CC BY-NC-ND 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2023; 58(02): 257-264
DOI: 10.1055/s-0042-1757306
Artigo Original
Ombro e Cotovelo

Detecção de Cutibacterium acnes em amostras de tecidos de cirurgias limpas primárias do ombro – Parte II

Article in several languages: português | English
1   Hospital Alemão Oswaldo Cruz em São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
2   Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
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3   Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil
4   Disciplina de Infectologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
,
5   Grupo de Cirurgia do Ombro da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
,
5   Grupo de Cirurgia do Ombro da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
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1   Hospital Alemão Oswaldo Cruz em São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
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1   Hospital Alemão Oswaldo Cruz em São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
,
6   Disciplina de Infectologia do Departamento de Medicina da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil
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6   Disciplina de Infectologia do Departamento de Medicina da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil
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5   Grupo de Cirurgia do Ombro da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
› Author Affiliations
Suporte Financeiro Não houve suporte financeiro de fontes públicas, comerciais, ou sem fins lucrativos.
 

Resumo

Objetivo Pesquisa e identificação de Cutibacterium acnes (C. acnes) e de outros microrganismos em amostras de tecidos profundos coletados em cirurgias limpas de ombro em pacientes que não foram submetidos a nenhum procedimento invasivo articular prévio e que não possuíam antecedentes clínicos de infecção.

Métodos Foram analisados os resultados das culturas de amostras de tecidos profundos intraoperatórias de 84 pacientes submetidos à cirurgia limpa primária do ombro. Foram utilizados tubos contendo meio de cultivo para armazenamento e transporte de agentes anaeróbicos, tempo prolongado de incubação e espectrômetro de massa para diagnósticos de agentes bacterianos.

Resultados Foi evidenciado o crescimento de bactérias em 34 pacientes (40,4%) dos 84 incluídos no estudo. Desses, 23 apresentavam crescimento de C. acnes em pelo menos uma amostra de tecido profundo coletada, correspondendo a 27,3% do total de pacientes. O segundo agente mais encontrado foi o Staphylococcus epidermidis, presente em 7,2% do total de indivíduos incluídos. Evidenciamos maior relação da positividade de amostras com o gênero masculino, uma média de idade inferior, a ausência de diabetes mellitus, o escore ASA I e a profilaxia antibiótica na indução anestésica com cefuroxima.

Conclusões Verificou-se um elevado percentual de isolados de diferentes bactérias em amostras de tecidos de ombros de pacientes submetidos a cirurgias limpas e primárias e sem histórico de infecção anterior. A identificação de C. acnes foi elevada (27,6%) e o Staphylococcus epidermidis foi o segundo agente mais frequente (7,2%).


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Introdução

O Cutibacterium acnes (C. acnes), previamente denominado Propionibacterium acnes, é um agente bacteriano anaeróbio gram-positivo, lipofílico, não esporulado e de crescimento lento.[1] Trata-se de espécie comensal da pele humana nas regiões com folículos sebáceos, principalmente no gênero masculino.[2] [3] Embora possa ser encontrado no quadril e no joelho, sua presença é mais notória no ombro.[2] [3] Nos pacientes submetidos pela primeira vez a procedimento cirúrgico do ombro, sem sinais e sintomas clínicos prévios de infecção, a presença do C. acnes é verificada em até 41,8% das amostras de tecidos profundos.[4]

O diagnóstico laboratorial do C. acnes é desafiador. As culturas bacteriológicas necessitam de cuidados específicos para se evitar resultados falsos-negativos ou dúvidas entre infecção e contaminação de amostras.[5] O transporte rápido a partir da coleta da amostra até o laboratório deve favorecer a sobrevivência para agentes anaeróbicos. Além disso, o período de incubação em ambiente anaeróbio deve ser prolongado, por pelo menos 14 dias, para permitir o lento crescimento bacteriano e o seu isolamento.[6] Diante de tantas dificuldades para o diagnóstico de crescimento em meio de cultura, estudos anteriores defendem que existe um grande número de subdiagnósticos de colonização do C. acnes.[6] Em um estudo prévio publicado pelo mesmo grupo, foi evidenciado que amostras de tecido coletadas e transportadas em frasco seco e incubadas por até 7 dias apresentaram uma taxa de 99,2% de resultados negativos para a identificação de qualquer microrganismo, alertando para a baixa eficácia diagnóstica dos padrões de investigação laboratorial em nosso país.[7] Novas técnicas de investigação bacteriológica laboratorial estão em desenvolvimento para melhorar o diagnóstico, destacando-se o sequenciamento genético e a espectrometria de massa.[5] [8] [9]

O objetivo deste estudo é identificar a presença de C. acnes e outros agentes bacterianos em amostras de tecidos profundos de ombro em pacientes que não foram submetidos a nenhum procedimento invasivo prévio nessa articulação e que não possuíssem antecedentes clínicos de infecção (cirurgias limpas).


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Casuística e Métodos

Trata-se de um estudo de coorte prospectivo, longitudinal, sequencial, observacional e multicêntrico, em pacientes submetidos a cirurgias limpas e eletivas de ombro no período de julho a novembro de 2020, em que amostras de tecidos profundos foram coletadas de forma estéril para a pesquisa de microrganismos, incluindo o C. acnes. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição.

Foram analisados os resultados das culturas de 84 ombros coletadas de 84 pacientes submetidos à cirurgia limpa primária em oito hospitais diferentes na cidade de São Paulo. Desses pacientes, 45 (54%) eram do gênero masculino e 39 (46%) do feminino; a idade variou de 19 até 94 anos (média de 51,5). Com relação a etnia, 63 indivíduos (75%) eram de etnia branca, 12 (14%) eram pardos, 5 (6%) eram amarelos e 4 (5%) eram negros. Quanto à técnica cirúrgica, 38 (45%) foram submetidos a procedimento artroscópico e 46 (55%) a procedimento aberto. Todos possuíam idade superior a 18 anos, ausência de história prévia de infecção no ombro e foram submetidos à cirurgia primária do ombro.

Correlacionamos as comorbidades dos pacientes com a classificação da American Society of Anesthesiologists (ASA);[10] 21 indivíduos (25%) foram classificados como ASA I, 61 (73%) como ASA II e 2 (2,3%) como ASA III. Todos os pacientes nesse estudo receberam profilaxia antibiótica, com cefalosporinas de primeira ou segunda geração – cefazolina ou cefuroxima, respectivamente – na indução anestésica e durante 24 horas após o procedimento cirúrgico.

Em cada cirurgia de ombro, foram coletadas três amostras intraoperatórias de osso (cabeça do úmero, acrômio ou terço distal da clavícula), tendão (supraespinhal, tendão da cabeça longa do bíceps ou tendão conjunto) e bolsa subacromial de cerca de 0,5 cm3 para análise laboratorial de proliferação de bactérias em culturas aeróbias e anaeróbias. Das três amostras de tecidos profundos selecionadas, duas foram coletadas separadamente em frascos estéreis contendo caldo de tioglicolato e uma foi coletada em frasco estéril com soro fisiológico a 0,9%. Os frascos foram vedados e encaminhados ao laboratório de investigação microbiológica (Laboratório Especial de Microbiologia Clínica da Universidade Federal de São Paulo) imediatamente após o procedimento pelos próprios membros da equipe cirúrgica.

No laboratório, as amostras nos frascos contendo tioglicolato ([Figura 1]) foram colocadas na jarra de anaerobiose a 37°C por 14 dias. As amostras em soro fisiológico a 0,9% foram transferidas para o meio líquido Trypic Soy Broth (TSB) e incubadas em aerobiose a 37°C. Após 14 dias, nos tubos que apresentaram turvação ([Figura 2]), 10µL de meio líquido turvado foram inoculados em placas de ágar sangue de carneiro e incubados a 37°C por mais 14 dias na jarra de anaerobiose. Todas as amostras em anaerobiose e aerobiose que evidenciaram crescimento bacteriano foram armazenadas em caldo TSB com glicerol a 20% e congeladas a −80°C ([Figura 3]).

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Fig. 1 Exemplo de frasco contendo caldo de tioglicolato, utilizado para a incubação das amostras coletadas.
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Fig. 2 Exemplo de caldo de tioglicolato turvado após a incubação da amostra, evidenciando a proliferação bacteriana.
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Fig. 3 Placa de petri contendo amostras de culturas de Cutibacterium acnes cultivadas em meio ágar sangue de carneiro.

A próxima etapa consistiu na identificação dos agentes bacterianos pelo espectrômetro de massa matrix-assisted laser desorption ionization-time of flight (MALDI-TOF MS, MALDI Biotyper, Bruker Daltonics, Germany) conforme a descrição técnica de Dingle et al.[11] ([Figuras 4] e [5])

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Fig. 4 Imagem retirada do programa Flexcontrol, utilizado para a identificação de agentes bacterianos através do gráfico de tempo de voo específico de cada micro-organismo. Neste exemplo, após a análise dos picos definidos, temos a identificação do Staphylococcus cohnii.
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Fig. 5 Imagem retirada do programa Flexcontrol utilizado para a identificação de agentes bacterianos através do gráfico de tempo de voo específico de cada micro-organismo. Neste exemplo, temos a identificação do Cutibacterium acnes.

Os pacientes foram acompanhados no período pós-operatório com exame físico presencial e radiografias seriadas durante o período de até 10 meses da primeira cirurgia realizada até a conclusão do tratamento. Nos pacientes que apresentaram identificação de bactérias nas amostras colhidas, foram coletados hemogramas e provas inflamatórias sanguíneas seriadamente. As avaliações dos pacientes no período pós-operatório, bem como suas radiografias e exames laboratoriais foram documentados em prontuário, visando a formação de um banco de dados para a realização de um futuro estudo do grupo com tempo de seguimento clínico mais prolongado.

Para a análise estatística, utilizamos o teste exato de Fisher, teste qui-quadrado, correlação de Person, teste t para duas amostras, intervalo de confiança e valor de p, quando aplicável. O nível de significância adotado foi de 0,05 (5%).


#

Resultados

Após a análise laboratorial das amostras coletadas, foi evidenciado o crescimento de agentes bacterianos em 40,5% dos pacientes (34/84). Desses, 23 apresentavam C. acnes em pelo menos uma das amostras coletadas, correspondendo a 27,3% do total de pacientes e a 67,6% dos pacientes que apresentaram amostras positivas para crescimento de qualquer microrganismo. Ademais, 4 pacientes (4,8%) apresentaram mais de uma amostra positiva para o C. acnes. O segundo agente microbiano mais identificado foi o Staphylococcus epidermidis, presente em 6 indivíduos (7,2% do total e 18,2% dos positivos), enquanto o terceiro agente foi o Escherichia coli, presente em 3 indivíduos (3,5% do total e 8,8% dos positivos) ([Tabela 1]).

Tabela 1

Indivíduo

Bactérias identificadas

Idade

Gênero

ASA

Profilaxia antibiótica

Diabetes mellitus

2

Pmi, Bl

91

F

III

1

(+)

4

Ca

61

M

II

1

(-)

6

Ca, Ec

57

M

II

2

(-)

7

Ca, Ml, Se

33

M

I

2

(-)

8

Ca, Eh

19

M

I

2

(-)

9

Cs

56

F

II

1

(-)

14

Sp

28

M

I

2

(-)

15

Ml

67

F

II

1

(+)

17

Ca, Ab

42

M

II

2

(-)

18

Ca, Sca

32

M

I

1

(-)

22

Ca, Sco

25

M

I

2

(-)

26

Ca, Ef

30

M

II

2

(-)

29

Ca

52

M

II

2

(-)

30

Ca

66

M

II

1

(-)

33

Ca, Ec

56

F

II

2

(+)

34

Ca, Se

58

M

II

1

(+)

37

Ca

49

F

II

2

(-)

41

Pmo

53

F

II

1

(-)

42

Ca

20

F

I

2

(-)

44

Ec

24

M

I

1

(-)

48

Ca

56

M

II

2

(-)

49

Ca

51

M

II

2

(-)

53

Pa

30

M

II

1

(-)

55

Ca

21

M

I

1

(-)

57

Ca

57

F

I

2

(-)

58

Se

69

F

II

2

(+)

59

Se

58

M

I

1

(-)

64

Ca

71

F

II

2

(-)

72

Se, Sl

27

M

II

1

(-)

74

Ca

54

M

II

2

(-)

76

Ca, Cg

30

M

I

1

(-)

77

Sco

42

M

II

1

(-)

81

Ca

36

M

II

1

(-)

83

Ca

52

M

II

1

(-)

Dentre os 23 indivíduos que apresentaram crescimento de C. acnes nas amostras, 18 (78,3%) eram do gênero masculino. Houve diferença estatisticamente significante para o gênero masculino tanto nos positivados pelo C. acnes (p = 0,05) quanto no total de positivados (p = 0,01). Não foi evidenciado diferença estatisticamente significante para a etnia ou para a técnica cirúrgica aplicada (cirurgias abertas ou artroscópicas).

Dos 34 indivíduos positivados para qualquer microrganismo, 11 (32,4%) foram classificados como ASA I, enquanto nos indivíduos com ausência de crescimento de microrganismos, esse grupo correspondeu a apenas 14% (7 entre 52 indivíduos). Foi evidenciado significância estatística para esse grupo de pacientes (p = 0,04). Quando avaliando os pacientes positivados para o C. acnes, verificou-se que 8 (34,7%) foram classificados como ASA I, e não encontramos significância estatística, mas uma tendência (p = 0,08). Observou-se ainda que indivíduos com diabetes mellitus possuíram menor isolamento de bactérias, correspondendo a apenas 3 (13%) indivíduos dos 23 positivados para o C. acnes (p = 0,04) e a 6 (17,6%) dos 34 positivados para qualquer bactéria (p = 0,04).

Em 8 (35%) dos indivíduos com amostras positivas para o C. acnes foi administrado cefazolina como antibiótico profilático na indução anestésica e durante as 24 horas de pós-operatório. Em 15 (65%) indivíduos foi administrado cefuroxima nesse mesmo período, sendo que 5 deles apresentaram duas ou mais amostras positivas para o C. acnes (83% dos indivíduos com duas ou mais amostras positivas). Evidenciamos diferença estatística significante na antibioticoterapia profilaxia para a detecção de uma amostra positiva para o C. acnes (p = 0,03) e não houve significância estatística para duas ou mais amostras positivas para o C. acnes, mas houve tendência (p = 0,09).

Dentre as 252 amostras coletadas, 53 amostras (21%) foram positivas para identificação de microrganismo. Das amostras positivas, 30,5% foram coletadas em frascos com soro fisiológico e 69,8% foram coletadas em frascos contendo tioglicolato. Amostras de tendões possuíram 35% de identificação bacteriana, seguidas por amostras de bolsa subacromial (34%) e de osso (31%). Adicionalmente, 22 pacientes (64,7% dos positivos) apresentaram resultado monomicrobiano – isto é, apenas uma das amostras positiva para identificação bacteriana –, enquanto 12 (35,3%) apresentaram resultado polimicrobiano – isto é, duas ou mais amostras positivas para o mesmo ou diferentes agentes. O C. acnes foi o agente mais identificado nos pacientes com resultado monomicrobiano (81%) e com resultado polimicrobiano (100%), sendo que 43% dos pacientes positivados para C. acnes apresentaram amostras polimicrobianas.


#

Discussão

A identificação de potenciais agentes bacterianos patogênicos vem ganhando ênfase na literatura ortopédica. No estudo das afecções do ombro, o C. acnes recebe destaque como um agente possivelmente patogênico durante o período pós-operatório de cirurgias abertas e artroscópicas. Mais recentemente, foi evidenciada a sua presença em amostras de cirurgias primárias do ombro.[4] [12] [13] Procuramos avaliar em nosso estudo, a presença do C. acnes em amostras de tecidos profundos de ombros de pacientes submetidos a cirurgias limpas primárias, sem histórico de infecção prévia.

O isolamento do C. acnes é difícil. Em estudo prévio do nosso grupo, evidenciou-se que meio de cultura utilizados para microrganismos anaeróbios nos recipientes de coleta e transporte, bem como um tempo de incubação das amostras prolongado, são fatores determinantes para a identificação dessa bactéria em cirurgias primárias do ombro sem histórico de infecção.[7] Utilizando frascos estéreis de transporte a seco, com transporte efetuado por laboratórios terceirizados ao hospital e com o tempo de incubação de até 7 dias, obtivemos apenas uma amostra positiva para estafilococo coagulase-negativo dentre os 47 ombros estudados,[7] configurando-se um resultado abaixo do encontrado na literatura.[4] [12] [13] Entendemos, portanto que a utilização de uma metodologia que envolvesse o armazenamento e o transporte de amostras em soro fisiológico e em tioglicolato (meio de transporte e de cultura para agentes anaeróbico), o rápido transporte do centro cirúrgico para o laboratório, o tempo de incubação superior a 14 dias e a identificação dos agentes com maior sensibilidade e especificidade pelo MALDI-TOF MS, foram fatores essenciais para ao análise correta da microbiota do ombro no presente estudo.

Seguindo essa metodologia, obtivemos neste estudo 40,3% de amostras positivas para diferentes microrganismos, sendo que 67,3% dessas foram positivas para C. acnes (27,6% da amostra). Ao compararmos esses valores com outros estudos, observamos que Sethi et al.[12] encontraram uma taxa de 21,8% de amostras positivas para o C. acnes em artroscopias primárias do ombro, Hudek et al.[4] encontraram uma taxa de 36,4% em cirurgias abertas do ombro e Levy et al.[13] encontraram taxa de 41,8% em artroplastias primárias. Nosso estudo não identificou diferença estatisticamente significante entre os resultados de pacientes submetidos às cirurgias aberta ou artroscópica. O segundo agente mais encontrado na nossa pesquisa foi o Staphylococcus epidermidis, presente em 7,2% do total de indivíduos incluídos e em 18,2% daqueles com crescimento bacteriano identificado nas amostras. Esse dado encontra-se de acordo com a literatura.[5] Evidenciamos com os dados do nosso estudo que o C. acnes ocupa papel importante no pós-operatório de cirurgias do ombro, uma vez que corresponde ao agente bacteriano mais encontrado nas cirurgias primárias dessa articulação.

Epidemiologicamente, pudemos estabelecer correlações entre a positividade de amostras, inclusive do C. acnes, e a idade, o gênero e a presença de comorbidades prévias dos pacientes. Evidenciamos que os pacientes do gênero masculino apresentaram taxas maiores de amostras positivas para qualquer microrganismo e, mais especificamente, para o C. acnes.

A média de idade nos pacientes com amostras positivas foi de 46,2 anos e naqueles com isolamento de C. acnes foi de 44,7 anos. Ambos os valores são inferiores às médias dos pacientes sem isolamento.

A predominância do gênero masculino nos achados do C. acnes foi previamente relatado por diversos estudos.[2] [3] [14] [15] Kaveeshwar et al.[15] encontraram uma correlação do isolamento desse agente com a idade inferior a 40 anos. As maiores prevalências no gênero masculino e em jovens são relacionadas à produção mais ativa das glândulas sebáceas nesses indivíduos.[15] Por fim, Nagaya et al.[16] evidenciaram que pacientes com escore de risco anestésico maior que ASA III possuíam maior risco de desenvolver infecção após realização de artroplastia do ombro. Curiosamente, em nosso estudo encontramos maior correlação de isolamento de microrganismos em pacientes ASA I, com tendência para isolamento de C. acnes. Outra relação importante que encontramos foi o menor isolamento de C. acnes e outros agentes bacterianos em pacientes portadores de diabetes mellitus, assim como Kaveeshwar et al.,[15] que também não evidenciaram essa comorbidade como fator de risco para o isolamento do C. acnes.

Verificamos que a antibioticoterapia profilática na indução anestésica apresentou relação com o isolamento do C. acnes. Proporcionalmente, houve maior isolamento nos pacientes que receberam cefuroxima quando comparados aos que receberam cefazolina. A literatura internacional demonstra taxas de redução de mais de 50% de infecções superficiais e profundas após a administração de cefalosporinas na indução anestésica de cirurgias ortopédicas, sendo a cefazolina ou a cefuroxima os antibióticos de escolha pela American Academy of Orthopaedic Surgeons (AAOS) para as cirurgias ortopédicas eletivas, sem clara predileção por um ou outro.[17] As cefalosporinas além de apresentarem cobertura para a maioria dos Staphylococcus aureus e alguns organismos gram-negativos, possuem um bom perfil de segurança, um tempo de meia-vida longo e uma eficiente penetração nos ossos.[17] Ao nosso conhecimento, não existem estudos prévios que demonstram a relação comparativa entre a profilaxia com cefazolina ou com cefuroxima na taxa de crescimento laboratorial de C. acnes.

Durante o acompanhamento dos indivíduos, apenas uma paciente que possuiu o isolamento de Proteus mirabilis e outros dois com isolamento do C. acnes apresentaram sinais inflamatórios inespecíficos 2 semanas após a cirurgia. Todos realizaram antibioticoterapia oral e encontravam-se assintomáticos e sem alterações radiográficas ou laboratoriais após seguimento de até 10 meses.

Vale ressaltar que o presente estudo é o primeiro deste tipo na ortopedia brasileira. Como ponto positivo, ele exibe a importância de uma eficaz metodologia de coleta e transporte de amostras intraoperatórias, assim como de identificação de microrganismos por novas e diferentes técnicas microbiológicas como fator substancial para o sucesso diagnóstico e para a aprimoração dos cuidados no combate a infecções ortopédicas. Entendemos que nosso estudo mostra uma diferente perspectiva de pesquisa bacteriana em nosso meio, que permite a identificação de possíveis fatores de risco para o crescimento bacteriano. Ressaltamos como fatores limitantes do estudo a inviabilidade de realizar uma análise multivariada dos fatores de risco encontrados devido ao tamanho da amostra, bem como a ausência de um grupo controle.

A observação e a correlação clínica de sinais e sintomas inflamatórios por períodos mais longos nos indivíduos que obtiveram isolamento bacteriano nesse estudo é tema de interesse do nosso grupo para um novo estudo em andamento, que visa contemplar a importância da qualificação e quantificação das amostras positivas encontradas.


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Conclusão

Verificou-se um elevado percentual de isolados de diferentes bactérias em amostras de tecidos de ombros de pacientes submetidos a cirurgias limpas e primárias e sem histórico de infecção anterior. A identificação de C. acnes foi elevada (27,6%) e o Staphylococcus epidermidis foi o segundo agente mais frequente (7.2%).


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Trabalho multicêntrico realizado no Grupo de Cirurgia de Ombro do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, “Pavilhão Fernandinho Simonsen” (DOT – FCMSCSP) (Diretora: Professora Doutora Maria Fernanda Silber Caffaro); no Hospital Alemão Oswaldo Cruz em São Paulo (Grupo de Cirurgiões do Ombro); e no Laboratório Especial de Microbiologia Clínica (LEMC) da Disciplina de Infectologia do Departamento de Medicina da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil.


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Endereço para correspondência

Guilherme Vieira Gonçalves
Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, Departamento de Ortopedia e Traumatologia “Pavilhão Fernandinho Simonsen”
Rua Dr. Cesário Mota Júnior, 112 Vila Buarque, 01220-020, São Paulo, SP
Brasil   

Publication History

Received: 15 September 2021

Accepted: 17 August 2022

Article published online:
25 May 2023

© 2023. Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution-NonDerivative-NonCommercial License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit. Contents may not be used for commercial purposes, or adapted, remixed, transformed or built upon. (https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/)

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Fig. 1 Exemplo de frasco contendo caldo de tioglicolato, utilizado para a incubação das amostras coletadas.
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Fig. 2 Exemplo de caldo de tioglicolato turvado após a incubação da amostra, evidenciando a proliferação bacteriana.
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Fig. 3 Placa de petri contendo amostras de culturas de Cutibacterium acnes cultivadas em meio ágar sangue de carneiro.
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Fig. 4 Imagem retirada do programa Flexcontrol, utilizado para a identificação de agentes bacterianos através do gráfico de tempo de voo específico de cada micro-organismo. Neste exemplo, após a análise dos picos definidos, temos a identificação do Staphylococcus cohnii.
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Fig. 5 Imagem retirada do programa Flexcontrol utilizado para a identificação de agentes bacterianos através do gráfico de tempo de voo específico de cada micro-organismo. Neste exemplo, temos a identificação do Cutibacterium acnes.
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Fig. 1 Example of a vial containing thioglycolate broth, used for incubation of the collected samples.
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Fig. 2 Example of turbid thioglycolate broth after sample incubation, evidencing bacterial proliferation.
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Fig. 3 Petri dish containing samples of Cutibacterium acnes cultures grown in sheep's blood agar.
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Fig. 4 Image taken from the Flexcontrol program, used to identify bacterial agents through the specific flight time graph of each microorganism. In this example, after analyzing the defined peaks, we have the identification of Staphylococcus cohnii.
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Fig. 5 Image taken from the Flexcontrol program used to identify bacterial agents through the specific flight time graph of each microorganism. In this example we have the identification of Cutibacterium acnes.