CC BY-NC-ND 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2021; 56(01): 121-124
DOI: 10.1055/s-0040-1714222
Relato de Caso
Quadril

Tratamento artroscópico do impacto femoroacetabular na epifisiólise capital femoral proximal: Relato de caso[*]

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1   Serviço de Cirurgia do Quadril, Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Universitário Cajuru (HUC), Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil
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1   Serviço de Cirurgia do Quadril, Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Universitário Cajuru (HUC), Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil
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1   Serviço de Cirurgia do Quadril, Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Universitário Cajuru (HUC), Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil
2   Serviço de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Manaus, AM, Brasil
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2   Serviço de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Manaus, AM, Brasil
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Resumo

A epifisiólise capital femoral proximal (ECFP) pode resultar em impacto femoroacetabular (IFA) do quadril em até um terço dos casos. A deformidade residual em came ou “cabo de pistola” está associada a lesão condrolabral, resultando em dor, incapacidade funcional, e osteoartrose precoce. O tratamento artroscópico com osteocondroplastia mostrou-se benéfico em um caso selecionado de IFA secundário a ECFP.


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Introdução

A epifisiólise capital femoral proximal (ECFP) é o transtorno mais comum do quadril do adolescente, com uma incidência reportada de 10.8 em cada 100 mil habitantes. A bilateralidade pode ocorrer em até 20% dos casos.[1] Fatores mecânicos como obesidade, retroversão femoral e relativa orientação vertical da fise proximal do fêmur foram associados à etiologia.[2]

O colo femoral proximal desloca-se anterolateralmente, no nível da fise, sobre a cabeça femoral, que permanece dentro do acetábulo. Essa deformidade leva a uma proeminência no aspecto anterolateral da transição cefalocervical e a uma atitude em rotação externa do fêmur proximal. Os pacientes subsequentemente podem desenvolver uma deformidade em “cabo de pistola” próxima à cabeça do fêmur, também denominada “queilo” por alguns autores.[3] Essa deformidade pode sofrer melhora por remodelamento, mas tal potencial é limitado pela fixação in situ, que compromete o crescimento fisário. Além disso, a ECFP ocorre numa faixa etária em que a capacidade de compensação de deformidades residuais por remodelamento não é mais possível.

Até um terço dos pacientes com diagnóstico de ECFP apresentam dor persistente e/ou impacto femoroacetabular (IFA) resultante da deformidade.[4] A proeminência residual (deformidade em “cabo de pistola”) e a relativa retroversão da cabeça femoral foram definidas como causa de IFA tipo came, com piores resultados clínicos e radiográficos em longo prazo. Um marco importante dessa deformidade consiste na compensação reduzida ou ausente entre a cabeça femoral e o colo, que pode ser graduada radiograficamente.

A proeminência residual na junção cabeça-colo se projeta no rebordo acetabular, gerando estresse na junção condrolabral, resultando na separação do lábrum da cartilagem articular, a qual é precursora à lesão condral irreversível. Essa lesão se inicia logo após o deslizamento na ECFP, e costuma progredir com o tempo, levando à deterioração do quadril em idades precoces.[5]

Há evidências na literatura que apoiam a osteocondroplastia artroscópica do colo femoral no tratamento do IFA sintomático secundário a ECFP, com resultados animadores,[6] [7] e é sugerida a abordagem precoce logo após o deslizamento, a fim de se prevenir contra a progressão irreversível com piores resultados em longo prazo.[7]


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Relato do Caso

Paciente do sexo feminino, de 15 anos de idade, sem comorbidades, no 2° ano pós-operatório de fixação in situ bilateral da cabeça femoral por ECFP. Ela relatava dor e limitação de movimentos do quadril esquerdo que se agravava com o apoio.

Durante a inspeção, foi observada atitude em rotação externa do membro inferior esquerdo, mais evidente durante a deambulação. A paciente apresentou leve claudicação em membro inferior esquerdo durante a marcha, a qual foi associada ao quadro de dor no quadril. Não foi observado sinal de Trendelenburg.

Ao exame físico, a paciente apresentava limitação importante da rotação interna do quadril esquerdo associada a quadro álgico durante a manobra. Foi evidenciado sinal de Drennan à esquerda durante o exame. A paciente não apresentava alterações neurovasculares nos membros inferiores, e tinha a força muscular preservada neles.

Nas radiografias em incidência anteroposterior (AP) da pelve e de perfil dos quadris ([Figura 1]), foi observada epifisiólise do quadril esquerdo, com significativa proeminência anterolateral na transição cabeça-colo associada a redução da compensação. O sinal de Trethowan estava presente. A fise de crescimento já se encontrava fechada.

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Fig. 1 Radiografias em incidência anteroposterior da bacia (acima) e de perfil de Dunn dos quadris (abaixo) evidenciando deformidade em região anterolateral do colo femoral esquerdo, compatível com impacto tipo came.

A anamnese, o exame físico e as radiografias foram compatíveis com IFA tipo came, secundário ao quadro de epifisiólise. Devido ao quadro álgico sintomático associado a bloqueio articular, o tratamento preconizado foi a osteocondroplastia por via artroscópica.

Durante a artroscopia, foi evidenciada lesão condrolabral no rebordo anterolateral do acetábulo ([Figura 2]), compatível com IFA tipo came ([Figura 3]), o qual foi confirmado durante a avaliação dinâmica no intraoperatório. Foi realizado desbridamento do lábrum e osteocondroplastia do colo femoral e do rebordo acetabular, com auxílio de fluoroscopia para controle da compensação cabeça-colo. Após o procedimento, a avaliação dinâmica não evidenciava mais impacto. As radiografias no pós-operatório demonstraram correção da proeminência responsável pelo impacto ([Figura 4])

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Fig. 2 Lesão condrolabral observada durante a artroscopia.
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Fig. 3 Deformidade tipo came na transição cabeça-colo.
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Fig. 4 Radiografia em incidência anteroposterior (acima) e de perfil de Lauenstein (abaixo) de bacia no pós-operatório evidenciando a correção da deformidade.

Foi iniciada reabilitação no primeiro dia de pós-operatório, com movimentação passiva assistida e movimentação ativa, e deambulação com restrição de carga sobre o membro operado por duas semanas.

No primeiro mês de pós-operatório, a paciente já apresentava melhora significativa do quadro álgico e da marcha. Houve ganho importante da rotação interna do quadril esquerdo e da amplitude global de movimentos. Ao terceiro mês, ela deambulava sem queixas de dor. Ao sexto mês, retornou às atividades esportivas, encontrando-se totalmente assintomática.


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Discussão

A associação entre ECFP, IFA sintomático e lesão condrolabral é atualmente bem estabelecida.[8] Mesmo após a estabilização epifisária, casos específicos de ECFP podem ser adequados para o tratamento artroscópico, que consiste numa técnica emergente com poucos seguimentos em longo prazo.[9] Alguns estudos sugerem que a artroscopia pode ser aplicada mesmo em deformidades severas de epifisiólise.[10]

A queilectomia é um procedimento bem indicado para pacientes na faixa etária dos 10 aos 14 anos com sensação de bloqueio articular secundário a patologias do quadril na infância e adolescência, consistindo numa técnica relativamente simples e isenta de maiores complicações, podendo retardar o processo degenerativo da articulação por até 10 a 15 anos.[3]

A seleção de pacientes que podem se beneficiar de uma artroscopia depende da morfologia femoral. A indicação precisa ainda não foi estabelecida, mas uma osteocondroplastia pode ser benéfica em casos de ECFPs associadas a impacto tipo came. Se as áreas de impacto da deformidade estiverem acessíveis a uma abordagem por via artroscópica, o cirurgião deve considerá-la em vez de uma abordagem aberta. Porém, o efeito mecânico dos diferentes graus de retroversão do colo femoral, a profundidade e a orientação acetabulares, e o deslocamento epifisário devem ser considerados antes de se indicar uma abordagem artroscópica.[11]


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Conflito de Interesses

Os autores declaram não haver conflito de interesses.

* Trabalho desenvolvido no Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR, Brasil.


  • Referências

  • 1 Lehmann CL, Arons RR, Loder RT, Vitale MG. The epidemiology of slipped capital femoral epiphysis: an update. J Pediatr Orthop 2006; 26 (03) 286-290
  • 2 Pritchett JW, Perdue KD. Mechanical factors in slipped capital femoral epiphysis. J Pediatr Orthop 1988; 8 (04) 385-388
  • 3 Guarnieiro R, Luzo CAM, Grigoletto Júnior W. et al. A queilectomia como operação de salvamento na patologia do quadril: resultados preliminares. Rev Bras Ortop 1995; 30 (1/2): 42-44
  • 4 Dodds MK, McCormack D, Mulhall KJ. Femoroacetabular impingement after slipped capital femoral epiphysis: does slip severity predict clinical symptoms?. J Pediatr Orthop 2009; 29 (06) 535-539
  • 5 Leunig M, Casillas MM, Hamlet M. et al. Slipped capital femoral epiphysis: early mechanical damage to the acetabular cartilage by a prominent femoral metaphysis. Acta Orthop Scand 2000; 71 (04) 370-375
  • 6 Basheer SZ, Cooper AP, Maheshwari R, Balakumar B, Madan S. Arthroscopic treatment of femoroacetabular impingement following slipped capital femoral epiphysis. Bone Joint J 2016; 98-B (01) 21-27
  • 7 Mahran MA, Baraka MM, Hefny HM. Slipped capital femoral epiphysis: a review of management in the hip impingement era. SICOT J 2017; 3: 35
  • 8 Abraham E, Gonzalez MH, Pratap S, Amirouche F, Atluri P, Simon P. Clinical implications of anatomical wear characteristics in slipped capital femoral epiphysis and primary osteoarthritis. J Pediatr Orthop 2007; 27 (07) 788-795
  • 9 Leunig M, Horowitz K, Manner H, Ganz R. In situ pinning with arthroscopic osteoplasty for mild SCFE: A preliminary technical report. Clin Orthop Relat Res 2010; 468 (12) 3160-3167
  • 10 Akkari M, Santili C, Braga SR, Polesello GC. Trapezoidal bony correction of the femoral neck in the treatment of severe acute-on-chronic slipped capital femoral epiphysis. Arthroscopy 2010; 26 (11) 1489-1495
  • 11 Zaltz I, Kelly BT, Larson CM, Leunig M, Bedi A. Surgical treatment of femoroacetabular impingement: what are the limits of hip arthroscopy?. Arthroscopy 2014; 30 (01) 99-110

Endereço para correspondência

Rafael Wei Min Leal Chang
Serviço de Ortopedia e Traumatologia, Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
Rua Tomas de Vila Nova, 4, Nossa Sra. das Graças, Manaus, AM, 69020-170
Brasil   

Publication History

Received: 29 November 2019

Accepted: 15 April 2020

Article published online:
19 February 2021

© 2021. Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution-NonDerivative-NonCommercial License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit. Contents may not be used for commercial purposes, or adapted, remixed, transformed or built upon. (https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/)

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Fig. 1 Radiografias em incidência anteroposterior da bacia (acima) e de perfil de Dunn dos quadris (abaixo) evidenciando deformidade em região anterolateral do colo femoral esquerdo, compatível com impacto tipo came.
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Fig. 2 Lesão condrolabral observada durante a artroscopia.
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Fig. 3 Deformidade tipo came na transição cabeça-colo.
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Fig. 4 Radiografia em incidência anteroposterior (acima) e de perfil de Lauenstein (abaixo) de bacia no pós-operatório evidenciando a correção da deformidade.
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Fig. 1 Anteroposterior radiographs of the pelvis (above) and in Dunn profile of the hips (below) showing deformity in the anterolateral region of the left femoral neck compatible with cam-type impingement.
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Fig. 2 Chondrolabral lesion observed during arthroscopy.
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Fig. 3 Cam-type deformity in the head-neck transition.
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Fig. 4 Anteroposterior radiograph (above) and in Lauenstein profile (below) of the pelvis in the postoperative period showing the correction of the deformity.