CC BY 4.0 · Revista Brasileira de Cirurgia Plástica (RBCP) – Brazilian Journal of Plastic Surgery 2025; 40: s00451809549
DOI: 10.1055/s-0045-1809549
Artigo Original

Impacto da pandemia de COVID-19 em lesões por mordedura de cães em um hospital privado no Brasil: Um estudo epidemiológico comparativo

Article in several languages: português | English
1   Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, Medicina, São Paulo, São Paulo, Brasil
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2   Hospital Israelita Albert Einstein, Departamento de Cirurgia Plástica, São Paulo, São Paulo, Brasil
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1   Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, Medicina, São Paulo, São Paulo, Brasil
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2   Hospital Israelita Albert Einstein, Departamento de Cirurgia Plástica, São Paulo, São Paulo, Brasil
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2   Hospital Israelita Albert Einstein, Departamento de Cirurgia Plástica, São Paulo, São Paulo, Brasil
› Author Affiliations

Fonte de Financiamento

Os autores declaram que não receberam financiamento para este estudo.


Ensaio Clínico

Não.


 

Resumo

Introdução

Mordeduras de cães representam um relevante problema de saúde pública, frequentemente demandando atendimento em pronto-socorro (PS). As lesões variam conforme a idade: crianças geralmente apresentam ferimentos na cabeça e pescoço, enquanto adultos são mais atingidos nas extremidades. Durante a pandemia de COVID-19, alterações nas interações entre humanos e cães foram relatadas, com alguns estudos apontando aumento das lesões por mordedura de cães (LMC) em períodos de lockdown. Este estudo investigou as tendências de LMC em um hospital privado de São Paulo, Brasil, durante a pandemia, e avaliou a demanda por consultas em cirurgia plástica.

Método

Estudo retrospectivo observacional multicêntrico que analisou casos com o código W54 da CID-10 em cinco unidades de emergência do Hospital Israelita Albert Einstein entre janeiro de 2019 e junho de 2021. Os pacientes foram divididos em períodos pré- (Grupo 1) e pós-isolamento social (Grupo 2). Dados avaliados incluíram características demográficas, data e horário das visitas, dia da semana e demanda por cirurgia plástica. As análises estatísticas foram realizadas no software R.

Resultados

Entre 1129 casos, 558 ocorreram no Grupo 1 e 571 no Grupo 2. Apesar da redução nas visitas gerais ao PS, a frequência relativa de LMC aumentou durante a pandemia (p < 0,001). Consultas de cirurgia plástica cresceram discretamente, sem significância estatística (p = 0,0775). Não houve diferenças relevantes na idade, sexo ou horário das visitas.

Conclusão

A pandemia influenciou a frequência relativa de LMC, destacando a importância de estratégias preventivas e investigações mais amplas para entender este problema.


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Introdução

As mordeduras de cães são um problema significativo de saúde pública e, com frequência, exigem atendimento em pronto-socorro (PS).[1] Essas lesões são bastante comuns em crianças, que tendem a ser acometidas na cabeça e no pescoço por feridas por esmagamento e avulsões de tecidos moles, mas também ocorrem em adultos, em especial nos membros e nas mãos, com ampla gama de gravidade e complicações.[2] [3] [4] Este estudo é um análise epidemiológica de lesões por mordedura de cães (LMCs) atendidas no PS de um hospital privado no Brasil durante a pandemia de COVID-19.

Nos Estados Unidos, as mordeduras de cães são responsáveis por cerca de 0,3% de todos os atendimentos em PS, o que representa uma incidência média de 135 casos por 100.000 habitantes.[1] No Reino Unido, a incidência de internações hospitalares por mordeduras de cães aumentou de 6,34 por 100.000 habitantes em 1998 para 14,99 por 100.000 em 2018.[5] No entanto, no Brasil, esses números aumentaram significativamente: segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), a incidência é de 255 acidentes por mordedura a cada 100 mil habitantes por ano.[6]

Durante a pandemia de COVID-19, houve um aumento notável no atendimento de lesões por ataques de cães em PS, com elevação significativa de LMCs em crianças, como documentado em diversos estudos.[7] [8] [9] [10] [11] Habarth-Morales et al. relataram um aumento significativo na incidência de LMCs em crianças durante a pandemia, com elevação de 44% em sua coorte institucional e de 25% em uma coorte nacional em relação a 2019.[7] Da mesma forma, Plana et al. constataram um aumento substancial nas LMCs em crianças durante a pandemia, com um pico notável nas consultas de emergência. O estudo destacou que a maioria das lesões ocorreu na cabeça e nos membros superiores e que uma proporção significativa precisou de intervenção cirúrgica.[8]

Essa tendência pode ser atribuída a fatores como o maior tempo gasto em casa durante o isolamento social, o ensino remoto e a elevação dos níveis de estresse, que podem ter alterado os padrões de supervisão e as interações entre crianças e cães.[7] Além disso, houve relatos de mudanças comportamentais, principalmente negativas, em animais de estimação durante o confinamento, sugerindo uma alteração das dinâmicas sociais entre tutores e cães.[12]

O Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) é um hospital terciário privado que opera quatro unidades de pronto-atendimento na região metropolitana de São Paulo, Brasil. Cada unidade possui recursos médicos abrangentes, incluindo equipes de cirurgia plástica de plantão para atendimento de casos complexos de trauma. Durante a pandemia de COVID-19, membros dessas equipes relataram um aumento perceptível nos casos envolvendo LMCs, gerando preocupações sobre possíveis mudanças nos padrões de saúde pública durante esse período.

Este estudo tem como objetivo principal avaliar se o aumento local percebido nos casos de LMCs foi estatisticamente significativo. Seu objetivo secundário é analisar se houve um aumento correspondente na participação de cirurgiões plásticos de plantão no manejo desses casos. Ao abordar esses objetivos, o estudo busca fornecer informações baseadas em evidências para o planejamento de saúde e estratégias de prevenção de lesões em contextos semelhantes.


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Metodologia

Este estudo observacional retrospectivo multicêntrico foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) sob o número de identificação CAAE 55744822.0.0000.0071. Seu objetivo foi analisar a incidência de casos classificados sob o diagnóstico primário “Mordedura ou golpe provocado por cão” (Classificação Internacional de Doenças [CID]-10, código W54, versão 2010) entre pacientes atendidos nos prontos-socorros das unidades do HIAE em Alphaville, Morumbi, Chácara Klabin, Ibirapuera e Perdizes. O HIAE é uma instituição privada de saúde, financiada com recursos próprios e de terceiros. O período do estudo foi de 1° de janeiro de 2019 a 30 de junho de 2021.

Os dados coletados de casos de LMC incluíram idade do paciente, sexo, data de admissão, dia da semana, horário do atendimento e solicitação de consulta de cirurgia plástica durante o atendimento. A idade do paciente foi registrada como um número absoluto e categorizada em quatro grupos: 0 a 4 anos, 5 a 9 anos, 10 a 11 anos e 12 anos ou mais. O sexo do paciente foi classificado como masculino ou feminino. Os dias da semana foram agrupados em duas categorias: “dias da semana” (segunda a sexta-feira) e “fins de semana/feriados” (sábado, domingo e feriados). O horário do atendimento foi categorizado como “diurno” (7h00 às 18h59) ou “noturno” (19h00 às 6h59).

Os casos com dados incompletos ou registro em prontuário de diagnóstico secundário CID-10 W54 foram excluídos da análise. Os casos restantes foram categorizados em dois grupos com base na data do primeiro atendimento: o Grupo 1 (pré-isolamento social) incluiu casos de 1° de janeiro de 2019 a 29 de fevereiro de 2020, enquanto o Grupo 2 (pós-isolamento social) incluiu casos de 1° de maio de 2020 a 30 de junho de 2021.

O número total de casos atendidos no PS do HIAE e o número de casos que necessitaram de consultas de cirurgia plástica por LMCs foram analisados nesses períodos. A contagem total de casos mensais foi registrada. A análise estatística foi realizada utilizando o software R, versão 3.6.2, com nível de significância de 0,05.

As variáveis quantitativas incluíram idade (em anos), o número médio mensal de atendimentos de emergência por LMCs e a frequência relativa de atendimentos por LMCs em comparação ao total de atendimentos de emergência. As variáveis qualitativas incluíram faixa etária, sexo, dia da semana, horário da consulta e a solicitação de consulta de cirurgia plástica.

As variáveis quantitativas foram analisadas por meio de medidas de tendência central e dispersão. A variável “idade”, que apresentou distribuição não normal, foi descrita por meio de mediana e intervalo interquartil (IIQ) e analisada pelo teste U de Mann-Whitney. A frequência relativa de atendimentos de emergência por LMCs, como a porcentagem do total de atendimentos, e a média mensal de atendimentos de emergência por LMCs apresentaram distribuições normais; essas variáveis foram descritas como média e desvio-padrão e comparadas pelo teste t de Student.

As variáveis qualitativas foram resumidas usando frequências absolutas e relativas. As variáveis com expectativa de que qualquer categoria tivesse frequência abaixo de cinco (por exemplo, hospital e diagnóstico) foram submetidas ao teste exato de Fisher. Todas as outras variáveis qualitativas foram analisadas segundo o teste de qui-quadrado de Pearson para identificação de associações.


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Resultados

Houve 1.129 casos de LMCs nos dois períodos de estudo, com 558 casos no Grupo 1 (pré-isolamento social) e 571 casos no Grupo 2 (pós-isolamento social) ([Tabela 1]). Excluímos os meses de março e abril de 2020 para criar um intervalo de 2 meses entre os grupos, contabilizando o possível período de implementação gradual e adaptação às medidas de isolamento social, aumentando, assim, a validade do estudo.

Tabela 1

Variáveis

Grupo 1

N = 558 (49%)

Grupo 2

N = 571 (51%)

Valor de p

Sexo

0,9121

Feminino

295 (53%)

300 (53%)

Masculino

263 (47%)

271 (47%)

Idade (em anos)[*]

38 (17; 38; 52; 90)

38 (16; 38; 51; 89)

0,302

Faixa etária

0,7426

0 a 4 anos

22 (4%)

29 (5%)

5 a 9 anos

56 (10%)

62 (11%)

10 a 12 anos

40 (7%)

37 (6%)

> 12 anos

440 (79%)

443 (78%)

Dia da semana

0,8100

Segunda a sexta-feira

345 (62%)

357 (63%)

Fins de semana/feriados

213 (38%)

214 (37%)

Horário do atendimento

0,5041

Diurno

344 (62%)

363 (64%)

Noturno

214 (38%)

208 (36%)

Consultas de cirurgia plástica

0,0775

Sim

41 (7%)

59 (10%)

Não

517 (93%)

512 (90%)

Mordeduras por mês no PS[**]

39,04 ± 5,98

40,75 ± 6,51

0,5000

Frequência relativa de LMC[**]

0,1338 ± 0,0195

0,2941 ± 0,0650

< 0,001

A distribuição dos pacientes por sexo foi semelhante entre os grupos: 53% dos casos ocorreram em mulheres (295 no Grupo 1 e 300 no Grupo 2) e 47% em homens (263 no Grupo 1 e 271 no Grupo 2), com valor de p de 0,9121. A mediana de idade dos pacientes também foi comparável entre os grupos: 38 anos (IIQ: 17, 38, 52, 90) no Grupo 1 e 38 anos (IIQ: 16, 38, 51, 89) no Grupo 2.

Diferenças não estatisticamente significativas foram observadas em diversas variáveis. Em relação às faixas etárias, houve um aumento na categoria “0 a 4 anos” de 22 (4%) no Grupo 1 para 29 (5%) no Grupo 2 e na categoria “5 a 9 anos” de 56 (10%) para 62 (11%); enquanto isso, a categoria “10 a 12 anos” diminuiu ligeiramente de 40 (7%) para 37 (6%) e a categoria “acima de 12 anos” permaneceu estável, diminuindo marginalmente de 440 (79%) para 443 (78%) (valor de p = 0,7426). A distribuição dos casos por dia da semana também foi consistente, com “dias de semana” aumentando ligeiramente de 345 (62%) para 357 (63%), e “fins de semana/feriados” permanecendo estáveis, passando de 213 (38%) para 214 (37%) (valor de p = 0,81). Da mesma forma, o horário do atendimento apresentou variação mínima, com as consultas “diurnas” aumentando de 344 (62%) para 363 (64%) e as consultas “noturnas” diminuindo de 214 (38%) para 208 (36%) (valor de p = 0,5041). As consultas de cirurgia plástica também apresentaram um aumento modesto, passando de 41 (7%) no Grupo 1 para 59 (10%) no Grupo 2, enquanto os casos sem consulta diminuíram de 517 (93%) para 512 (90%) (valor de p = 0,0775). O número médio mensal de consultas por LMC aumentou ligeiramente, de 39,1 ± 5,98 no Grupo 1 para 40,8 ± 6,51 no Grupo 2 (valor de p = 0,5000).

Por outro lado, a frequência relativa de LMCs em comparação ao total de atendimentos de emergência demonstrou um aumento estatisticamente significativo entre os dois períodos, passando de 0,1338 ± 0,0195 no Grupo 1 para 0,2941 ± 0,0650 no Grupo 2 (valor de p < 0,001). Durante o período do estudo, o número total de atendimentos de emergência nas cinco unidades do HIAE diminuiu substancialmente, de 399.115 no Grupo 1 para 187.641 no Grupo 2 ([Tabela 1]).


#

Discussão

As mordeduras de cães são uma causa significativa de consultas em PS devido à sua frequência e à possível gravidade de seus ferimentos. Os ferimentos mais associados a ataques de cães incluem esmagamentos e avulsões de tecidos moles, principalmente em crianças, que têm maior probabilidade de serem mordidas na cabeça e no pescoço. Em adultos, as mordeduras tendem a ocorrer nos membros e nas mãos.[2]

Dados epidemiológicos sobre agressões por cães em PSs no Brasil revelam informações significativas sobre a incidência e as características desses ferimentos. O SINAN registrou uma média de 506.148 casos de mordeduras por cães por ano entre 2008 e 2017, representando uma incidência de 255 lesões por mordeduras por 100.000 pessoas por ano.[6] A maioria (71%) desses incidentes ocorreu em áreas urbanas e apenas cerca de metade dos pacientes recebeu a profilaxia pós-exposição correta após a mordedura de um animal com suspeita de raiva, de acordo com as diretrizes do Ministério da Saúde.[13] Estes achados destacam a necessidade crítica de melhor vigilância, educação pública, reforço da formação de profissionais de saúde e implementação de abordagens integradas para gestão de casos de mordeduras.[6]

No final de 2019, o mundo enfrentou uma crise de saúde global sem precedentes causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, que rapidamente evoluiu para uma pandemia mundial em 2020. Em resposta, foram implementados lockdowns generalizados e medidas de distanciamento social para conter a transmissão do vírus.[14]

Numerosos estudos em todo o mundo documentaram um aumento significativo nos casos de LMC pediátrica durante a pandemia.[7] [8] [9] [10] [11] No entanto, nosso estudo não detectou alterações estatisticamente significativas no número total de casos de LMC no mesmo período, tanto na população adulta quanto na pediátrica.

Uma possível explicação é que variações nas medidas de saúde pública, práticas culturais ou tendências na posse de cães podem influenciar os resultados. Por exemplo, nosso estudo analisou dados de uma instituição privada de saúde terciária no Brasil e não incluiu informações de uma base nacional e pública, o que poderia ter alterado os resultados. Além disso, as taxas de treinamento de cães no Brasil – embora inexploradas por estudos contemporâneos sobre comportamento canino – também podem contribuir para os resultados da nossa amostra. O setor pet brasileiro sabe que as famílias têm optado por raças de cães de porte menor devido às tendências de vida urbana e, de acordo com diversos estudos veterinários, esses animais são menos propensos a causar lesões graves que impliquem em atendimento em PS.[15] [16] Não obstante, essas hipóteses trazem implicações significativas para a saúde pública, ressaltando a necessidade de mais investigações para desenvolver e implementar estratégias preventivas que visem reduzir a morbidade e o fardo associado à LMC no sistema de saúde.

Havia a hipótese de que o perfil dos incidentes de mordedura de cães apresentaria variações no horário do atendimento, dia da semana e faixa etária durante o período do estudo. No entanto, os resultados não revelaram alterações significativas nessas variáveis. Consideramos que essa variação esperada pode ter sido influenciada por dinâmicas multifatoriais.

Em primeiro lugar, é provável que os períodos prolongados em casa devido ao trabalho remoto e à escola em ambiente virtual aumentaram a frequência das interações e, portanto, a proximidade entre crianças e cães, não necessariamente com a supervisão adequada.[7] [8] Segundo, a pandemia ocasionou um aumento nas adoções de cães, frequentemente chamados de “filhotes da pandemia”, o que apresentou a muitos tutores inexperientes os desafios de conviver com esses animais e controlar seu comportamento. A chegada de novos cães em casa, aliada ao estresse e à ansiedade vivenciados por humanos e animais durante a pandemia, pode ter tornado o comportamento canino mais imprevisível.[7] [12] Além disso, mudanças na rotina e no ambiente, como circunstâncias estressantes vivenciadas por seus tutores, alterações nas atividades diárias e menores oportunidades de socialização e exercício para cães, podem ter aumentado a ansiedade e a agressividade em alguns animais, contribuindo ainda mais para a elevação dos incidentes de mordeduras.[12] Tudo isso foi documentado em estudos americanos e poloneses, por exemplo, mas, até agora, não em pesquisas brasileiras.

Ademais, nosso estudo mostrou que a porcentagem de atendimentos em PS por LMCs aumentou 2,2 vezes durante a pandemia de COVID-19 em comparação ao período pré-pandemia. Embora interessante do ponto de vista estatístico, esse resultado não infere novos achados para nossa pesquisa. A maior taxa relativa provavelmente se deve às características únicas das LMCs, que frequentemente levam os pacientes a procurarem atendimento médico imediato, apesar das medidas de isolamento social.

A gravidade das mordeduras de cães pode variar bastante, desde pequenas perfurações até lacerações e avulsões graves, muitas vezes exigindo intervenção cirúrgica complexa, principalmente em casos de acometimento de estruturas faciais. Lesões nas bochechas e lábios são notavelmente comuns nesses casos.[3] [17] [18] Além disso, infecções são uma complicação frequente e há necessidade de profilaxia antibiótica, especialmente em feridas de alto risco. Consequentemente, o tratamento de emergência é motivado pela possibilidade de dano tecidual significativo, pelo risco de infecção e pela necessidade de reparo cirúrgico em casos mais graves. Ademais, a avaliação e a administração da profilaxia contra tétano e raiva são componentes essenciais do tratamento de LMCs, reforçando a necessidade de perícia médica oportuna, independentemente das medidas de isolamento social.[2]

Um achado notável deste estudo indica que o número de consultas de cirurgia plástica para lesão cerebral traumática permaneceu estatisticamente estável, sem aumento ou diminuição. Como já estabelecido, o reparo cirúrgico é frequentemente necessário em casos mais graves de lesão cerebral traumática, em especial naqueles com acometimento de estruturas faciais. Embora evidências de outros estudos sugiram um aumento nos casos de mordeduras de cães durante a pandemia de COVID-19, a gravidade das lesões e a subsequente necessidade de intervenção cirúrgica, especialmente em casos pediátricos, podem ter variado.

Taylor et al. sugeriram que, durante a pandemia de COVID-19, houve uma redução na gravidade das LMCs na face de crianças, evidenciada pela redução de consultas cirúrgicas e por casos envolvendo múltiplos sítios na região da cabeça e pescoço. Isso indica que, pelo menos nesta coorte, a gravidade dos ferimentos que exigiram consultas de cirurgia plástica pode ter diminuído durante a pandemia.[19]

Por outro lado, Plana et al. relataram um aumento substancial nos casos de mordeduras de cães durante a pandemia. Segundo estes autores, os sítios mais comuns de lesão foram a cabeça, seguida pelos membros superiores, o que pode implicar em maior demanda por intervenções cirúrgicas.[8]

Além disso, Cordova et al. observaram um aumento nos casos de lesões na cabeça e no pescoço, principalmente devido a mordeduras de animais, durante o período de lockdown da COVID-19. Isso sugere que, embora o número total de casos de emergência tenha diminuído, a proporção relativa de certos tipos de lesões, incluindo aquelas que exigem cirurgia plástica, pode ter aumentado.[20]

Esta pesquisa teve limitações. Primeiramente, os dados obtidos em um hospital terciário privado em São Paulo podem não ser representativos da população brasileira em geral, em especial no que diz respeito à condição socioeconômica e ao acesso à saúde. Portanto, a incorporação de dados de hospitais públicos ou de bancos de dados nacionais proporcionaria uma compreensão mais abrangente da LMC em diversas populações. Além disso, as variações nas tendências de posse de cães não foram exploradas em profundidade, o que pode limitar o escopo dos resultados. Por fim, este estudo carece de acompanhamento longitudinal dos desfechos em longo prazo, como complicações, cicatrizes e possível impacto psicológico nas vítimas.


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Conclusão

As mordeduras de cães são lesões amplamente evitáveis, mas continuam a representar um ônus substancial para os serviços de saúde de emergência. Para mitigar esse problema, é necessária uma abordagem abrangente e multidisciplinar que inclua iniciativas educacionais direcionadas com foco na prevenção, melhor vigilância de populações em risco, como crianças, e maior treinamento de profissionais de saúde. Além disso, campanhas de educação pública que enfatizem a posse responsável de cães, seu comportamento adequado e a interação segura entre humanos e cães são cruciais para reduzir a incidência e a gravidade dessas lesões. Tais estratégias são essenciais para a prevenção eficaz de lesões e a redução dos custos de saúde associados a LMCs.


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Conflito de Interesses

Os autores não têm conflito de interesses a declarar.

Contribuição do Autor

TSO: análise e/ou interpretação dos dados, análise estatística, coleta de dados, conceitualização, concepção e desenho do estudo, gerenciamento do projeto, investigação, metodologia, redação - preparação do original, redação - revisão e edição, supervisão, validação, visualização; DCG: conceitualização, concepção e desenho do estudo, gerenciamento do projeto, redação - revisão e edição, supervisão GCF: análise estatística, coleta de dados, investigação, metodologia, redação - preparação do original, software, Validação JRP: conceitualização, concepção e desenho do estudo, Supervisão JA: análise e/ou interpretação dos dados, aprovação final do manuscrito, conceitualização, Concepção e desenho do estudo, gerenciamento do projeto, investigação, metodologia, redação - revisão e edição, supervisão, visualização.


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Endereço para correspondência

Tatiana Scarparo de Oliveira
Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein
Medicina, São Paulo, São Paulo
Brasil   

Publication History

Received: 07 January 2025

Accepted: 24 March 2025

Article published online:
20 June 2025

© 2025. The Author(s). This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution 4.0 International License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/)

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Bibliographical Record
Tatiana Scarparo de Oliveira, Dov Charles Goldenberg, Gabriela de Carvalho Ferreira, José Roberto Precoppe, Jaime Anger. Impacto da pandemia de COVID-19 em lesões por mordedura de cães em um hospital privado no Brasil: Um estudo epidemiológico comparativo. Revista Brasileira de Cirurgia Plástica (RBCP) – Brazilian Journal of Plastic Surgery 2025; 40: s00451809549.
DOI: 10.1055/s-0045-1809549
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