Palavras-chave
armas de fogo - sistema musculoesquelético/lesões - crianças - adolescente
Introdução
A violência urbana configura-se como um dos principais problemas sociais da atualidade,
e as crianças e os adolescentes são identificados como grupos etários de maior vulnerabilidade.
Alguns estudos mostram a gravidade do quadro: no VIVA Inquérito de 2014, o percentual
de crianças e adolescentes vítimas de violência representou 29,5%.[1] Em um estudo em Campinas, estado de São Paulo, a principal causa na cidade de morte
traumática em menores de idade foi por ferimentos por armas de fogo (FAF) (47%).[2]
A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), realizada em 2009 pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) teve como objetivo descrever as prevalências
de percepção dos escolares do 9° ano do ensino fundamental sobre critérios de segurança
e violência. No estudo, Curitiba foi a segunda capital que mais teve relatos de brigas
envolvendo armas de fogo por estudantes do 9° ano do ensino fundamental no Brasil,
com 5,9% dos relatos, ficando atrás apenas de Boa Vista, RR, com 6,4%. A média das
26 capitais e do distrito federal foi de 4%.[3] Segundo o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DATASUS),
entre os anos 2014 e 2016, de 220 mil óbitos por todas as causas, houve > 27 mil óbitos
por FAF no Brasil em uma faixa de até 19 anos de idade. Em Curitiba, no mesmo período
e faixa etária, foram 299 (de um total de 2.226 óbitos).[4]
Um maior conhecimento das lesões provocadas por armas de fogo nos parece fundamental
para elaborar políticas de enfrentamento à violência e estruturar um atendimento adequado
às vitimas. No Brasil, há alguns estudos sobre FAF (incluindo musculoesqueléticos),[5]
[6]
[7]
[8]
[9] mas sem o enfoque nos menores de idade, embora os números de homicídios sejam crescentes
e alarmantes nessa faixa etária.[10] Mesmo na literatura norte-americana, há poucos estudos, por razões relacionadas
à legislação.[11]
O objetivo do presente trabalho é avaliar e descrever as lesões musculoesqueléticas
de pacientes menores de 18 anos de idade atendidos entre 2014 a 2016 em um pronto-socorro
(PS) de grande porte e em um grande centro urbano, com diagnóstico de FAF.
Material e Métodos
Estudo retrospectivo realizado em nosso hospital, que atende pacientes pelo Sistema
Único de Saúde (SUS). Foram levantados prontuários e boletins de emergência pelo banco
de estatísticas do Hospital do Trabalhador (HT) (nosso hospital), de pacientes menores
de 18 anos de idade que deram entrada ao PS após FAF, entre janeiro de 2014 e dezembro
de 2016. Foram acessados boletins de emergência (BEs) físicos e digitalizados, prontuários
e radiologias físicos e digitais. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa
sob o número CAAE 58662816.6.0000.5225 e parecer número 1.800.239.
Foram levantados todos os prontuários de pacientes que deram entrada com diagnóstico
de FAF. Os critérios de inclusão foram: pacientes com ao menos uma região musculoesquelética
atingida por armas de fogo, que buscavam o PS do HT como primeira procura ou advindos
de outras unidades de saúde no mesmo dia do ocorrido, e que receberam alta ou faleceram
nas dependências do PS. Foram excluídos 51 pacientes, dos quais 43 não apresentaram
lesões musculoesqueléticas; outros 8 pacientes excluídos foram registrados como transferência
de serviço, evasões, e ferimento por arma de chumbo ou por projéteis de borracha.
Restaram 126 pacientes para estudo.
Os dados obtidos foram registrados no Microsoft Office Excel (Microsoft Corporation,
Redmond, WA, EUA). Os acessos aos BEs, prontuários e radiologias foram realizados
através do nome do paciente ou pelo número do BE ou do prontuário.
Os dados colhidos foram: sexo; data de nascimento; idade; entrada no PS; ferimento
musculoesquelético (sim ou não); via de entrada (procura direta, ambulância ou via
aérea); tipo de lesão; queixa principal; localização musculoesquelética do tiro; bala
alojada; bala removida; fraturas; lesões associadas; internamento (sim ou não); data
e hora de entrada e saída de internamento; data e hora de entrada e saída de UTI;
tratamento ortopédico; cirurgia ortopédica; outros procedimentos; complicações; sequelas;
óbito (sim ou não); evasão (sim ou não); observações (quando pertinentes para facilitar
o estudo).
As lesões foram classificadas por tipo de lesão em: politrauma (PT), fratura (F),
superficial (S), transfixante (T) e partes moles (PM). Estabelecemos algumas definições
de termos. Politraumas: pacientes com lesão em > 1 região corporal musculoesquelética.
Fraturas: somente um segmento ósseo atingido (pela nossa divisão). Superficiais: lesões
individuais sem perfuração. Transfixantes: apresentavam entrada e saída sem fraturas.
Lesões de partes moles: lesões com perfuração, não transfixantes, e sem fraturas.
A localização musculoesquelética foi dividida em: coluna vertebral; ombro; braço;
cotovelo; antebraço; punho e mão; bacia (pelve e sacro); coxa; joelho; perna; tornozelo
e pé; glúteo; axila. Para serem incluídos na pesquisa, os pacientes deveriam apresentar
pelo menos um FAF em uma dessas regiões. Foram excluídos três compartimentos por imprecisão
dos registros.
As fraturas foram divididas por seguimentos ósseos: coluna cervical; coluna torácica;
coluna lombar; ossos da mão; pelve; articulação coxo-femoral; rádio; clavícula; fêmur;
tíbia (incluindo tíbia e fíbula); escápula; úmero; articulação gleno-umeral; ulna;
ossos do pé; sacro.
As lesões associadas e outros procedimentos foram classificados em abdominais (incluindo
vísceras e geniturinárias); torácicas (pulmão, coração e costelas); vasculares; encefálicas
e faciais.
Os tratamentos de fraturas foram classificados em: “conservadores”, “cirúrgicos” e
“sem tratamento devido a óbito”. Os tratamentos cirúrgicos existentes na amostra foram
classificados em: artrodese de coluna, laminectomia descompressiva, fixação interna,
fixação externa, fixações externas seguidas de fixação interna, e um tratamento concomitante
de fixação externa e interna.
Resultados
Dos 177 pacientes menores de 18 anos que deram entrada no PS por FAF, 126 pacientes
(71,2%) atenderam aos critérios de inclusão. Um total de 54 foi atendido em 2014,
31 em 2015, e 41 em 2016. Quanto à sazonalidade, dividindo por semestres, a procura
foi mais frequente no primeiro semestre do ano (janeiro-junho) com 76 casos (60,3%),
e 50 (39,7%) no 2° semestre (julho-dezembro). Um total de 107 pacientes era do sexo
masculino (85%), e 19 do feminino (15%), com uma proporção de 5,6:1. A idade variou
entre 2 anos e 8 meses a 17 anos e 11 meses, com média de 15 anos e 5 meses. A divisão
de casos por idade está representada na [Tabela 1].
Tabela 1
Idade (anos)
|
Pacientes
|
%
|
17
|
46
|
36,50%
|
16
|
31
|
24,60%
|
15
|
16
|
12,70%
|
14
|
14
|
11,10%
|
13
|
5
|
3,40%
|
12
|
0
|
0,00%
|
11
|
2
|
1,60%
|
10
|
3
|
2,30%
|
9
|
1
|
0,80%
|
8
|
1
|
0,80%
|
7
|
1
|
0,80%
|
6
|
2
|
1,60%
|
5
|
1
|
0,80%
|
4
|
0
|
0,00%
|
3
|
0
|
0,00%
|
2
|
2
|
1,60%
|
1
|
0
|
0,00%
|
0
|
0
|
0,00%
|
Um total de 106 pacientes era de Curitiba, e 20 de outras cidades da região metropolitana.
Em relação à via de entrada, 86 pacientes (68,2%) foram encaminhados ao HT por ambulância;
38 (30,2%) por procura direta, e 2 pacientes (1,6%) por via aérea. O tipo de lesão
dos 126 pacientes foi distribuído da seguinte maneira: 37 PTs; 35 Fs; 28 PMs; 17 Ts;
e 9 Ss. Dos 37 PTs, 23 envolviam Fs (62,1%).
Um total de 122 pacientes tiveram registro e identificação se a bala foi alojada ou
não. Destes, 61 (50%) tiveram ao menos uma bala alojada em compartimentos musculoesqueléticos,
sendo que 7 tiveram 2 balas alojadas, e 2 tiveram 3: um total de 72 projéteis alojados.
Desses, 67 tinham registros a respeito do destino das balas, sendo que 25 (37,3%)
foram removidas e 42 (62,7%) não foram removidas.
As 174 localizações musculoesqueléticas acometidas estão representadas na [Tabela 2].
Tabela 2
Compartimento
|
Lesões
|
%
|
Coxa
|
43
|
24,70%
|
Perna
|
22
|
12,60%
|
Braço
|
16
|
9,20%
|
Coluna vertebral
|
15
|
8,60%
|
Antebraço
|
15
|
8,60%
|
Ombro
|
14
|
8,10%
|
Punho + mão
|
14
|
8,10%
|
Tornozelo + pé
|
11
|
6,30%
|
Glúteo
|
11
|
6,30%
|
Joelho
|
9
|
5,20%
|
Cotovelo
|
2
|
1,10%
|
Bacia (pelve + sacro)
|
1
|
0,60%
|
Axila
|
1
|
0,60%
|
Um total de 58 pacientes (46%) foi diagnosticado com fraturas. Destes, 9 (15,5%) tiveram > 1
segmento ósseo fraturado, sendo que 5 tiveram 2 segmentos, e 4 tiveram 3 segmentos
fraturados. Houve um total de 71 fraturas diagnosticadas ([Tabela 3]). Dessas, 45 (63,4%) receberam tratamento conservador, 23 (32,4%) receberam tratamento
cirúrgico, e três (4,2%) não foram tratadas devido a óbito.
Tabela 3
SEGMENTO ÓSSEO
|
FRATURAS
|
%
|
Fêmur
|
11
|
15,5%
|
Tíbia[*]
|
10
|
14,1%
|
Coluna torácica
|
8
|
11,2%
|
Coluna lombar
|
7
|
9,8%
|
Ossos da mão
|
6
|
8,4%
|
Rádio
|
6
|
8,4%
|
Coluna cervical
|
5
|
7,0%
|
Úmero
|
5
|
7,4%
|
Ulna
|
3
|
4,2%
|
Pelve
|
2
|
2,8%
|
Articulação coxo-femoral[**]
|
2
|
2,8%
|
Escápula
|
2
|
2,8%
|
Clavícula
|
1
|
1,4%
|
Articulação Gleno-Umeral
|
1
|
1,4%
|
Ossos do pé
|
1
|
1,4%
|
Sacro
|
1
|
1,4%
|
Um total de 37 (29,4%) pacientes foi submetido a cirurgias ortopédicas: 19 (15,1%)
para tratamento de fraturas (envolvendo 23 procedimentos) e 18 (14,3%) para outros
procedimentos diversos (uma fasciotomia de coxa e uma transferência tendinosa, e os
outros 17 apenas para retiradas de projéteis e/ou debridamento). Um paciente, além
de tratar a fratura de ossos da mão com fixador interno, foi submetido a tenorrafia
e a neurorrafia na mão.
Os 23 tratamentos cirúrgicos de fraturas foram: 9 fixações internas (39,1%); 5 fixações
externas (21,8%); 5 fixações externas seguidas de fixação interna (21,8%); 2 artrodeses
da coluna (8,7%); 1 laminectomia descompressiva de L5-S1 (4,3%); 1 fixação externa
em quadril e fixação interna em fêmur para tratamento de fratura subtrocantérica (4,3%).
Quanto à evolução, complicações e sequelas durante o 1° atendimento hospitalar: houve
7 sequelas, sendo 1 osteonecrose de cabeça de fêmur e 6 lesões medulares (3 paraplegias;
1 tetraplegia; 1 hemiplegia e paraparesia de membro inferior direito; e 1 perda de
força e paraparesia de membro inferior esquerdo por avulsão de raiz). Outras complicações
foram: oito lesões de nervos periféricos, sendo cinco motoras e três motoras e sensitivas;
quatro tiveram infecções, sendo uma osteomielite aguda; uma teve síndrome compartimental
com lesão do nervo femoral. Houve um paciente que retornou por granuloma de corpo
estranho no cotovelo direito e necessitou remoção da bala.
Ocorreram lesões associadas em 52 pacientes (41,3%), em um total de 84 lesões associadas,
sendo: 27 abdominais (32,1%); 25 torácicas (29,8%); 13 vasculares (15,5%); 12 faciais
(14,3%); e 7 encefálicas (8,3%). Dos 52 pacientes com lesões associadas, 38 foram
submetidos a procedimentos de outras especialidades médicas (30,2% dos 126 pacientes).
Seis pacientes evoluíram a óbito. Nos 58 atendimentos com fraturas, 31 tiveram lesões
associadas (53,5%).
Dos 126 pacientes, 70 (55,6%) foram internados, sendo que 21 (16,7%) necessitaram
de internação na unidade de tratamento intensivo (UTI). Os outros 56 (44,4%) apenas
deram entrada ao PS e receberam alta. O tempo de internamento dos 70 pacientes que
foram internados teve uma média de 9,6 dias, variando entre 1 e 84 dias. O tempo de
internação na UTI dos 21 pacientes que necessitaram de tratamento intensivo teve uma
média de 14,7 dias, variando entre 1 e 82 dias.
Um total de 120 pacientes sobreviveu (95,2%), e 6 (4,8%) evoluíram a óbito.
Discussão
Apesar do conhecimento geral da realidade violenta que enfrentamos no nosso país,
e de que as crianças e adolescentes compõem um grupo vulnerável, existem poucos dados
abordando as implicações médicas desta situação. O presente estudo é, pelo nosso conhecimento,
o primeiro estudo nacional que avalia lesões por armas de fogo especificamente em
crianças e adolescentes (menores de 18 anos). Em um estudo realizado no Children's
Hospital of Alabama, Birmingham, estado do Alabama, EUA, foram registrados 194 casos
de procura por FAF em menores de 19 anos de idade em um período total de 11 anos (de
abril de 1999 a março de 2010).[12] Nosso estudo, com levantamento de 3 anos e menor faixa etária (18 anos incompletos),
encontrou 169 vitimas (considerando as não musculoesqueléticas), um resultado que
praticamente se iguala ao do estudo norte-americano. Salientamos que os dois hospitais
têm porte semelhante e o fato de no estado do Alabama o porte de arma ser legalizado.
Outro estudo, realizado no Carolinas Medical Center, em Charlotte, no estado da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, com duração de
8 anos, mais do que o dobro do período do nosso estudo, incluindo semelhantemente
apenas pacientes ortopédicos e menores de 18 anos, houve um total de 46 pacientes
lesionados, ou seja, 2,75 vezes menos do que no nosso estudo.[13]
Vale ressaltar que vem havendo um aumento desse tipo de ocorrência no Brasil, segundo
o Mapa da Violência de 2016.[10] No conjunto da população, o número de homicídios por armas de fogo (HAF) teve um
crescimento de 592,8% entre 1980 e 2014. Contudo, na faixa jovem, este crescimento
foi bem maior: 700%. Esta faixa, por estar entre 15 e 29 anos de idade, inclui adolescentes,
os quais são objetos do presente estudo. É justamente na adolescência que o índice
aumenta exponencialmente.[10] Já nos registros do DATASUS, houve 299 óbitos na cidade de Curitiba no período de
2014 a 2016. Este número elevado pode ser decorrente da faixa etária mais ampla abrangida
pelo DATASUS (até 19 anos de idade) – que é justamente o pico das ocorrências, o que
dificulta sua comparação com nossos dados.[4] Nosso estudo apresentou a maior porcentagem também nessa parcela, embora ela seja
de até 18 anos incompletos. Contudo, o início do pico se deu aos 14 anos de idade,
sugerindo que as ocorrências já estejam atingindo idades mais precoces.
Os artigos internacionais, principalmente norte-americanos, enfatizam a causa das
lesões (se violentas ou não intencionais). Isto se dá, principalmente, pela diferença
dos estados em relação às leis de armas. Em 2014, Safavi et al[14] publicaram um estudo no qual a média de lesões em menores de 18 anos de idade vivendo
em um estado sem restrições para o porte de arma era 3,75 vezes maior do que em um
estado com leis restritas para o porte. No nosso estudo, não pudemos obter os dados
sobre motivos da lesão, embora fosse um interesse inicial. Nos estudos norte-americanos,
a maioria das lesões é não intencional.[13] Srinivasan et al[15] publicaram em seu estudo que 62% das lesões nos EUA ocorrem não intencionalmente
(foram analisadas 198.969 procuras por FAF em menores de 19 anos nos EUA, de 2001
a 2010).
Quanto à participação do ortopedista, nosso estudo mostrou que a cada quatro crianças
ou adolescentes com queixa de FAF na emergência, aproximadamente três tiveram lesões
musculoesqueléticas (critérios de inclusão) e necessitaram de ao menos um primeiro
atendimento ortopédico. Este dado enfatiza a necessidade do ortopedista ter um conhecimento
do perfil das lesões, das habilidades necessárias para o tratamento, assim como da
estrutura e dos equipamentos para prover assistência adequada.
Como em outros estudos, o gênero masculino mostrou-se mais susceptível, com a proporção
de 85%. Em 2014, o VIVA Inquérito relatou que 72% de vítimas de violência, em todas
as idades, são homens, e que isso se repete para crianças e adolescentes.[1]
Em relação à idade, a média deste estudo é de 15 anos e 5 meses, variando de 2 a 17
anos, enquanto que para Perkins et al[13] os extremos também são de 2 a 17 anos de idade, mas a média é de 12,7 anos. Para
Naranje et al,[16] a média também ∼foi ∼ 12 anos. Aproximadamente 90% dos pacientes do nosso estudo
eram maiores de 13 anos, enquanto esta faixa é composta por 72%no estudo de Perkins
et al.[13] Esta divergência se dá provavelmente pelas diferenças nas proporções já comentadas
entre lesões intencionais e não intencionais entre os dois países.
Metade dos nossos pacientes teve ao menos uma bala alojada. O procedimento de retirada
de bala foi realizado em aproximadamente um terço dos pacientes. No estudo de Mazotas
et al,[17] 22% dos 107 pacientes pediátricos tiveram complicações secundárias à localização
do projétil, mas os autores somente recomendam a sua retirada quando ele está localizado
em articulações. Segundo Ootani et al,[6] na presença de projétil na articulação, deve ser feita a remoção, pois além do projétil
agir como corpo livre intra-articular, ele provoca transtornos de ordem eletrolítica.
Em nosso estudo, um paciente retornou por granuloma de corpo estranho e necessitou
remoção da bala, que estava localizada em uma junta (cotovelo).
Na literatura, quase na metade das vezes em que os membros são atingidos, ocorrem
fraturas.[10] Em nosso estudo, o índice foi de 46%. Nove (15%) apresentaram múltiplas fraturas,
índice menor que o encontrado por Naranje et al (18,4%).[16] Nosso artigo mostra que os membros inferiores são os mais atingidos (56%), o que
corrobora o encontrado em outros estudos internacionais.[10]
[13]
[16] No estudo nacional de Ootani et al,[6] envolvendo lesões ósseas por armas de fogo em idades entre 5 e 54 anos, os membros
inferiores também foram os mais atingidos, mas a proporção deles foi maior (∼ 65%).
Além disso, a coxa foi o principal compartimento atingido, e o fêmur e tíbia tiveram
incidências semelhantes de lesões (15% e 14%, 11 fraturas no fêmur e 10 na tíbia),
e isso também ocorreu nos estudos de Perkins et al[13] e de Naranje et al.[16] No estudo brasileiro citado, o fêmur foi muito mais atingido do que a tíbia; o que
pode sugerir uma diferença na epidemiologia entre as faixas etárias. Já a mão, assim
como no presente estudo, foi o local do membro superior mais atingido.[6]
Outro importante segmento avaliado, pelo seu potencial de sequelas graves, foi a coluna.
Quinze pacientes apresentaram 22 fraturas vertebrais (8 torácicas, 7 lombares e 5
cervicais). Em um estudo de 2011, também na cidade de Curitiba, que avalia traumas
raquimedulares por FAF em todas as idades, o nível mais acometido também foi o torácico
(42,6%); mas o nível cervical teve mais que o dobro de traumas do que o lombar (37,1%
e 16,6%, respectivamente),[8] semelhantemente ao estudo de Barros Filho et al[9] (também de FAF em coluna em todas as idades), e diferentemente do nosso. Já na literatura
estrangeira, em Naranje et al,[16] ocorreu apenas uma fratura de coluna (que foi na vértebra C5). Seis dos nossos pacientes
apresentaram lesões medulares definitivas. Carter et al[11] relataram que a maioria das fraturas espinhais não necessita de tratamento cirúrgico,
e que a realização de cirurgia não é associada a melhor prognóstico neurológico. Na
literatura nacional, Barros Filho et al[5] afirmaram que o tratamento cirúrgico de rotina no trauma de coluna não parece adequado.
Dos nossos 15 pacientes com lesões, apenas 3 foram submetidos a cirurgia.
Em nosso estudo, a maioria dos pacientes foi tratada de forma conservadora (63%),
divergindo de Perkins et al,[13] no qual pouco mais da metade (52%) foi tratada de forma cirúrgica. Dos pacientes
tratados cirurgicamente, aproximadamente metade foi para estabilização de fraturas
(n = 19) e os demais para debridamento, retirada de projéteis e outros procedimentos. De
modo semelhante a outros estudos,[13]
[16] cerca de dois terços das fraturas necessitaram fixação interna, e 26% necessitaram
fixação externa.
Outras lesões com importante potencial de sequelas foram observadas. Lesões de nervo
periférico (6,3%) foram menos comuns do que no estudo de Perkins et al,[13] (com 13%). Apenas uma lesão em nosso estudo evoluiu para síndrome compartimental.
Um ponto comentado por outros autores é que apesar do FAF ser uma fratura exposta,
a osteomielite não é comum após tratamento de FAF,[16] e nós observamos apenas um caso em nossa série. Quatro pacientes evoluíram com infecção
(3%), índice inferior ao de Perkins et al (13%)[13] Um fator balístico pode ser relevante: Naranje et al[16] encontraram 100% de infecção em ferimentos causados por espingarda, e menos de 10%
nos causados por pistola. Além da coluna, vale atentar-se às articulações em que os
danos podem ser bastante variáveis. Um dos nossos pacientes, atingido na articulação
coxo-femoral, evoluiu com necrose avascular da epífise.
O tratamento de vítima de arma de fogo deve ser multidisciplinar, com a participação
do cirurgião geral, vascular, neurocirurgião e ortopedista.[7] Um total de 52 pacientes teve lesões associadas (41%), um índice parecido com o
de Naranje et al.[16] A maioria das lesões correspondeu a lesões abdominais e torácicas, o que difere
de um extenso estudo retrospectivo norte-americano de FAF em menores de idade, no
qual as lesões encefálicas foram a segunda mais frequente (atrás apenas das musculoesqueléticas).[12] Uma possibilidade para essa divergência é que o estudo norte-americano afirma que
lesões encefálicas são proporcionalmente mais frequentes em menores de 9 anos de idade,
e no nosso estudo apenas 10% dos pacientes estavam nesta faixa etária. Outro fato
é que a taxa de óbitos deste estudo foi de 9,3%,[12] superior à nossa, sugerindo uma epidemiologia diferente.
Aproximadamente 55% dos nossos pacientes foram internados, e o tempo médio de internação
foi superior aos dos estudos de Perkins et al[13] e de Naranje et al[16] (9,6 versus 6,8 versus 5,8 dias, respectivamente). A evolução para óbito não é frequente, ainda mais se
tratando de lesões exclusivamente musculoesqueléticas, pois todos os seis pacientes
que faleceram apresentavam lesões associadas. O presente estudo apresentou uma incidência
de ∼ 4,5% de óbitos, o que é um pouco superior às de outros estudos,[15]
[18] mas, como já referido, é inferior ao estudo de Senger et al (9,3%).[12]
Nosso estudo apresenta limitações, como a ausência de informações que poderiam ser
importantes: dados gerais como motivo, raça e dados de balística; assuntos que são
tratados em artigos de referência.[10]
[13]
[16]
[18] Devido a um índice de perda de seguimento importante, optamos por focar somente
no atendimento emergencial. Um acompanhamento mais longo, além da avaliação do resultado
final, pode demonstrar o aparecimento de outras potenciais complicações. No entanto,
pela ausência de outros estudos nacionais, consideramos importante iniciar um estudo
com dados mais básicos.
Conclusão
O atendimento ortopédico está presente na maioria das crianças e adolescentes que
são encaminhados ao pronto socorro por FAFs. Os adolescentes e o sexo masculino são
o grupo de maior risco, e as lesões ocorrem principalmente em membros inferiores.
Mais da metade dos pacientes precisou ser internada.
O tratamento conservador foi possível na maioria das fraturas, e a mortalidade dos
pacientes é relativamente baixa. Apesar de menos da metade dos pacientes terem apresentado
fraturas, muitos apresentaram lesões complexas com potencial de graves sequelas.