Palavras-chave
osteotomia - osteoartrite do joelho - inquéritos e questionários - satisfação do paciente
- sistemas de informação em radiologia
Introdução
A correção da deformidade e a reconstrução de membros estão emergindo rapidamente
como uma subespecialidade promissora e futura da ortopedia em todo o mundo. Para corrigir
qualquer deformidade, o cirurgião deve primeiro caracterizá-la e, em seguida, planejar
adequadamente uma estratégia corretiva. O papel do planejamento meticuloso pré-operatório
e da medição de uma deformidade é fundamental no tratamento de distúrbios do crescimento,
mau-alinhamento, uniões mal realizadas e osteoartrite unicompartimental. Isso geralmente
é feito com vários sistemas de arquivamento e comunicação de imagens (PACS) e programas
de software como TraumaCad (Brainlab, Munique, Alemanha) e PeekMed (PeekMed, Peek
Health SA, Braga, Portugal).[1] Alguns deles são bastante caros e podem não ser facilmente acessíveis a todos. Bone
Ninja, um aplicativo móvel, foi desenvolvido para a educação integrada de médicos
e pacientes e está disponível na plataforma iPad (iOS).[2] Esse aplicativo permite que os cirurgiões meçam, planejem e simulem a correção da
deformidade sem a necessidade de tesouras, traçados de papel, goniômetros ou programas
de software caros.
O objetivo do presente estudo foi facilitar a simulação da correção no pré-operatório
para permitir a tomada de decisão compartilhada entre médico e paciente em indivíduos
submetidos à Osteotomia Tibial Alta (OTA). Os objetivos foram comparar a correção
alcançada usando recortes de papel com a do software de simulação e avaliar o nível
de satisfação do paciente e a compreensão do procedimento cirúrgico usando o Questionário
de Satisfação do Paciente - curto (PSQ-18).
Pacientes e Métodos
Este foi um estudo prospectivo realizado em um centro ortopédico de atendimento terciário
de dezembro de 2016 a junho de 2019 após a liberação do comitê de ética institucional.
Um total de 22 pacientes com osteoartrite sintomática do compartimento medial (OACM)
do joelho, que foram preparados para a cirurgia corretiva (OTA), foram incluídos no
estudo. Foram excluídos aqueles que não foram submetidos a OTA ou que possuíam um
banco de dados incompleto.
Todos os pacientes foram submetidos a uma avaliação pré-operatória, que incluiu exame
clínico de frouxidão ligamentar e mensuração da amplitude de movimento articular e
encurtamento dos membros. Foram obtidas radiografias de perna longa e compridas, importadas
do departamento de radiologia em um formato de arquivo DICOM, ou, usando a câmera
do iPad, uma imagem da radiografia foi clicada e carregada no software Bone Ninja.
Além disso, fotografias clínicas de ambos os membros inferiores em pé foram obtidas
e armazenadas em um banco de dados computadorizado de pacientes. A sequência do planejamento
foi abreviada pelo acrônimo "MAP o ABC",[2] onde M significa Medir (medindo o desvio do eixo mecânico ou MAD e a discrepância
de comprimento do membro), A significa Analisar (os ângulos da articulação/comprimento
do osso) e P significa Pegar (o osso a tratar). O primeiro passo foi calibrar o marcador
de ampliação usando um círculo de ampliação com a medida de uma polegada (2,54 cm).
O cirurgião também pode escolher a ampliação desejada conforme suas necessidades.
Em seguida, usando a ferramenta "draw lines" (desenhar linhas), os eixos anatômicos
e mecânicos foram desenhados e o desvio do eixo mecânico foi calculado usando a ferramenta
"ruler" (régua). A diferença geral de desalinhamento e comprimento da perna foi registrada.
A quantidade de deformidade em varo foi calculada usando a ferramenta "protractor"
(transferidor). O próximo passo foi marcar as importantes linhas e ângulos de orientação
da articulação, como o ângulo mecânico femoral proximal lateral (mLPFA), o ângulo
femoral distal lateral (AFDL), o ângulo tibial proximal medial (ATPM) e o ângulo tibial
distal lateral (ATDL).[3] Estes foram registrados na tabela MAP fornecida. ([Fig. 1]) Por conveniência, as linhas e ângulos de referência padrão podem ser avaliados
a qualquer momento usando a ferramenta "resource"(recurso).
Fig. 1 Marcando linhas e ângulos de orientação da articulação.
Depois que as medições e análises iniciais foram concluídas, passamos a executar o
"ABC", onde A implica determinar o ápice da deformidade, B implica na escolha de um
nível de corte ósseo e C representa a escolha de um nível e tipo de correção. O osso
afetado era a tíbia e o ápice da deformidade estava localizado no nível da metáfise
tibial proximal. Após marcar a linha de osteotomia e selecionar a área de recorte,
usamos a ferramenta “thumbtack” (tachinha) para executar um movimento rotacional da
área de corte sobre um ponto específico ([Fig. 1]). A “thumbtack” foi colocada ao nível da ponta da cabeça fibular para criar uma
osteotomia em cunha de abertura medial e junto com ela, o eixo mecânico do segmento
distal foi realinhado para coincidir com o eixo mecânico proximal. ([Fig. 2]) Realizamos, principalmente, uma super correção, até o ponto Fujisawa.[4] Uma quantificação da quantidade de correção (base da cunha em milímmetros) foi então
realizada usando a ‘ruler’ (régua). Da mesma forma, uma simulação da osteotomia corretiva
foi realizada com as fotografias clínicas, na presença do paciente, o que permitiu
ao cirurgião e ao paciente ver a aparência radiográfica e clínica pós-operatória do
membro ([Fig. 3]).
Fig. 2 Simulação de correção usando Bone Ninja.
Fig. 3 Simulação de correção usando traçados com papel.
Para fins de comparação, foi desenhado um traçado em papel da radiografia e todas
as linhas e ângulos de referência marcados, conforme descrito acima ([Fig. 4]). Após traçar a linha da osteotomia, o corte foi feito com tesoura e o fragmento
distal girado, colocando um alfinete ou tachinha no nível da cabeça fibular. Após
a correção, os pedaços de papel foram colados e os eixos e ângulos foram medidos novamente.
O ângulo de correção obtido, que é igual à quantidade de correção necessária (assumindo
que 1° = 1 mm), foi registrado.
Fig. 4 Simulação de correção na fotografia clínica do paciente.
A intervenção cirúrgica realizada foi uma osteotomia tibial alta com cunha de abertura
medial (OTA) usando fixador externo poliaxial modular, monolateral (Pitkar Orthotools,
Pune, India) ou uma placa de travamento (Tomofix, Synthes, West Chester, PA, EUA).
Conforme protocolo, o dispositivo de fixação foi retido por duas vezes o período de
distração para facilitar a consolidação da osteotomia. A remoção do fixador foi realizada
após a consolidação completa do regenerado, após o qual foi realizada uma análise
radiográfica final utilizando o aplicativo. Os ângulos de orientação da articulação
foram novamente registrados no banco de dados. A análise estatística para comparação
do ATDL pré-operatório obtido após a correção do papel e a obtida pelo software de
simulação foram realizadas no Microsoft Excel 2019 (Microsoft Corporation, Redmond,
WA, EUA) e o teste utilizado foi o teste t de Student.
O presente trabalho foi aprovado pelo comitê de ética institucional e o consentimento
informado foi obtido de todos os participantes individuais incluídos no estudo.
Resultados
Um total de 22 pacientes, incluindo 14 homens e 8 mulheres, submetidos a OTA, foram
incluídos no estudo. A idade média dos pacientes foi de 42,45 (4,84) anos. Todos os
pacientes demonstraram bom entendimento e compreensão da cirurgia proposta. Todos
ficaram impressionados com a visita inicial e gostaram de ver os resultados simulados
pós-correção. Os cirurgiões ficaram satisfeitos com a facilidade de avaliação e registro
dos parâmetros radiográficos pré e pós-operatórios usando esta ferramenta. O ATPM
médio pré-operatório foi de 74,18° (2,26), o ATPM médio obtido por corte de papel
foi de 87,63° (0,78), o ATPM médio obtido por simulação de software foi de 87,86°
(0,94) e o ATPM médio após a correção cirúrgica foi de 87,95° (0,72). O ATPM médio
obtido com traçados de papel foi comparado com o ATPM obtido da correção assistida
por software e a diferença entre os dois grupos não foi estatisticamente significante
(p = 0,29) ([Tabela 2]).
Tabela 1
Subcategorias PSQ-18
|
Pontuação média
|
DP
|
Satisfação Geral
|
3,11
|
(0,68)
|
Os cuidados médicos que tenho recebido são praticamente perfeitos
|
3,27
|
0,63
|
Estou insatisfeito com algumas coisas sobre os cuidados médicos que recebo
|
2,95
|
0,72
|
Qualidade técnica
|
4,11
|
(0,59)
|
Eu acho que o consultório do meu médico tem tudo o que é necessário para fornecer
atendimento médico completo
|
4,04
|
0,57
|
Às vezes, os médicos me fazem pensar se o diagnóstico está correto
|
4,23
|
0,52
|
Quando vou para atendimento médico, eles têm o cuidado de verificar tudo ao me tratar
e me examinar
|
4,45
|
0,59
|
Tenho algumas dúvidas sobre a capacidade dos médicos que me tratam
|
4,54
|
0,59
|
Questão interpessoal
|
3,97
|
(0,69)
|
Os médicos agem de maneira muito impessoal e pragmática em relação a mim
|
3,95
|
0,65
|
Meus médicos me tratam de maneira amigável e cortês
|
4
|
0,75
|
Comunicação
|
4,24
|
(0,88)
|
Os médicos são bons em explicar o motivo dos exames médicos
|
4,45
|
0,67
|
Os médicos às vezes ignoram o que eu digo a eles
|
3,22
|
0,61
|
Aspectos financeiros
|
3,93
|
(0,75)
|
Sinto-me confiante de que posso obter os cuidados médicos de que preciso sem ter dificuldades
financeiras
|
4,05
|
0,77
|
Tenho que pagar por mais assistência médica do que posso
|
3,81
|
0,79
|
Tempo gasto com médico
|
3,45
|
(0,79)
|
Quem presta assistência médica às vezes se apressa demais quando me trata
|
3,04
|
0,72
|
Os médicos geralmente passam muito tempo comigo
|
3,86
|
0,63
|
Acessibilidade e conveniência
|
3,84
|
(0,84)
|
Tenho acesso fácil aos médicos especialistas de que preciso
|
4,22
|
0,61
|
Onde eu recebo atendimento médico, as pessoas precisam esperar muito tempo para tratamento
de emergência
|
2,86
|
0,71
|
Acho difícil conseguir uma consulta médica imediatamente
|
4,13
|
0,56
|
Consigo atendimento médico sempre que preciso
|
4,13
|
0,63
|
No momento da alta, todos os pacientes foram solicitados a preencher a versão curta
do Questionário de Satisfação do Paciente (PSQ-18), que nos forneceu um feedback sobre
seu nível de satisfação[5] ([Tabela 1]). A pontuação média para satisfação geral foi de 3,11 (0,68), a qualidade técnica
foi de 4,11 (0,59), a pontuação média para assuntos interpessoais foi de 3,97 (0,69),
a pontuação média de comunicação foi de 4,24 (0,88), a pontuação média para aspectos
financeiros foi de 3,93 (0,75), a pontuação média para o tempo gasto com o médico
foi de 3,45 (0,79) e a pontuação média para acessibilidade e conveniência foi de 3,84
(0,84). Mais importante, todos os pacientes estavam muito satisfeitos com seu papel
no processo de tomada de decisão.
Tabela 2
|
Pré-operativo ATPM
|
ATPM (corte em papel)[*]
|
ATPM (Bone Ninja)[*]
|
Pós-operativo ATPM
|
Média
|
74,18
|
87,63
|
87,86
|
87,95
|
Desvio Padrão
|
2,26
|
0,78
|
0,94
|
0,72
|
Intervalo de Confiança (95,0%)
|
1,03
|
0,34
|
0,44
|
0,31
|
Limite Superior
|
75,21
|
87,97
|
88,30
|
88,26
|
Limite Inferior
|
73,15
|
87,29
|
87,42
|
87,64
|
Discussão
Tradicionalmente, o planejamento da deformidade é realizado pelo traçado e corte no
papel, juntamente com a rotação em torno de um alfinete ou tachinha. Esse processo
complicado começou com a preparação de um esboço ou traço dos ossos afetados, seguido
de medições usando réguas, transferidores e goniômetros.[6]
[7] Essas ferramentas funcionavam bem com raios-X impressos. Na era digital atual, a
maioria das radiografias agora são imagens na tela do computador. Lápis e goniômetros
não se adaptam bem ao novo meio digital. Isso resultou na evolução de várias ferramentas
de Sistema de Arquivamento e Comunicação de Imagens (Picture Archiving and Communication
System [PACS, na sigla em inglês]) para planejamento de deformidades.[8] Com o PACS, há menos chances de uma imagem ser perdida, roubada ou rotulada incorretamente.
As ferramentas digitais comumente usadas incluem TraumaCad (Brainlab, Munich, Germany),
Adobe Photoshop (Adobe inc., California, USA), and PeekMed (Peek Health SA, Braga,
Portugal).[11] O objetivo dessa inovação é realizar o planejamento pré-operatório e a simulação
dos resultados esperados antes da cirurgia.
O TraumaCad, introduzido em 2005, permite que os cirurgiões avaliem e manipulem imagens
digitais enquanto executam o planejamento cirúrgico pré-operatório para osteotomias
corretivas e alongamento de membros.[9] A versão móvel do software foi lançada em 2015. Também possui recursos integrados,
como calculadora de crescimento, módulo de análise de deformidade pediátrica do quadril
e um módulo de estrutura espacial especializado de Taylor. Tem sido utilizado para
a avaliação da orientação do copo acetabular na prótese de recapeamento do quadril
por Westacott et al.[12] e descobriu-se que se correlacionava bem com a tomografia computadorizada (TC).
Stefanou et al.[13] utilizaram o TraumaCad em seu estudo sobre avaliação radiográfica do alongamento
dos membros inferiores em pacientes acondroplásticos usando o Quadro de Ilizarov.
Segev et al.[14] relataram boa confiabilidade dessa ferramenta em termos de variabilidade intra e
interobservadores e sugeriram seu uso no planejamento de deformidades em ortopedia
pediátrica. O planejamento pré-operatório para substituição articular, controle de
fraturas e deformidades pediátricas de membros inferiores usando sistemas de software
digitalizados, como o TraumaCad, também foi recomendado por Steinberg et al.[15] Apesar de suas várias vantagens, acreditamos que o alto custo e complexidade do
software foram um impedimento para seu uso globalmente.
O aplicativo móvel Bone Ninja é uma ferramenta de ensino desenvolvida por Standard
e Herzenberg no Centro Internacional para Alongamento de Membros no Sinai Hospital
de Baltimore em 2012.[16] Foi desenvolvido para ajudar os cirurgiões a aprender a analisar deformidades ósseas
longas e simular osteotomias desenhando linhas, medindo ângulos, medindo comprimentos
e manipulando fragmentos ósseos. Para iniciantes, estão disponíveis várias lições
sobre alinhamento normal dos planos frontal e sagital, deformidades nos planos frontal
e sagital, deformidades no plano oblíquo, deformidades de duplo nível, deformidades
nos pés e tornozelos, discrepância no comprimento dos membros e alguns capítulos especiais
sobre novos métodos de planejamento de deformidades. O aplicativo também fornece uma
solução recomendada para cada lição, para que o cirurgião possa receber feedback,
e permite que as lições atuais sejam baixadas da Web. Recursos adicionais incluem
a opção de adicionar material virtual, como fixadores monolaterais, placas, parafusos
e fixadores de seis eixos à imagem para ajudar a decidir o nível de posicionamento
dos elementos transósseos. Hambardzumyan et al.[17] sugeriram que é uma ferramenta educacional útil, resultando em melhor entendimento
e menos conflitos de decisão e expectativas irreais por parte dos pacientes. Whitaker
et al. compararam PACS e Bone Ninja para avaliação da discrepância e alinhamento do
comprimento dos membros inferiores e não relataram diferença estatística entre as
duas modalidades.[18]
No presente estudo, a aplicação Bone Ninja tem sido extremamente benéfica em termos
de educação do paciente e preparação do cirurgião. Isso foi avaliado pelas versões
mais curta, em inglês e em hindi, do Questionário de Satisfação do Paciente (PSQ-18),
que é um questionário de 18 itens que abrange cada um dos 7 aspectos da satisfação
com o atendimento médico.[19]
[20] Os resultados indicaram que os níveis de satisfação foram maiores para a comunicação,
o que implica que os pacientes percebem que o procedimento foi bem explicado, o que
pode ter afetado sua tomada de decisão em certa medida. Curvas curtas de aprendizado,
recursos fáceis de usar, previsão precisa de correção juntamente com baixos custos
fizeram desta aplicação nossa ferramenta preferida de planejamento e avaliação pré-operatória.
Uma possível limitação do presente estudo foi o tamanho da amostra, o que pode justificar
a necessidade de estudos adicionais baseados nos níveis de satisfação do paciente.
Conclusão
A literatura atual apoia o uso de programas de software digital para análise radiográfica
de deformidades ortopédicas. Bone Ninja é um software educacional e de planejamento
eficaz, conveniente e econômico que substitui o método trabalhoso de traçar em papel
e com tesoura. No entanto, até a presente data, existem muito poucos dados publicados
para validar o Bone Ninja como uma ferramenta de planejamento para correção de deformidades.