Palavras-chave analgesia - anestesia - articulação do quadril - bloqueio nervoso - cadáver - traumatismos
dos nervos periféricos
Introdução
A cápsula articular anterior do quadril é a região que recebe a maior parte da inervação
sensitiva de toda a articulação.[1 ] Estudos anatômicos[2 ]
[3 ]
[4 ] evidenciaram que sua inervação sensorial é proveniente de ramos do nervo femoral,
do nervo obturatório, e do nervo obturatório acessório.
Em 2018, Girón-Arango et al.[5 ] descreveram a técnica de bloqueio do grupo de nervos pericapsulares (pericapsular nerve group , PENG, em inglês) do quadril, que consiste na infusão de anestésico na região, sendo
sua punção guiada por ultrassonografia (USG). Tomam-se como parâmetros alguns pontos
de referência anatômicos e de imagem ultrassonográfica, e busca-se atingir por dispersão
anestésica a região da cápsula anterior do quadril e seus ramos nervosos sensitivos.[1 ]
A técnica vem sendo descrita para manejo da dor, seja para analgesia de pacientes
após fraturas do fêmur proximal ou para controle álgico pós-operatório de cirurgias
do quadril, com baixo custo e bons resultados, e evita o uso e os efeitos colaterais
dos opioides analgésicos.[5 ]
[6 ]
[7 ]
[8 ]
O bloqueio do PENG do quadril foi originalmente descrito com a utilização de USG para
guiar a injeção da agulha e infusão do anestésico, mas uma das dificuldades do ortopedista
é a disponibilidade do aparelho de ultrassonografia em todos seus setores e níveis
de atendimento.
Por isso, propusemos a realização do bloqueio do PENG do quadril não guiado por USG,
com o objetivo de comparar o resultado da infiltração, com base apenas em parâmetros
anatômicos, com o da técnica guiada por USG.
Na hipótese de que é possível a realização da técnica sem o auxílio da imagem, o bloqueio
pode ser empregado em diversas estratégias, tanto no atendimento pré-operatório e
no manejo da dor quanto no seguimento e nos cuidados pós-operatórios, com menos necessidade
de aparelhamento especial.
Materiais e Métodos
Trata-se de estudo anatômico randomizado, descritivo e comparativo, desenvolvido no
Grupo de Quadril de um hospital-escola e executado no Serviço de Verificação de Óbitos
da Capital (SVOC) da prefeitura de São Paulo, no qual a equipe de estudos está devidamente
inscrita sob o ofício de número 18/2022. O estudo seguiu a normativa do SVOC, e foi
aprovado pelo comitê de ética de nossa instituição (CAAE 58212220.9.0000.5479).
Foram incluídos no estudo uma amostra de 20 cadáveres, com 40 quadris não formolizados,
e foram excluídos 4 cadáveres com corpos esqueleticamente imaturos.
Procedimentos
Em um estudo paralelo, Tran et al.[9 ] compararam tecnicamente a infusão de injeções de 10 ml e de 20 ml de corante azul
de metileno em quadris cadavéricos, e concluíram que, embora a dispersão de 20 ml
fosse mais extensa, ambas injeções coraram toda a região entre o iliopsoas e a cápsula
anterior do quadril, na qual Gerhardt et al.[1 ] identificaram os ramos nervosos nociceptivos.
O presente estudo se baseou na infiltração de 20 ml de azul de metileno, também com
o intuito de mimetizar o anestésico utilizado no bloqueio descrito originalmente por
Girón-Arango et al.[5 ] para visualizar, após dissecção anatômica, o aspecto e a dispersão do corante pela
região da cápsula anterior, comparando-se os métodos com e sem auxílio de USG.
No primeiro grupo (G1), composto aleatoriamente pelos primeiros 10 cadáveres (20 quadris),
a infiltração foi realizada seguindo a técnica com posicionamento e punção da agulha
de bloqueio anestésico propostos por Girón-Arango et al.,[5 ] mas tomando-se como parâmetros apenas as estruturas anatômicas locais descritas
neste trabalho, sem a visualização direta das estruturas adjacentes com a utilização
do aparelho de USG. Nos outros 10 cadáveres (G2, com 20 quadris), realizamos a técnica
convencional de infiltração guiada pela USG.
Técnica das Infiltrações
O cadáver foi posicionado em decúbito dorsal horizontal (DDH) e sem tração, com o
quadril em posição neutra. A infiltração sem o auxílio de USG foi realizada no G1
seguindo-se estes passos:
Identificação por palpação da espinha ilíaca anterossuperior (EIAS) e da sínfise púbica
(SP), e traçado de uma linha reta entre os pontos.
Divisão do segmento em três partes iguais e demarcação do ponto médio do terço lateral
para o ponto de entrada da agulha ([Fig. 1 ]).
Uma agulha descartável para raquianestesia (Spinocan, B. Braun, Melsungen, Alemanha)
de tamanho 0,7 × 88 mm, 22 G x 3.5” é posicionada no ponto demarcado, a aproximadamente
1 cm da borda medial da EIAS, com inclinação de 70° em direção inferomedial e ao ponto
médio da linha que liga a EIAS e a SP ([Fig. 2 ]).
A agulha é introduzida até que toque no osso.
Regride-se a agulha cerca de 1 mm, e infiltram-se 20 ml de azul de metileno de forma
lenta e contínua.
Fig. 1 Segmento demarcado entre a espinha ilíaca anterossuperior (EIAS) e a sínfise púbica
(SP).
Fig. 2 Inclinação de 70° para inserção da agulha no ponto médio do terço lateral.
A técnica com auxílio de USG, realizada no G2, consiste em:
Com o paciente também em DDH, uma sonda convexa de baixa frequência (2–5MHz) de USG
(Sonosite Edge II, Fujifilm Healthcare, Lexington, MA, Estados Unidos) é posicionada
sobre o ponto médio do terço lateral do segmento demarcado na [Fig. 1 ] em plano transverso com rotação anti-horária de 45° da sínfise púbica ([Fig. 3 ]).
Visualizando o tendão e músculo do iliopsoas, a artéria e as veias femorais, é inserida
a agulha de mesma especificação até o plano entre as estruturas do iliopsoas anteriormente
e o ramo iliopúbico, com a iminência iliopectínea posteriormente ([Fig. 4 ]).
São infundidos 20 ml de corante na região.
Realizamos dissecção da região e analisamos a correlação e a distância entre a agulha
e as estruturas nobres locais pelas diferentes técnicas.
Fig. 3 Posicionamento da sonda no ponto médio do terço lateral do segmento demarcado e com
inclinação de 45° da SP.
Fig. 4 Imagem ultrassonográfica do trajeto da agulha, evidenciado pela seta. Abreviaturas:
AF, artéria femoral; EIAI, espinha ilíaca anteroinferior; RIP, ramo iliopúbico; TP,
tendão do músculo iliopsoas; VF, veia femoral.
Análise das Infiltrações
A confiabilidade da injeção por ambas as técnicas foi registrada pelo número de tentativas
de punção necessárias para atingir a esperada locação da agulha junto ao osso, na
iminência iliopectínea do ramo iliopúbico.
A dissecção da região anterior do quadril foi realizada por meio de retalho de pele
quadrangular cujo ápice encontra-se na linha entre a EIAS e a SP e a base entre a
prega glútea inferior e a linha média da coxa, estendendo-se pela face anterolateral
do quadril ([Fig. 5 ]). Após a dissecção, foi realizada a identificação da EIAS, da espinha ilíaca anteroinferior
(EIAI), do ligamento inguinal, do feixe vasculonervoso femoral, da cápsula articular,
e do tendão e do músculo iliopsoas.
Fig. 5 Retalho de pele quadrangular para dissecção.
Após a identificação das estruturas anatômicas, foram avaliadas a integridade do feixe
vasculonervoso, devido a eventuais lesões por erro de trajeto e suas correlações com
o pertuito, bem como a dispersão do azul de metileno pelo plano desejado e a coloração
da cápsula anterior, e a eficácia dos métodos foi comparada ([Fig. 6 ]).
Fig. 6 Músculo reto femoral (RF) rebatido para melhor visualização da dispersão do azul
de metileno com coloração da cápsula anterior.
Resultados
O G1 foi composto por 8 (80%) cadáveres do gênero masculino e 2 (20%) do gênero feminino,
com médias de idade de 70 anos e 2 meses, de peso de 59 Kg, e de altura de 168 cm.
Os dados relacionados a essa análise estão expressos na [Tabela 1 ] ([Figs. 7 ] e [8 ]).
Fig. 7 Quadris direitos do grupo submetido à técnica sem ultrassonografia, com todas as
cápsulas coradas. Abreviaturas: C1 a C10, cadáveres 1 a 10.
Fig. 8 Quadris esquerdos do grupo submetido à técnica sem ultrassonografia, com ausência
de coloração da cápsula em C10. Abreviaturas: C1 a C10, cadáveres 1 a 10.
Tabela 1
Identificação
Gênero
Idade (anos)
Altura (metros)
Peso (kilos)
C1
Masculino
70
1,73
46
C2
Feminino
77
1,44
44
C3
Masculino
69
1,76
85
C4
Masculino
93
1,63
49
C5
Masculino
64
1,68
55
C6
Feminino
62
1,73
60
C7
Masculino
48
1,66
69
C8
Masculino
52
1,7
71
C9
Masculino
78
1,76
68
C10
Masculino
89
1,7
43
O G2 foi composto por 6 (60%) cadáveres do gênero masculino e 4 (40%) do feminino,
com médias de idade de 68 anos e 6 meses, de peso de 72,6 Kg, e de altura de 169 cm.
Os dados relacionados a essa análise estão expressos na [Tabela 2 ] ([Figs. 9 ] e [10 ]).
Tabela 2
Nome
Gênero
Idade (anos)
Altura (metros)
Peso (kilos)
C11
Masculino
70
1,72
69
C12
Feminino
94
1,55
45
C13
Masculino
45
1,77
57,6
C14
Masculino
71
1,77
102
C15
Feminino
79
1,67
87
C16
Masculino
82
1,75
75
C17
Masculino
49
1,71
74
C18
Feminino
50
1,71
72
C19
Masculino
65
1,71
81
C20
Feminino
81
1,55
64
Fig. 9 Quadris direitos do grupo submetido à técnica com ultrassonografia, com ausência
de coloração da cápsula em C12. Abreviaturas: C11 a C20, cadáveres 11 a 20.
Fig. 10 Quadris esquerdos do grupo submetido à técnica com ultrassonografia, com todas as
cápsulas coradas. Abreviaturas: C11 a C20, cadáveres 11 a 20.
Na análise comparativa das dissecções realizadas, apenas em 1 quadril de cada grupo
(5%) não evidenciamos adequada dispersão do corante pela cápsula anterior. Pelas duas
técnicas, obtivemos na primeira punção a esperada localização da agulha junto ao osso
na eminência iliopectínea. Não foi observada lesão, transfixação ou coloração em estruturas
neurovasculares adjacentes à cápsula anterior. Os dados relacionados a essa análise
estão expressos nas [Tabelas 3 ] e [4 ].
Tabela 3
Identificação
Atingiu osso na primeira punção
Atingiu feixe vasculonervoso
Corou cápsula anterior direita
Corou cápsula anterior esquerda
C1
Sim
Não
Sim
Sim
C2
Sim
Não
Sim
Sim
C3
Sim
Não
Sim
Sim
C4
Sim
Não
Sim
Sim
C5
Sim
Não
Sim
Sim
C6
Sim
Não
Sim
Sim
C7
Sim
Não
Sim
Sim
C8
Sim
Não
Sim
Sim
C9
Sim
Não
Sim
Sim
C10
Sim
Não
Sim
Não
Tabela 4
Identificação
Atingiu osso na primeira punção
Atingiu feixe vasculonervoso
Corou cápsula anterior direita
Corou cápsula anterior esquerda
C11
Sim
Não
Sim
Sim
C12
Sim
Não
Não
Sim
C13
Sim
Não
Sim
Sim
C14
Sim
Não
Sim
Sim
C15
Sim
Não
Sim
Sim
C16
Sim
Não
Sim
Sim
C17
Sim
Não
Sim
Sim
C18
Sim
Não
Sim
Sim
C19
Sim
Não
Sim
Sim
C20
Sim
Não
Sim
Sim
Não houve diferença entre as técnicas com relação aos parâmetros analisados, e obteve-se,
em 95% dos casos de cada grupo, adequada dispersão do corante pela região esperada.
Discussão
A técnica proposta sem auxílio de USG apresentou resultados semelhantes quando comparada
à técnica com USG. Não houve variações nos resultados obtidos com as duas técnicas.
A falha na coloração da cápsula anterior de cada um dos grupos aconteceu nos exemplares
que apresentavam o menor peso (43 Kg e 45 Kg) e as maiores idades (89 e 94 anos) entre
os cadáveres. Isso pode ser explicado pela atrofia tecidual inerente à idade avançada
e ao menor espaço entre os planos teciduais dos indivíduos de menor peso, fator esse
que pode prejudicar a eficácia do bloqueio realizado por dispersão líquida anestésica
entre planos teciduais mais colapsados.[3 ]
Este estudo é pioneiro, e pode ajudar muito os pacientes que têm dor no quadril por
diversas causas e necessitam alívio. Vale ressaltar que o método sem USG apresenta
facilidade técnica de execução e baixo custo, pode ser realizado com materiais e insumos
hospitalares básicos, como é uma alternativa viável em situações com limitações de
acesso a aparelhos de USG em diversos setores e níveis de atendimento, e pode também
ser alternativa útil para a realização de analgesia, pois evita o uso de opioides
por via oral e seus efeitos colaterais.[5 ]
[6 ]
Este estudo apresenta a limitação de ter sido realizado em exemplares cadavéricos,
que apesar de estarem em período post mortem recente, podem apresentar alterações nos tecidos e em seus planos anatômicos.
Conclusão
O método proposto de bloqueio do PENG do quadril sem o auxílio de USG é reprodutível,
seguro, eficaz, e com alta confiabilidade quando comparado à técnica guiada por USG.