Palavras-chave
fraturas expostas - colo do fêmur - adulto - idoso
Introdução
A fratura do colo do fêmur em pacientes com menos de 50 anos representa menos de 5%
de todas as fraturas do quadril, e decorre de trauma de alta energia, com consequente
dano às partes moles.[1] O padrão da fratura, a cominuição no foco de fratura, e o grau de desvio dos fragmentos
estão associados às complicações do tratamento cirúrgico, tais como falta de consolidação,
falha da osteossíntese, e necrose avascular da cabeça do fêmur.[2] Quando esta fratura está associada a um trauma de tamanha magnitude que acarrete
exposição óssea e lesão extensa de partes moles na região do quadril, o problema se
torna único e de difícil solução terapêutica.
Relato do caso
Paciente do sexo masculino, de etnia branca, 35 anos de idade, solteiro, sofreu acidente
automobilístico, com típica lesão por trauma no painel do carro, que determinou fratura
cominutiva do colo do fêmur esquerdo, com migração proximal do segmento diafisário
e extensa lesão de partes moles através da musculatura glútea, com exposição óssea.
Na avaliação clinica durante o atendimento inicial, o paciente estava lúcido, eupneico,
sem queixas torácicas ou abdominais, e sem sinais de instabilidade hemodinâmica. No
exame físico, ele relatava dor intensa na região do quadril, com sangramento em ferida
na região glútea esquerda. O exame clínico também revelou dor e impotência funcional
no joelho ipsolateral, sugerindo possível lesão do ligamento cruzado posterior devido
à presença de instabilidade articular. O estudo radiográfico convencional revelou
fratura cominutiva e desviada do colo femoral esquerdo. A inspeção da ferida evidenciou
a presença de fragmentos ósseos, confirmando se tratar de fratura exposta do colo
femoral ([Fig. 1]). No centro cirúrgico, foi feita a limpeza mecanocirúrgica da fratura, com lavagem
exaustiva da ferida. A fratura foi alinhada por tração, e a ferida foi fechada por
planos. Foi iniciada antibioticoterapia com cefazolina venosa e profilaxia tetânica.
Cinco dias após o trauma inicial, foi realizado um novo procedimento cirúrgico pelo
acesso anterolateral para avaliar a possibilidade de uma redução direta e osteossíntese.
O achado cirúrgico foi devastador, traduzido por uma grave lesão com desvascularização
do segmento cefálico do fêmur, associado à completa desinserção dos músculos psoas
ilíaco, glúteo menor, glúteo médio, e rotadores externos. Existia ainda lesão capsulolabral
circunferencial da articulação do quadril. Optou-se pela realização da ressecção do
segmento cefálico com a colocação de um espaçador não articulado de cimento ósseo
com antibiótico (vancomicina) para aguardar o planejamento subsequente de uma artroplastia
total do quadril ([Fig. 2]). Após oito semanas, com exames de cultura negativos, níveis normais de velocidade
de sedimentação das hemácias (VHS) e proteína C reativa (PCR), foi realizado o terceiro
procedimento. Mediante um acesso posterolateral, após a retirada do espaçador, foi
realizada artroplastia total cimentada do quadril. Em seguida, foi realizada a transferência
do músculo glúteo máximo para restaurar o mecanismo abdutor do quadril, seguindo a
técnica descrita por Whiteside[3] em 2012 ([Fig. 3]). A técnica baseia-se na utilização de dois retalhos do músculo glúteo máximo: o
inferior é suturado na cápsula anterior e na borda anterior do trocanter maior, para
realizar a função do glúteo menor. O retalho superior cruzou este primeiro retalho
e foi fixado na região lateral do trocanter maior para realizar a função do glúteo
médio ([Fig. 4]). O paciente evoluiu sem intercorrências, e recebeu alta hospitalar. Foi permitida
carga parcial com apoio por três meses e realização de fisioterapia para recuperação
funcional. O paciente evoluiu bem, com retorno gradual da força abdutora e negativação
do sinal de Trendelenburg, sendo que, aos 10 meses de pós-operatório, apresentava
um Harris Hip Score de 91 pontos, e a radiografia convencional revelava uma prótese
total cimentada bem posicionada ([Fig. 5]).
Fig. 1 Avaliação clínica e radiográfica no atendimento inicial do paciente: (A) radiografia em incidência anteroposterior (AP) panorâmica da bacia mostrando fratura
cominutiva do colo femoral esquerdo com importante migração cefálica; (B) ferida na região glútea esquerda; (C) lesão muscular extensa com sangramento e esquírolas ósseas confirmando o diagnóstico
de fratura exposta do colo femoral.
Fig. 2 Radiografia em incidência AP panorâmica da bacia realizada após o procedimento de
ressecção da cabeça femoral e colocação do espaçador não articulado.
Fig. 3 Esquema da técnica da tranferência do glúteo máximo para restaurar o mecanismo abdutor
do quadril: (A) planejamento dos retalhos do músculo glúteo máximo; (B) levantamento do retalho superior; (C) fixação do retalho inferior na parte anterior do colo femoral; (D) preparo do trocanter para receber o retalho superior; (E) fixação do retalho superior; (F) aspecto final da transferencia muscular, adaptado de Whiteside.[3]
Fig. 4 Imagem cirúrgica da transferência do músculo glúteo máximo para restaurar o mecanismo
abdutor do quadril: (A) preparo femoral; (B) confecção de dois retalhos com fibras preservadas do músculo glúteo máximo; (C) retalho superior cruzando o primeiro retalho e fixado na região lateral do trocanter
maior para realizar a função do glúteo médio; (D) retalho inferior transferido para a parte superior do colo do fêmur, sob a ponta
do trocanter maior, e suturado na cápsula anterior e na borda anterior do trocanter
maior, para realizar a função do glúteo menor.
Fig. 5 Radiografia em incidência AP panorâmica da bacia realizada com dez meses de pós-operatório.
Notar a presença de prótese total cimentada do quadril esquerdo bem posicionada.
Discussão
Em pesquisa realizada nos principais bancos de dados disponíveis (Medline Pubmed,
Lilacs, Scielo, Cochrane Library), não encontramos relatos de lesão similar. Existem
descrições de alguns casos de luxação exposta anterior do quadril em pacientes adultos,[4]
[5]
[6] e a descrição de apenas um caso de luxação posterior exposta em adulto, resultante
de atropelamento em via pública.[7] No presente relato, o mecanismo do trauma foi o impacto do joelho sobre o painel
do automóvel, que, geralmente, determina apenas luxação ou fratura-luxação posterior
do quadril, através da parede posterior do acetábulo, que é mais vulnerável. Acreditamos
que, no momento do trauma, o quadril do paciente provavelmente estava abduzido, com
a cabeça femoral totalmente contida pelo teto acetabular. Assim, o vetor da força
de cisalhamento acarretou a fratura do colo e a persistência da energia do impacto
determinou a migração superior do segmento proximal do fêmur, a lesão extensa de partes
moles, e a exposição óssea através da musculatura glútea. Este mecanismo é o mesmo
que acarreta a fratura da cabeça do fêmur, geralmente associada a luxação posterior
do quadril.[8] A associação da lesão ligamentar do joelho ipsolateral também é justificada por
este mecanismo típico do trauma do joelho sobre o painel do automóvel no momento da
colisão.
O suprimento sanguíneo da cabeça femoral é tênue e facilmente lesionado na fratura
intracapsular desviada. A artéria circunflexa femoral medial nutre 82% da cabeça femoral
e 67% do colo femoral. A artéria circunflexa femoral lateral contribui com 18% da
vascularização para a cabeça femoral, e 33% da do colo. Ambos os vasos se ramificam
em delicadas artérias retinaculares que acompanham a superfície do colo do fêmur até
atingir a cabeça femoral.[9] No caso relatado, esse sistema encontrava-se lesado, associado a desinserção da
musculatura trocantérica.
A opção terapêutica de realizar redução e osteossíntese foi descartada devido à cominuição
do foco de fratura e pelo risco de necrose avascular da cabeça femoral. Dessa maneira,
a indicação de artroplastia total do quadril foi determinada devido ao risco biológico
de necrose asséptica da cabeça femoral e ao risco biomecânico, pois o índice de falha
de uma osteossíntese na fratura com traço vertical e cominuição posterior do colo
do fêmur é muito elevado.[2] Outro aspecto importante foi a perda da musculatura abdutora do quadril, o que determina
incapacidade importante na marcha, e pode predispor à luxação da prótese do quadril.
O emprego da técnica descrita por Whiteside[3] possibilitou a estabilização da prótese e minimizou o déficit clínico para a marcha.
Considerando a evolução favorável do paciente, a transferência muscular descrita para
casos de revisão de prótese de quadril quando há perda da musculatura abdutora[10] foi eficaz no tratamento deste tipo de lesão. A artroplastia total do quadril associada
à transferência muscular para a reconstrução da musculatura abdutora foi uma solução
eficiente para tratar uma fratura exposta do colo do fêmur.