n = 63)
Valor de p
n (%)
n (%)
Retração*
Pequena
64 (62)
17 (27)
< 0,001*
Média
37 (36)
31 (49)
Grande
2 (2)
11 (17)
Extensa
1 (1)
4 (6)
Extensão*
Região anterior do supraespinal
57 (55)
41 (65)
0,95
Região posterior do supraespinal
28 (27)
8 (13)
Toda a extensão
19 (18)
14 (22)
Degeneração gordurosa supraespinal*
0
54 (52)
18 (29)
0,004*
1
44 (42)
32 (51)
2
6 (6)
11 (17)
3
0 (0)
2 (3)
Rotura do subescapular
Não
66 (63)
38 (60)
0,685
Parcial
38 (37)
25 (40)
Número de âncoras
1
33 (32)
29 (46)
0,179
2
67 (64)
32 (51)
3
4 (4)
2 (3)
Acromioplastia
Sim
94 (90)
56 (89)
0,757
Não
10 (10)
7 (11)
Procedimento de Mumford
Sim
6 (6)
1 (2)
0,191
Não
98 (94)
62 (98)
Procedimento no bíceps*
Nenhum
79 (76)
33 (52)
0,007*
Tenotomia
11 (11)
12 (19)
Tenodese
14 (13)
18 (29)
Sutura tensa*
Sim
5 (5)
2 (3)
0.61
Não
99 (95)
61 (97)
No pré-operatório, a escala da ASES demonstrou ser significativamente superior no
padrão em C (43,5 ± 17,6 versus 37,7 ± 13,8; p = 0,034). A escala da UCLA teve o mesmo comportamento (15,2 ± 4,6 versus 13,5 ± 3,6;
p = 0,028). No pós-operatório, entretanto, não ocorreu diferença significativa. De
acordo com a escala da ASES, o padrão em C foi de 83,7 ± 18,7 pontos, e o padrão em
L ou U, de 82,9 ± 20,1 pontos (p = 0,887). Respectivamente, os valores foram de 30,9 ± 4,9 e de 30,5 ± 5,6 (p = 0,773) pontos pela escala da UCLA ([Tabela 3 ]).
Table 3
Rotura do supraespinal
Crescente (n = 104)
L ou U (n = 63)
Valor de p
American Shoulder and Elbow Surgeons Standardized Shoulder Assessment
Pré-operatório (média ± desvio padrão)
43,5 ± 17,6
37,7 ± 13,8
0,034
24 meses pós (média ± desvio padrão)
83,7 ± 18,7
82,9 ± 20,1
0,887
Modified-University of California at Los Angeles Shoulder Rating Scale
Pré-operatório (média ± desvio padrão)
15,2 ± 4,6
13,5 ± 3,6
0,028
24 meses pós (média ± desvio padrão)
30,9 ± 4,9
30,5 ± 5,6
0,773
Discussão
Nosso estudo demonstrou que o padrão da rotura do supraespinal não afetou as escalas
funcionais pós-operatórias. O padrão em C teve 83,7 ± 18,7 pontos pela escala da ASES,
e 30,9 ± 4,9 pela escala da UCLA, enquanto o padrão em L ou U teve, respectivamente,
82,9 ± 20,1 e 30,5 ± 5,6. Esse resultado é consistente com o de outros artigos.[20 ]
[21 ] Park et al.,[20 ] estudando roturas grandes, compararam os padrões móveis (C e L) com o padrão em
U, e também não observaram diferença significativa entre os grupos. Watson et al.,[21 ] avaliando roturas posterossuperiores, também não observaram diferença entre os grupos.
Entretanto, estes autores observaram que a melhora obtida em relação ao pré-operatório
foi superior no grupo em C, embora não de maneira significativa (34,7 pontos versus
29,5 no grupo em L).
Observamos que o padrão em C apresentou valores estatisticamente superiores no pré-operatório
de acordo com as escalas da ASES (43,5 ± 17,6 versus 37,7 ± 13,8; p = 0,034) e da UCLA (15,2 ± 4,6 versus 13,5 ± 3,6; p = 0,028). Apesar da diferença mínima clinicamente significante não ter sido alcançada,[27 ] este achado difere do dos demais estudos.[20 ]
[21 ] Semelhantemente a Watson et al.,[21 ] as lesões em C mostraram menor dimensão, mas diferentemente desses autores, nossa
amostra demonstrou número significativamente inferior de mulheres e diabéticos no
tipo em C. Observamos ainda maior degeneração gordurosa e maior necessidade de procedimento
no bíceps no padrão em L ou U, dado não analisado por esses autores.
A melhora funcional com o procedimento foi maior nas lesões em L ou U, partindo de
um estado funcional pior e atingindo o mesmo nível do que os pacientes com lesões
em C. Isso ocorreu apesar de as lesões em L ou U terem maior retração e maior degeneração
gordurosa. Uma possível explicação para isso é o fato de termos avaliado uma amostra
predominante de pacientes com degeneração classificada até o grau 2 de Goutallier
em ambos os grupos. Apenas 3% do grupo L ou U foram classificados como grau 3, e não
houve pacientes classificados como grau 4 em nenhum dos grupos. Além disso, as roturas
se restringiram ao supraespinal. Sabe-se que a degeneração gordurosa, em especial
a do infraespinal, gera piores resultados estruturais,[9 ] embora o efeito no resultado clínico não seja estatisticamente significante.[14 ]
[15 ] A dimensão da rotura, por sua vez, é um fator de risco para piores resultados clínicos.[14 ] Nossos dados demonstram que o padrão da rotura influenciou no grau de degeneração
gordurosa, mas não no resultado funcional pós-operatório.
O cabo dos rotadores é importante na transmissão de força do supraespinal para o úmero,
mesmo na presença de uma rotura.[19 ] Esta estrutura é normalmente preservada nas roturas em C, o que pode explicar a
pior função pré-operatória nas lesões em L ou U, e o maior ganho funcional após sua
restauração anatômica. Da mesma maneira, consideramos que esse pode ser o motivo do
maior grau de degeneração gordurosa pré-operatória nas roturas em L ou U.
Nosso estudo tem algumas limitações. Em primeiro lugar, analisamos apenas o supraespinal,
excluindo reparos envolvendo o subescapular e/ou o infraespinal. Essa opção, embora
diminua a validade externa, foi escolhida como forma de aumentar a validade interna
e reduzir os fatores de confusão. O desenho do tipo coorte retrospectivo, embora similar
ao de estudos prévios,[20 ]
[21 ] também é uma possível fonte de viés. A análise intraoperatória por apenas um cirurgião
acrescenta subjetividade à classificação. Por fim, também não realizamos a análise
estrutural do reparo, diferentemente de Park et al.[20 ] Entretanto, sabe-se que a integridade estrutural não se correlaciona de maneira
clinicamente significativa com os resultados funcionais após o reparo do manguito
rotador,[28 ] e a análise clínica isoladamente já foi realizada por outros autores.[21 ]
Como pontos favoráveis destacamos a análise padronizada de roturas do supraespinal
numa grande casuística, superior à dos estudos prévios,[20 ]
[21 ] e a demonstração de que, embora não influencie nos resultados pós-operatórios, o
padrão da rotura pode influenciar na avaliação pré-operatória.
Conclusões
As roturas do supraespinal em C e em L ou U apresentam resultados funcionais pós-operatórios
semelhantes. No pré-operatório, as roturas em C apresentam função estatisticamente
superior.