Palavras-chave
fraturas da tíbia/classificação - estudos de validação - avaliação
Introdução
Joelho flutuante é um termo que faz referência a fraturas ipsilaterais de fêmur e
tíbia. É decorrente de traumas de alta energia, como os acidentes de trânsito,[1] tendo especial importância, em nossa realidade, os acidentes motociclísticos. Embora
sua exata incidência seja desconhecida, sabe-se que é uma condição, em geral, rara.
No entanto, observa-se um crescimento do número de casos de joelho flutuante no últimos
anos, o que se manifesta proporcionalmente ao aumento da quantidade de pacientes acometidos
por traumas de alta energia.[2]
Em decorrência do seu mecanismo de trauma (alta energia), os episódios de joelho flutuante,
muitas vezes, são associados a outras injúrias de importância traumato-ortopédica,
como fraturas em outros sítios ou lesões ligamentares de joelho. Além disso, pelo
mesmo motivo, pode haver também injúrias ameaçadoras a vida, como traumas cranioencefálicos,
torácicos ou abdominais.[2] A gravidade dessas lesões se reflete na mortalidade, que varia de 5 a 15%, segundo
a literatura. Estudos mostram ainda grande número de fraturas expostas (59–67% dos
casos) e elevada quantidade de casos (20–30%) que necessitem de amputação.[3]
Assim, muitas vezes, em casos de instabilidade, fraturas articulares complexas ou
lesões graves de tecidos moles, os princípios do controle de danos ortopédicos podem
ser a solução mais segura inicialmente. Dessa forma, a fixação definitiva, a qual
em geral requer longo tempo cirúrgico, necessita ser postergada até que as condições
sejam melhores para o paciente.[4]
É importante frisar também que diversas complicações associadas aos casos de joelho
flutuante são relatadas, tais como infecções, perda excessiva de sangue, embolia gordurosa,
retardo de consolidação, pseudoartrose, rigidez articular, hospitalização prolongada
e inabilidade de sustentar peso.[1]
Para que possa ser estabelecido tratamento, assim como em diversas outras lesões na
traumatologia, é de suma importância que haja uma adequada classificação de cada caso.
Os sistemas de classificação têm os propósitos de facilitar a comunicação entre os
médicos, ajudar na documentação e na pesquisa, estimar prognóstico, e orientar terapêutica.[5]
Em seu artigo original, Blake & McBryde, os primeiros a descreverem o quadro de joelho
flutuante, elaboraram a primeira classificação. Eles dividiram a referida lesão traumatológica
em tipos I, quando ambas as diáfises são fraturadas (joelho flutuante verdadeiro),
IIA, quando há fraturas envolvendo a articulação do joelho, e IIB, quando as fraturas
envolvem a articulação do quadril ou a do tornozelo.
Em 1978, Fraser et al.,[6] por sua vez, classificaram de forma diferente, dividindo-o em tipos I (ambas as
diáfises acometidas), IIA (fraturas da diáfise do fêmur e do platô tibial), IIB (fraturas
da diáfise da tíbia e do fêmur distal intra-articular), e IIC (fraturas intra-articulares
de joelho em fêmur e em tíbia).
Nesse intuito, objetivou-se com o presente estudo avaliar a concordância interobservador
das duas classificações mais conhecidas para joelho flutuante - Fraser e Blake & McBryde
- com o intuito de analisar o grau de confiabilidade dessas classificações.
Métodos
O presente estudo tem caráter transversal, observacional e quantitativo. O estudo
epidemiológico é dito transversal quando fator e efeito são observados num mesmo momento
histórico. Em estudos observacionais não existe manipulação alguma do fator de estudo
por parte do pesquisador. Foram utilizadas radiografias nas incidências anteroposterior
e perfil de pacientes atendidos no hospital, no período compreendido entre janeiro
e maio de 2013, com fraturas ipsilaterais de tíbia e fêmur, contabilizando ao todo
25 fraturas, as quais, após os critérios de exclusão, resumiram-se a 15. O critério
de exclusão foi a documentação radiográfica inadequada, como radiografias de qualidade
ruim ou incompletas.
As radiografias foram organizadas aleatoriamente e, com elas, foi preparada uma apresentação
de slides em Power Point (Microsoft Corp., Redmond WA, EUA). Esse teste foi aplicado com 26 residentes de
traumatologia e ortopedia da nossa instituição. Entre os testados, havia residentes
do 1°, 2° e 3° anos, sendo 9 R1, 7 R2 e 10 R3. A aplicação do teste ocorreu durante
sessão teórica de que participam semanalmente (residência integrada de ortopedia e
traumatologia). No ato da avaliação, cada residente recebeu uma gravura ilustrativa
contendo as duas classificações (Fraser e Blake & McBryde) e um gabarito para assinalar
o subtipo que julgava correspondente a cada um dos casos. Para cada caso exibido,
havia um tempo máximo de 2 minutos para as respostas.
Posteriormente, o mesmo teste foi aplicado com seis traumato-ortopedistas especialistas
em joelho. A avaliação com os especialistas ocorreu nas mesmas condições que a realizada
com os residentes no que diz respeito ao tempo e à sequência das radiografias.
Para avaliar o grau de concordância, utilizamos o índice estatístico de Kappa, segundo
a interpretação de Landis e Koch (< 0 = sem concordância; 0,0–0,20 = ligeira concordância;
0,21–0,40 = fraca; 0,41–0,60 = moderada; 0,61–0,80 = substancial; ≥ 0,81 = excelente).[7] Este é um coeficiente de concordância que corrige o erro devido ao acaso e é usado
para determinação da variação intra e interobservador, sendo utilizado quando dois
observadores classificam separadamente uma amostra de objetos empregando a mesma escala
de categoria.[8]
Os prontuários e as correspondentes radiografias utilizadas no presente trabalho foram
provenientes do Núcleo de Arquivo Médico (NUAME) do IJF.
O projeto foi enviado à aprovação da Comissão de Ética em Pesquisa, de acordo com
a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (diretrizes e normas regulamentadoras
de pesquisa envolvendo seres humanos) sob o número 87963018.2.0000.5047. O estudo
foi informado aos pacientes e aos observadores e solicitado um termo de consentimento.
Resultados
Ao avaliar a concordância entre os 9 R1, obteve-se um índice de Kappa para a classificação
de Fraser de 0,58 e para a classificação de Blake & McBryde de 0,46. Entre os 7 R2,
obteve-se índice de Kappa de 0,59 para a classificação de Fraser e 0,51 para Blake
& McBryde. Entre os 10 R3, o índice de concordância foi maior para as duas classificações:
0,72 para a classificação de Fraser e 0,71 para a de Blake & McBryde. Considerando
os 3 grupos (R1, R2, R3) como um só grande grupo, calculou-se o índice de Kappa geral,
que teve como resultado 0,63 para a classificação de Fraser e 0,56 para a classificação
de Blake & McBryde ([Tabela 1]).
Tabela 1
ANO DE RESIDÊNCIA
|
NÚMERO DE RESIDENTES
|
CLASSICAÇÃO DE FRASER
|
CLASSICAÇÃO DE BLAKE & MCBRYDE
|
1°
|
9
|
0,58
|
0,46
|
2°
|
7
|
0,59
|
0,51
|
3°
|
10
|
0,72
|
0,71
|
No grupo dos traumato-ortopedistas especialistas em joelho, por sua vez, obteve-se
concordância para a classificação de Blake & McBryde de 0,597 e para a de Fraser de
0,843 ([Tabela 2]).
Tabela 2
NÚMERO DE ESPECIALISTAS
|
CLASSICAÇÃO DE FRASER
|
CLASSICAÇÃO DE BLAKE & MCBRYDE
|
6
|
0,597
|
0,843
|
Discussão
As classificações em ortopedia e traumatologia são ferramentas que auxiliam a uniformizar
uma linguagem internacional na abordagem das lesões. A proposta da adoção de um sistema
de classificação passa por sua capacidade de reprodutibilidade, simplicidade e facilidade
de memorização, ajudando na escolha da adequada terapêutica e na predição prognóstica
da lesão.[9]
Acredita-se que este é o primeiro estudo que avalia o grau de concordância entre as
classificações mais utilizadas para joelho flutuante. O achado mais importante deste
estudo foi que a classificação de Fraser apresentou maior grau de concordância em
relação à classificação de Blake & McBryde tanto entre residentes quanto entre ortopedistas.
Além disso, a única concordância excelente para joelho flutuante foi a classificação
de Fraser entre ortopedistas especialistas em joelho (K = 0,843).
Diferentemente de outros estudos que compararam a concordância entre classificações
bastante populares em ortopedia como a de Lauge-Hansen e Weber para fraturas do tornozelo[10]; Neer para fratura do úmero proximal[11]; e Garden para fraturas de colo femoral,[12] que obtiveram fraca concordância segundo o índice Kappa, este estudo mostrou que
todos os grupos, inclusive em residentes do primeiro ano, obteve-se um patamar pelo
menos moderado de concordância para ambas as classificações avaliadas. Este dado reforça
a reprodutibilidade tanto da classificação de Fraser quanto de Blake & McBryde.
A importância da classificação em ortopedia e, mais especificamente, nos casos de
joelho flutuante pode ser representada no estudo de Demirtas et al.,[13] que, utilizando a classificação de Blake & McBryde, demonstrou que fraturas associadas,
e taxa de complicações e de qualidade de vida podem ser estimadas a partir da classificação.
Portanto, uma acurácia ao classificar casos de joelho flutuante pode ter valor na
busca de determinadas lesões associadas e ter valor prognóstico.
Apesar de algumas publicações apontarem que a classificação de Blake & McBryde ter
sido evidenciada como a mais reconhecida e mais utilizada,[14] a opinião dos autores é que a classificação de Fraser deve ser eleita em casos de
joelho flutuante. Isso se deve ao fato de que além de ser mais reprodutível, conforme
exposto nos resultados, diversos estudos apontam para a presença de fratura intra-articular
como um dos principais fatores prognósticos,[15]
[16]
[17]
[18] e a classificação de Fraser oferece um maior detalhamento do traço intra-articular.
Para minimizar o risco de viés, utilizamos o método de Kappa. No entanto, ressaltamos
como limitação do estudo a amostra de ortopedistas especialista em joelho ser menor
do que a de residentes, o que dificulta uma comparação de concordância entre esses
grupos. Podemos citar como outra limitação a não realização de comparação intraobservador.
Para finalizarmos, a amostras de casos (N) poderia ser mais expressiva.
Conclusão
A única concordância excelente para joelho flutuante foi a classificação de Fraser
entre ortopedistas especialistas em joelho. Uma concordância substancial foi obtida
entre residentes do terceiro ano de ortopedia tanto para as classificações de Fraser
quanto para a de Blake & McBryde. Todas as demais avaliações de concordância entre
os grupos avaliados foram consideradas moderadas.