Palavras-chave joelho - luxação patelar - instabilidade articular - ligamentos - recidiva
Introdução
A instabilidade femoropatelar é uma queixa bastante desafiadora na prática clínica.
Contudo, suas manifestações maiores, a luxação femoropatelar aguda e recidivante,
são pouco frequentes. A luxação aguda ocorre em apenas entre 2 a 3% dos traumas de
joelho, e a falha de seu reconhecimento é uma das causas mais frequentes de erro diagnóstico
nos casos de lesões agudas do joelho.[1 ]
Os casos agudos de luxação femoropatelar tradicionalmente recebiam tratamento conservador
até o conhecimento do ligamento femoropatelar medial (LFPM), que culminou numa importante
mudança dos princípios de tratamento. Vários autores sugerem o reparo ou a reconstrução
deste ligamento nos casos agudos, evitando as recidivas da primoluxação que chegam
a > 50%.[2 ]
[3 ]
[4 ]
[5 ]
Os fatores predisponentes sempre foram muito valorizados, especialmente nos casos
crônicos, sendo que o chamado “menu à la carte ” dominou a linha terapêutica. Hoje, após o conhecimento e ampla assimilação do LFPM
desde o início dos anos 2000, a reconstrução do LFPM assumiu um papel fundamental
no tratamento dos casos de instabilidades patelares.[6 ]
Nosso grupo reconheceu e estudou o LFPM[7 ] e passou inicialmente a repará-lo nos casos agudos e em alguns casos crônicos.[2 ] Devido a algumas falhas no reparo, passamos a reconstruí-lo nos casos agudos e crônicos.
Este estudo culminou no desenvolvimento da técnica utilizando o terço medial do tendão
patelar como enxerto,[8 ] e em sua validação em casos agudos em comparação com tratamento conservador sem
nenhum caso de recidiva da luxação em 38 meses de acompanhamento.[3 ]
[9 ]
O presente trabalho tem a intenção de descrever complicações maiores e recidivas tardias
após um mínimo de 5 anos de acompanhamento em pacientes que, após a luxação aguda
ou recidivante da patela, tiveram o LFPM reconstruído com o terço medial do tendão
patelar, com ou sem medialização da tuberosidade anterior da tíbia (TAT) associada.
Métodos
Foram incluídos pacientes tratados pelos autores entre 2005 e 2015 que apresentavam
instabilidade femoropatelar e foram submetidos a cirurgia de reconstrução do LFPM
com enxerto do terço medial do tendão patelar e tiveram mínimo 5 anos de acompanhamento.
Todos os pacientes seguiram o protocolo institucional de reabilitação realizado pela
mesma equipe. O diagnóstico de instabilidade patelar era confirmado após a avaliação
da história, da realização de exame clínico sugestivo realizado por médico experiente
em cirurgia do joelho, e por imagem compatível (radiografia e ressonância magnética
[RM]).
A luxação foi classificada no presente trabalho como aguda quando tratada nos primeiros
90 dias da primoluxação traumática, e crônica após este período ou quando era recidivante
(≥ 2episódios de luxação completa da patela).
Todos os pacientes, previamente à realização da cirurgia, foram avaliados através
de radiografias e tomografia computadorizada (TC) seguindo os preceitos de Dejour
et al.,[10 ]
[11 ] e também por RM de acordo com a experiência do nosso grupo.[12 ]
[13 ]
[14 ]
[15 ] Foram avaliados a altura da patela, displasia troclear, o alinhamento eixo anatômico,
a distância da tuberosidade anterior da tíbia ao sulco troclear (TAGT) e lesões condrais.
Foram incluídos apenas pacientes que não possuíam indicação para abaixamento da patela
(índice Caton-Deschamps > 1,3), trocleoplastia (displasia troclear tipo B e D com
bump > 5mm), tratamento cirúrgico de lesão condral ou osteotomias corretivas para
eixo. Como procedimento associado à reconstrução do LFPM, foi aceita inclusão apenas
de medialização da TAT pela cirurgia de Elmslie-Trillat[16 ] nos casos de TAGT ≥ 20mm ([Figura 1 ]).
Fig. 1 Corte axial de tomografia computadorizada com medida da distância da tuberosidade
anterior da tíbia ao sulco troclear de 20mm.
Para a reconstrução do LPFM utilizou-se 0,5 cm da parte medial do tendão patelar,
com desinserção tibial e mantendo inserção na patela, com descolamento subperiostal
até o terço proximal da patela na posição anatômica do ligamento.[8 ]
[17 ] O enxerto preparado é então fixado no côndilo femoral medial, em um ponto proximal
e posterior ao epicôndilo medial, entre este e o tubérculo dos adutores,[17 ]
[18 ] como mostrado na [Figura 2 ].
Fig. 2 A – Preparo de 0,5 cm medial do tendão patelar até a transição entre o terço proximal
e o médio da patela. B – Fixação do enxerto entre o epicôndilo medial e o tubérculo
dos adutores.
Para os pacientes com indicação da técnica de Elmslie-Trillat apud Gomes et al.,[19 ] a medialização da TAT foi suficiente para corrigir a TAGT para um valor entre 10
e 15 mm, sendo realizada fixação com parafuso esponjoso. Com o joelho em 90° de flexão,
era checado se a patela se apresentava centrada aos côndilos e se a TAT se encontrava
alinhada com o sulco troclear para definir a posição final da correção. A reconstrução
do LFPM seguia exatamente os mesmos passos descritos acima.
Os pacientes eram orientados a utilizar imobilizador por 1 semana e muletas por 15
dias após o procedimento. A fisioterapia iniciou-se nos primeiros dias de pós-operatório
e estendeu-se por 2 a 3 meses. O objetivo era o ganho total de movimento e a recuperação
da força muscular.
O acompanhamento mínimo foi de 5 anos. A ocorrência de complicações foi determinada
na última consulta do paciente, a qual define o tempo final de acompanhamento.
Os pacientes foram divididos em dois grupos a critério dos autores de acordo com a
presença das seguintes complicações maiores:
Bom resultado: retorno ao mesmo nível de atividade física anterior à luxação e ausência
de novas luxações ou de queixa de instabilidade subjetiva;
Mau resultado: incapacidade de retornar aos níveis prévios de atividade física, limitação
articular (rigidez com perda > 10° da amplitude de movimento do joelho), ocorrência
de novos episódios de luxação (recidiva), ou instabilidade subjetiva sintomática relatada
pelo paciente.
Resultados
Foram incluídos 50 pacientes. Destes, 23 (46%) eram casos agudos e 27 (54%) eram casos
crônicos. O sexo feminino foi o mais frequentemente acometido, com 32 (64%) pacientes,
sendo o lado direito acometido em 26 (52%) pacientes.
A maior parte dos pacientes tinha < 30 anos, com média de 27 anos ± 11,2 anos, mínimo
de 14 e máximo de 58 anos, e com a seguinte distribuição:
< 20 anos: 18 casos (36%);
De 20 a 30 anos: 14 casos (28%);
De 30 a 40 anos: 13 casos (26%);
> de 40 anos: 5 casos (10%).
Em relação ao tempo de acompanhamento:
Foram avaliados os fatores predisponentes (patela alta, tróclea displásica, inclinação
lateral patelar e eixo anatômico em valgo). Entre os 23 pacientes com episódios agudos,
15 (70%) tinham ao menos um fator predisponente. A patela alta (Caton-Deschamps entre
1,2 e 1,3) foi o mais frequente e ocorreu em 8 pacientes. Entre os 27 casos crônicos,
apenas 2 não possuíam um fator predisponente. A patela alta foi o mais frequente e
ocorreu em 13 pacientes. Não tivemos nenhum paciente com valgo > 15°.
Quanto à medialização da TAT, o realinhamento distal foi feito em 5 (21,7%) casos
entre os agudos e em 7 (26%) casos entre os crônicos.
A casuística global apresentou 41 resultados bons (82%) e 9 maus (18%). Os pacientes
jovens (< 30 anos) tiveram 78% dos maus resultados, com 3 casos de mau resultado até
20 anos (16,7% da faixa etária), 4 entre 20 e 30 anos (28,6% da faixa etária), sendo
apenas 2 nos pacientes > 30 anos (11% da faixa etária).
Quanto ao momento da cirurgia, 5 (55%) dos maus resultados foram em pacientes com
luxação aguda (21,7% destes), contra 4 (45%) em casos crônicos (14,8% destes).
O principal critério de mau resultado foi a ocorrência de um novo episódio de luxação
(6 dos 9 casos; 67%), todos ocorrendo entre o 3° e o 5° ano de acompanhamento. Destes,
3 pacientes eram casos agudos, o que equivale a 50% das recidivas da instabilidade
na casuística. Os outros três casos com mau resultado consistiram em queixas de instabilidade
subjetiva, sem manifestação de luxação completa. Entre os 12 pacientes submetidos
ao realinhamento distal, e apenas 1 caso (8%) crônico apresentou mau resultado devido
a nova luxação. Não houve nenhum caso de rigidez ou de incapacidade de retorno às
atividades prévias que não fosse a recidiva da instabilidade.
Os dados encontram-se resumidos na [Tabela 1 ], e os casos separados em bom e mau resultado na [Tabela 2 ].
Tabela 1
GÊNERO
Masculino
18 (36%)
Feminino
32 (64%)
LADO
Direito
26 (52%)
Esquerdo
24 (48%)
IDADE
27 ± 11,2 anos
mín-máx 14-58
ACOMPANHAMENTO
8,9 ± 2,6 anos
mín-máx 6-15
OSTEOTOMIA TAT
12 (24%)
TIPO INSTABILIDADE
Aguda
23 (46%)
Crônica
27 (54%)
RESULTADO
Bom
41 (82%)
Mau
9 (18%)
MOTIVO MAU RESULTADO
Recidiva
6 (67% dos maus, 12% do total)
Instabilidade subjetiva
3 (33% dos maus, 6% do total)
Tabela 2
Bom resultado (n = 41)
Mau resultado (n = 9)
GÊNERO
Masculino
14 (34%)
4 (44%)
Feminino
27 (66%)
5 (56%)
LADO
Direito
22 (54%)
4 (44%)
Esquerdo
19 (46%)
5 (56%)
IDADE (anos)
27,2 ± 11,3
26,1 ± 11,1
ACOMPANHAMENTO (anos)
8,8 ± 2,5
8,9 ± 3
OSTEOTOMIA TAT (n = 12)
11 (92% das osteotomias)
1 (8% das osteotomias)
TIPO INSTABILIDADE
Aguda
18 (44%)
5 (56%)
Crônica
23 (56%)
4 (44%)
MOTIVO MAU RESULTADO
Nova luxação: 6 (67%);
Instabilidade subjetiva: 3 (33%)
Discussão
A principal importância do presente trabalho é descrever as complicações dos pacientes
agudos e crônicos com luxação femoropatelar, tratados pela reconstrução do LFPM com
o terço médio do tendão patelar, após um mínimo de 5 anos de acompanhamento.
A discussão quanto à indicação cirúrgica ou conservadora da luxação aguda da patela
foi extensa nos trabalhos prévios do grupo, nos quais demonstramos percentuais de
falha > 35 a 50% em até 2 anos nos pacientes que tiveram suas luxações tratadas conservadoramente.[2 ]
[3 ] Similarmente, Maenpää et al.[20 ] demonstram percentuais > 50% de recidiva da luxação em 100 pacientes tratados de
forma conservadora após uma média de 13 anos de acompanhamento, índice muito maior
do que as falhas cirúrgicas ocorridas na presente casuística (18%), com acompanhamento
médio de 9 anos.
Fatores predisponentes são muito prevalentes em pacientes com instabilidade patelar.[10 ] Dos 23 pacientes com quadro agudo, 15 tinham fatores predisponentes, sendo 8 casos
de patela alta. Dos 27 casos crônicos, 25 tinham algum fator predisponente, sendo
13 com patela alta. Nenhum caso de distalização foi incluído; nenhum dos pacientes
apresentava índice de Caton-Deschamps > 1,3.
O realinhamento distal feito em 12 pacientes não trouxe nenhum problema adverso. Uma
porcentagem discretamente maior de casos crônicos foi submetida ao realinhamento distal.
Acreditamos que este fato era esperado, uma vez que casos que desenvolvem instabilidade
recidivante/crônica tendem a possuir um perfil anatômico mais displásico.[10 ]
A distribuição quanto ao gênero, lado e idade foi semelhante às casuísticas estudadas
anteriormente pelo grupo, sendo representativa da população portadora de instabilidade
patelar.
Os resultados encontrados reafirmam nossa prática de indicação da reconstrução do
LFPM, associada ou não ao realinhamento distal, como efetiva no tratamento da luxação
da patela, seja ela aguda ou recidivante. Os resultados da reconstrução do LFPM no
tratamento das luxações agudas com a técnica descrita já foram publicados pelo nosso
grupo, com ausência de episódios de luxação após acompanhamento de 38 meses.[3 ] Achados similares são encontrados em vários estudos de luxações agudas, já incluídos
em meta-análises.[5 ] A ocorrência de recidiva da instabilidade após esse período (todos nossos casos
ocorreram após 36 meses), chama a atenção para o fato de que o resultado do tratamento
da instabilidade patelar deve ser avaliado a longo prazo, pois os pacientes apresentam
variados graus de displasia, muitas vezes limítrofes e sem indicação de correção,
mas que mantém um risco de instabilidade maior do que o da população normal. Neste
sentido, os pacientes com instabilidade patelar merecem atenção por muito mais tempo
que um paciente submetido a reconstrução do ligamento cruzado anterior por exemplo.
Em relação ao tratamento das instabilidades crônicas/recidivantes, poucos estudos
comparativos são encontrados, sendo que a maioria dos dados provém de séries de casos.
Vavalle et al.[21 ] publicaram 16 casos de reconstrução do LFPM com bons resultados após 38 meses de
acompanhamento em pacientes portadores de luxação femoropatelar crônica. Os autores
utilizaram o tendão quadricipital como enxerto para reconstrução. Não houve casos
de novas luxações na série relatada.[21 ] Slenker et al.[22 ] estudaram 35 pacientes com instabilidade femoropatelar crônica com episódios de
luxação, tratados pela reparação do LFPM, feita com aloenxerto em 23 casos e com tendão
da pata de ganso em 12. Os autores obtiveram bons resultados após um acompanhamento
médio de 21 meses, com melhora do índice de Kujala de 49 no pré-operatório para 89,5
no pós-operatório.[22 ] Uma revisão sistemática recente incluiu apenas cinco estudos de instabilidade recidivante,
concluindo apenas que a reconstrução do LFPM apresenta escores clínicos superiores
em relação à cirurgia de plicatura medial.[23 ]
Não fizemos uma avaliação numérica de escores funcionais dos resultados, utilizando
métodos quantitativos, como o de Kujala et al.[24 ] Essa avaliação já foi publicada em outros trabalhos, em comparação de métodos de
tratamento, cirúrgico e conservador; os resultados foram muito melhores nos pacientes
submetidos a tratamento cirúrgico pela reparação ou pela reconstrução do LFPM. Nossos
estudos prévios mostraram uma média do Kujala de 89 pontos após 3 anos de acompanhamento,
bastante similar ao restante da literatura e de outras técnicas e enxertos.[25 ] A funcionalidade dos pacientes se manteve nos anos seguintes, exceto naqueles que
sofreram recidiva da instabilidade. Devemos realçar que pacientes portadores de instabilidade
femoropatelar recidivante, em geral, não se dedicam a prática esportiva de alto nível
pela própria limitação causada pela doença, portanto as operações devolveram estes
pacientes a sua atividade anterior às luxações, porém sem a instabilidade, na maioria
dos casos. O objetivo aqui é descrever, em um tempo de acompanhamento maior, a ocorrência
de falhas importantes como recidiva da luxação. Fica evidenciada a necessidade de
acompanhamento de longo prazo pelo fato da ocorrência das recidivas ser mais tardia.
Outra limitação do presente estudo é não avaliar a evolução de degeneração da articulação
femoropatelar. São necessários estudos de longo prazo para verificarmos a ocorrência
de artrose nestes pacientes, definindo o risco de cada procedimento corretivo e de
cada alteração anatômica não corrigida evoluir para degeneração.
Conclusão
A reconstrução do LFPM com terço medial do tendão patelar, associada ou não à osteotomia
de medialização da TAT, é uma alternativa no tratamento da instabilidade patelar aguda
ou crônica, com falha de apenas 18% em acompanhamento mínimo de 5 anos. Além disso,
é um tratamento seguro, sem apresentar outras complicações.
Fig. 3 Medialização da tuberosidade anterior da tíbia fixada com um parafuso esponjoso (segundo
técnica de Elmslie-Trillat).