Palavras-chave
anquilose - articulação do quadril - artrite infecciosa -
Escherichia coli
Introdução
Em adultos que apresentam artrite monoarticular aguda, é fundamental considerar a
artrite séptica, que geralmente se localiza nas articulações do joelho e do quadril.[1]
[2] Atrasos na prescrição de antibióticos adequados nas primeiras 48 horas de início
dos sintomas podem resultar em perda óssea subcondral e disfunção articular permanente.[1]
Muitos isolados bacterianos foram relatados na etiologia da artrite séptica. A etiologia
mais comum é o Staphylococcus aureus, responsável por 37% a 65% dos casos, dependendo da distribuição geográfica, da incidência
da doença reumática comórbida, e da proporção de infecções envolvendo articulações.
Há um aumento nas afecções articulares causadas por S. aureus resistente à meticilina (methicillin-resistant S. aureus, MRSA, em inglês), particularmente em idosos e pacientes recentemente submetidos
a cirurgia ortopédica. Os bacilos Gram-negativos representam de 5% a 20% dos casos.
Os organismos Gram-negativos mais comuns são Pseudomonas aeruginosa e Escherichia coli, geralmente em pacientes com histórico de uso de drogas intravenosas, recém-nascidos,
idosos, e pacientes imunodeficientes.[1]
[2]
[3]
[4]
Os fatores de risco independentes em casos de artrite infecciosa incluem bacteriúria,
envolvimento articular do quadril, e uso de esteroides. Idade avançada e fragilidade,
imunidade comprometida, infecções de pele, infecção do trato urinário recorrente,
e cirurgia abdominal recente são fatores de risco previamente conhecidos para artrite
infecciosa. No entanto, as evidências ainda não estão claras.[4]
[5]
Este artigo tem como objetivo apresentar um caso de artrite de quadril supurativa
de longa duração sem infecções anteriores ou doenças causadas por E. coli.
Relato de caso
Um aposentado de 70 anos, que pesava 80 kg, não fumante, não alcoólatra, sem qualquer
doença concomitante e cirurgias anteriores. Ele trabalhava como segurança de uma escola
primária, e foi internado na clínica de ortopedia e traumatologia devido a uma fístula
com secreção e vermelhidão em volta da região do trocânter maior do fêmur direito
([Fig. 1]).
Fig. 1 Fístula supurativa por artrite do quadril.
Ele relatou não ter histórico de dor e febre. Os movimentos da articulação do quadril
direito estavam limitados a flexão de 30°, abdução de 10°, e sem rotação. O paciente
mancava enquanto caminhava devido ao encurtamento da perna de ∼ 5 cm. De acordo com
seu histórico de vida, aos 12 anos, ele sofreu um trauma contundente em um acidente.
Por 58 anos consecutivos, o paciente relata que a fístula esteve presente em seu membro,
secretando pus. Ao dar entrada no hospital, a radiografia simples e a fistulografia
por raios-X revelaram foco de infecção localizado na epífise femoral ([Fig. 2]).
Fig. 2 Radiografia simples de bacia, evidenciando anquilose do quadril direito.
As investigações laboratoriais mostraram uma taxa de sedimentação ligeiramente elevada
(22/45), e o resultado do exame dos níveis de proteína C-reativa (PCR) foi de 12 mg/l.
Outras investigações respiratórias, digestivas, e do trato urinário eram resultados
completamente normais, e não apontaram nenhuma doença concomitante. A urinálise também
apresentou valores médios. Após exame clínico e avaliação laboratorial, em fevereiro
de 2017, foi realizada intervenção cirúrgica sob anestesia espinhal. Da amostra colhida
dentro da cavidade óssea pela curetagem, E. coli foram isolados dos focos purulentos como bactérias causais, e esse isolado foi sensível
a cefalosporinas de terceira geração, gentamicina e fluoroquinolones, mas resistente
à amoxicilina e tetraciclina. Após a remoção da fístula da pele e do osso, e de irrigação,
foram introduzidas 15 pérolas de cadeia de gentamicina ([Fig. 3]).
Fig. 3 Fístula óssea ampliada preenchida com 15 pérolas de cadeia de gentamicina.
O dreno foi removido 48 horas após a intervenção. O paciente foi tratado com ceftriaxona
2 g durante a intervenção, ceftriaxona 2 g 2 vezes ao dia nas primeiras 3 semanas
após a intervenção, e ciprofloxacino 750 mg 2x vezes ao dia por mais 3 semanas. Quatro
meses após a intervenção, a fístula serosa foi completamente curada. As taxas de sedimentação
sanguínea diminuíram para 18/30, e o teste de PCR foi negativo. Nove meses após a
intervenção, as taxas de sedimentação caíram para 6/12, e o teste de PCR continuou
negativo. Um ano após o manejo cirúrgico, considerando a normalização dos resultados
laboratoriais, a radiografia simples, a condição clínica, e o melhor interesse do
paciente, sugerimos continuar com o plano de tratamento e remover as pérolas da cadeia
de gentamicina e a endoprótese do quadril. O paciente recusou, por sua satisfação
com os resultados da intervenção. Ele andava mancando usando sapatos ortopédicos,
sem usar muletas ou qualquer outro tipo de auxílio. Como cuidamos muito bem de nossos
pacientes, honramos a autonomia do nosso paciente para decidir e, posteriormente o
encaminhamos para gestão conservadora e acompanhamento. Quatro anos após a intervenção
cirúrgica ser realizada, as pérolas da cadeia de gentamicina ainda estão dentro do
osso ([Figs. 4] e [5]). Nenhum efeito colateral, como vermelhidão, inchaço, calor, otoxicidade, ou nefrotoxicidade
foi relatado até o momento.
Fig. 4 Cicatriz pós-operatória na região do trocânter maior sem fístula e vermelhidão.
Fig. 5 Radiografia simples do quadril direito mostrando a contenção das pérolas de gentamicina.
Discussão
A artrite séptica é uma infecção aguda da articulação que ocorre mais comumente em
crianças pequenas; é principalmente monoarticular, e está frequentemente localizada
nas articulações do joelho e do quadril.[2] A incidência de artrite séptica tem uma ampla gama, entre 4 e 29 casos por 100 mil
habitantes/ano. A rota mais comum de entrada na articulação é a propagação hematógena
durante a bacteremia. Os patógenos também podem entrar por inoculação direta (por
exemplo: por artrose, artroscopia, trauma) ou se propagar continuamente por infecções
locais (por exemplo: osteomielite, bursite séptica, abscesso).[1]
Apesar de inúmeros fatores de risco independentes,[4]
[5] infecções de quadril por E. coli podem ocorrer sem qualquer histórico anterior da doença.
Devido a alguns organismos mais virulentos, como S. Aureus produtor de superantígeno e certos bacilos Gram-negativos, o desfecho em pacientes
com artrite séptica é ruim, apesar da ótima terapia. A limpeza de material purulento
por métodos cirúrgicos é necessária, e então os antibióticos são ajustados com base
nos resultados de cultura e sensibilidade. A drenagem adequada da articulação é um
método preferencial de intervenção.[1]
[2]
[3]
Além da cirurgia, da administração intravenosa e oral dos antibióticos, em nosso tratamento
também realizamos a aplicação local de antibióticos na forma de pérolas de gentamicina.[6]
Não consideramos a opção de uma ressecção do tipo Girdlestone durante o primeiro procedimento
porque o paciente não relatou dor. Este procedimento teria encurtado mais o comprimento
da perna e aumentado a anormalidade assimétrica da marcha, o que tornaria a caminhada
mais difícil, e a tendência de mancar, mais óbvia e enfatizada.[7]
E. coli raramente é o organismo causador da artrite supurativa aguda, e muitas revisões da
literatura sobre artrite supurativa aguda não mencionam o seu papel. Além disso, mesmo
na forma não supurativa, a artrite é uma manifestação incomum da septicemia por E. coli.
[8]
A artrite séptica causada pela bactéria E. coli pode ficar ativa por décadas, secretando e se isolando. Diagnóstico imediato, intervenção
cirúrgica adequada e terapia antimicrobiana são essenciais no tratamento, até mesmo
em casos de infecção de longa duração. Complicações da articulação, como a anquilose,
podem ocorrer.