Palavras-chave calcâneo - procedimentos cirúrgicos menores - radiografia
Introdução
As fraturas do calcâneo são as mais frequentes nos ossos do tarso.[1 ]
[2 ] Elas representam 2% de todas as fraturas, mostrando-se desviadas e intra-articulares em 60 a 75% dos casos, sendo a correção cirúrgica indicada nesses casos.[3 ]
[4 ]
[5 ]
Geralmente, as fraturas de calcâneo resultam em incapacidade e afastamento prolongado das atividades laborais, sendo mais prevalente na população economicamente ativa.[3 ]
[4 ]
[6 ]
[7 ]
Mesmo com modernas técnicas cirúrgicas desenvolvidas ao longo do tempo, os resultados insatisfatórios apresentam-se constantes.[8 ]
[9 ] Nos últimos 20 anos, muitos autores preferiram a via de acesso lateral estendida e fixação interna com placa e parafusos.[10 ]
[11 ] Em tais casos, muitos pacientes evoluíram com complicações de partes moles, necessitando de procedimentos secundários para retirada de material de síntese, ocorrendo em cerca de 43,5% dos pacientes.[12 ] Outros autores publicaram resultados utilizando métodos menos invasivos, com vias de acesso econômicas e fixações mínimas utilizando fios e parafusos, informando menor índice de complicações.[8 ]
Os ângulos de Böhler e Gissane são utilizados para indicar as alterações da faceta articular e para qualificar a resolução da fratura[3 ]
[5 ] ([Figuras 1 ] e [2 ]).
Fig. 1 Representação esquemática do ângulo de Böhler.
Fig. 2 Representação esquemática do ângulo de Gissane.
O objetivo deste trabalho consiste em avaliar o perfil radiográfico de fraturas intra-articulares de calcâneo, com a avaliação radiográfica dos ângulos de Böhler e de Gissane, antes e após o tratamento operatório utilizando técnica minimamente invasiva.
Materiais e Métodos
Trata-se de um estudo descritivo e retrospectivo, no qual foram incluídos pacientes portadores de fraturas intra-articulares do calcâneo atendidos em um hospital de referência em trauma do estado do Ceará, no período de janeiro de 2015 a agosto de 2016. Neste período, foram atendidos 146 pacientes com fratura de calcâneo. Foram excluídos do estudo pacientes menores de 18 anos, pacientes submetidos a tratamento conservador ou tratamento pelo método convencional (via de acesso lateral ‘L’ e fixação interna com placa e parafusos), aqueles com dados incompletos no prontuário, e aqueles que perderam o seguimento ambulatorial ou que foram a óbito durante o seguimento do tratamento. Com isso, 49 pacientes submetidos a tratamento cirúrgico minimamente invasivo foram selecionados para casuística do estudo, dos quais 15 possuíam fraturas bilaterais de calcâneo, totalizando 64 fraturas analisadas (N = 64).
Os dados foram coletados a partir da análise de prontuários médicos, utilizando-se um roteiro estruturado com dados referentes à idade, sexo, e mecanismo de trauma, além de dados relacionados às radiografias pré e pós-operatórias, avaliando-se a aferição dos ângulos de Böhler e de Gissane pré-tratamento e após a consolidação da fratura, através de goniômetro padronizado, considerando os valores normais dos ângulos de 20 a 40° para o primeiro e de 100 a 120° para o segundo.
Técnica Cirúrgica
O procedimento cirúrgico é realizado com o paciente sob raquianestesia. O mesmo é posicionado em decúbito lateral. São realizados os processos de assepsia e antissepsia, seguidos de aposição de campos estéreis. Em seguida, é confeccionado o acesso cirúrgico lateral mínimo à articulação subtalar orientado por uma linha entre o aspecto inferior do maléolo lateral e o quarto pododáctilo. Realizando-se dissecção por planos anatômicos, a articulação subtalar é abordada para redução aberta da fratura articular utilizando-se de alavancas ou ganchos ósseos para manobra de redução. O procedimento segue com fixação interna com parafusos canulados de 3,5 mm/4,5 mm ou fios de Kirschner percutâneos sob radioscopia com intensificador de imagem.
Análise dos Dados
Os dados foram compilados e analisados no programa Statistical Package for the Social Science (SPSS versão 21.0, IBM Corp., Armon, NY, EUA), sendo calculadas a média, a mediana, e o desvio padrão para as variáveis contínuas e percentangens para as categóricas. Para comparar os dados relativos aos ângulos de Böhler e Gissane, utilizou-se o teste t para amostras pareadas. Considerou-se um intervalo de confiança de 95% e um valor p < 0.05 como estatisticamente significante nas análises realizadas.
Aspectos Éticos
O estudo desenvolvido foi devidamente autorizado pelo comitê de ética em pesquisa sob o protocolo n° 1.710.233 de 02 de setembro de 2016.
Resultados
No período do estudo foram analisados 49 pacientes com fraturas intra-articulares de calcâneo, destes, 15 casos foram de fraturas bilaterais (30,61%), sendo analisadas o total de 64 fraturas. Destas, 6 (9,37%) foram fraturas expostas. Houve um predomínio de pacientes do sexo masculino (89,79% dos casos), com a predominância de 9:1 em relação ao sexo feminino ([Figura 3 ]). A idade média foi de 39 anos (variando entre 18 e 70 anos). Dos pacientes incluídos, 36 (71,42%) relataram queda de altura como o mecanismo de trauma, com uma média de altura da queda de cerca de 4,5 metros. Além disso, 10 (20,4%) pacientes relataram acidentes de trânsito como a causa e 3 (6,12%) relataram lesões por arma de fogo ([Figura 4 ]). Dos 49 pacientes, 16 (32,65%) relataram acidente de trabalho. A dominância do lado acometido foi de 48% do pé direito e 52% do pé esquerdo.
Fig. 3 Pacientes com fratura de calcâneo divididos por sexo. Fortaleza, CE, 2017.
Fig. 4 Fraturas de calcâneo por mecanismo de trauma. Fortaleza, CE, 2017. Abreviatura: FAF, ferimento por arma de fogo.
Todas as fraturas foram analisadas utilizando-se radiografias do calcâneo em perfil para avaliação do ângulo de Böhler (cujo valor normal de referência encontra-se na faixa de 20–40°) e o ângulo de Gissane (cujo valor normal de referência econtra-se na faixa de 100–120°). O ângulo de Böhler médio dos casos antes da cirurgia foi de 2,5° (mediana: 0°), apresentando aumento da média dos ângulos para 25,3° (mediana: 24°), na análise após o tratamento cirúrgico minimamente invasivo (p < 0,001). O ângulo de Gissane médio dos casos antes da cirurgia foi de 136,3° (mediana: 140°), apresentando diminuição da média dos ângulos para 114,3° (mediana: 116°), na análise após a cirurgia (p < 0,001) ([Tabelas 1 ] e [2 ]).
Tabela 1
Paciente
Pé
Idade
Sexo
Mecanismo
Altura(m)
Acidente de trabalho
Fratura
Bohler pré (graus)
Bohler pós (graus)
Gissane pré (graus)
Gissane pós (graus)
1
D
29
m
transito
não
fechada
-10
26
120
120
1[* ]
E
fechada
2
28
118
116
2
E
35
m
queda
6
não
fechada
22
24
146
140
2[* ]
D
fechada
10
20
140
129
3
E
52
m
queda
4
não
fechada
-10
5
116
114
4
D
35
m
queda
2,5
não
fechada
-5
26
150
118
4[* ]
E
fechada
8
22
142
126
5
D
16
m
queda
5
não
fechada
10
46
146
116
5[* ]
E
fechada
20
35
138
122
6
D
45
m
queda
4
não
fechada
0
20
146
124
7
D
36
m
queda
4
sim
fechada
0
26
140
110
7[* ]
E
fechada
5
20
145
112
8
D
40
m
queda
3
sim
fechada
0
18
144
100
9
E
26
m
queda
16
sim
fechada
0
22
152
124
10
D
55
m
queda
3
sim
fechada
0
20
140
112
11
E
65
m
queda
4
não
fechada
-12
22
140
108
11[* ]
D
fechada
4
30
138
118
12
E
31
m
queda
5
sim
fechada
0
24
150
114
13
E
47
m
queda
7
sim
fechada
2
28
142
124
13[* ]
D
fechada
5
24
132
115
14
E
54
m
queda
2
sim
fechada
12
20
56
110
15
D
19
m
queda
14
não
fechada
0
22
146
122
15[* ]
E
fechada
10
29
132
115
16
D
30
m
transito
não
exposta
0
24
148
110
17
D
40
m
queda
3
sim
fechada
10
28
128
106
18
D
35
m
queda
3,5
sim
fechada
12
38
140
135
18[* ]
E
não
fechada
14
54
138
115
19
D
30
m
transito
não
fechada
0
24
100
110
20
D
52
m
queda
2
não
fechada
16
24
138
104
21
D
58
m
queda
15
sim
fechada
8
26
136
124
21[* ]
E
fechada
10
29
140
126
22
D
35
f
transito
não
exposta
-6
20
128
114
23
D
45
m
FAF
não
exposta
-12
2
120
118
24
E
44
m
queda
3
não
fechada
-10
12
130
120
25
D
26
m
queda
2
sim
fechada
30
30
158
118
26
D
33
m
queda
2
sim
fechada
-10
30
140
124
27
E
37
m
queda
3
sim
fechada
-12
28
44
108
28
E
48
f
FAF
não
exposta
6
20
128
114
29
E
35
m
queda
2
sim
fechada
-8
34
138
110
30
D
57
m
queda
3
não
fechada
12
22
156
120
31
E
37
m
queda
3
não
fechada
0
26
158
106
32
E
44
m
queda
4
sim
fechada
-2
26
138
112
32[* ]
D
fechada
5
24
132
114
33
E
37
f
transito
não
fechada
0
22
148
122
34
D
13
m
queda
3
não
fechada
-2
20
156
130
35
D
34
m
queda
4
não
fechada
4
22
148
116
36
D
32
m
transito
não
fechada
6
24
142
128
36[* ]
E
fechada
14
30
124
108
37
E
67
m
queda
3
não
fechada
10
28
156
120
38
D
24
m
queda
4
não
fechada
2
22
154
130
39
E
70
m
transito
não
fechada
12
22
130
118
40
D
52
m
queda
4
não
fechada
0
20
112
108
40[* ]
E
fechada
-22
12
152
118
41
D
59
f
queda
3
não
fechada
-8
32
170
116
42
E
49
m
queda
3
não
fechada
14
38
146
108
43
E
58
f
queda
4
não
fechada
6
14
152
122
44
D
26
m
queda
4
sim
fechada
6
30
140
108
44[* ]
E
0
26
148
112
45
D
16
m
FAF
não
exposta
10
36
120
120
46
E
m
transito
não
exposta
4
30
110
118
47
D
26
m
transito
não
fechada
-2
42
142
108
48
D
29
m
transito
não
fechada
0
20
138
102
49
D
29
m
queda
4
não
fechada
0
24
140
102
49[* ]
E
fechada
4
22
138
112
Tabela 2
Pré-operatório (desvio padrão)
Pós-operatório (desvio padrão)
Valor de p
[* ]
Média do ângulo de Böhler
2,5° (9,5)
25,3° (8,6)
< 0,001
Média do ângulo de Gissane
136,3° (21,3)
114,3° (8,2)
< 0,001
Discussão
Fraturas articulares do calcâneo apresentam morbidade importante, sendo lesões graves que costumam causar sequelas incapacitantes e permanentes. Geralmente acometem indivíduos do sexo masculino, jovens, numa faixa etária em que são economicamente ativos, podendo determinar grande prejuízo socioeconômico. Na amostra estudada, verificou-se que 89,79% dos pacientes eram do sexo masculino, com média de idade de 39 anos, reforçando a afirmativa de que acometem indivíduos que estão em pleno exercício de suas funções socioeconômicas. Na literatura, o agente causal mais frequente relatado foi a queda de desnível, fato condizente com a amostra pesquisada (71,42%).[13 ]
Apesar de ser uma fratura extensamente estudada, ainda não há um consenso quanto à classificação, tratamento, e técnica cirúrgica a ser utilizada.[14 ] Ainda são escassos estudos com alto nível de evidência envolvendo técnicas cirúrgicas para fraturas do calcâneo. Muitos trabalhos relatam diversas técnicas cirúrgicas, porém poucos avaliam comparativamente as técnicas. Em termos de funcionalidade, segundo o questionário American Orthopaedic Foot and Ankle Society (AOFAS), a técnica minimamente invasiva de fixação percutânea com fio de Kirschner apresenta resultado superior e menores complicações, quando comparado a técnicas mais invasivas.[15 ]
Neste trabalho, publicamos o resultado cirúrgico de 49 pacientes (64 lesões) com fraturas articulares de calcâneo que foram tratadas com método cirúrgico minimamente invasivo que teve como premissa a recuperação funcional possível sem a incidência de complicações decorrentes do tratamento, que deve ser considerada como inaceitável.
A avaliação radiográfica comparativa do pré e pós-operatório revelou melhora das médias do ângulo de Böhler, que foi de 2,5 para 25,3°, valor considerado dentro do limite de normalidade (20°–40°) e do ângulo de Gissane, que foi de 136,3 para 114,3° (valor considerado dentro do limite de normalidade, de 100–120°). A comparação entre as médias do ângulo pré e pós-procedimento operatório, nesta amostra, demonstrou alta significância estatística, de acordo com o teste t (p < 0,001), o que sugere associação positiva entre bons resultados com relação aos ângulos de Böhler e Gissane e o uso da técnica cirúrgica minimamente invasiva.
A recuperação dos parâmetros anatômicos do calcâneo na técnica minimamente invasiva pode ser comparável ao da técnica convencional, como demonstrado por Yeo et al.,[16 ] que compararam os resultados radiográficos pós-operatórios da técnica convencional com ampla abordagem lateral (correção das médias dos ângulos de Böhler e Gissane para 25,5° e 119,0°, respectivamente) com a técnica minimamente invasiva, por abordagem subtalar (correção das médias dos ângulos de Böhler e Gissane para 26,5° e 115,5°, respectivamente). Os autores também evidenciaram menor índice de complicações de ferida cirúrgica com a técnica minimamente invasiva.
Em sua meta-análise, Wang et al.[17 ] demonstraram que a técnica convencional apresentou mais complicações pós-operatórias quando comparada à técnica minimamente invasiva, porém não encontram diferença estatística na comparação dos resultados radiográficos pós-operatórios dos ângulos de Böhler e Gissane.
Loucks e Buckley[5 ] realizaram um estudo prospectivo e randomizado para a avaliação do ângulo de Böhler e sua correlação com os resultados do tratamento da fratura. Observaram que o tratamento cirúrgico melhorava a graduação do ângulo e também a condição funcional. Esses resultados da avaliação radiográfica refletem a adequada recuperação da forma anatômica do calcâneo com a técnica cirúrgica empregada. A restauração do ângulo está diretamente relacionada à qualidade da redução dos fragmentos.
A melhora destes ângulos não assegura que haverá um bom resultado funcional e não é objetivo deste estudo realizar uma avaliação funcional.
Como limitação deste estudo, observa-se o não agrupamento das fraturas do calcâneo quanto a sua gravidade. Alguns pacientes não tinham em seus arquivos imagens adequadas para a realização da classificação dessas fraturas. Isso pode dificultar a compreensão sobre quais grupos de fraturas são mais passíveis de tratamento cirúrgico minimamente invasivo com bons resultados radiográficos.
Conclusão
Em nossa amostra, a técnica cirúrgica minimamente invasiva permitiu a melhora dos parâmetros radiográficos dos ângulos de Böhler e Gissane, nas fraturas intra-articulares de calcâneo, resultando em adequada recuperação da forma anatômica.