Open Access
CC BY-NC-ND 4.0 · Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2023; 58(04): e632-e638
DOI: 10.1055/s-0042-1758362
Artigo Original
Ortopedia Pediátrica

Técnica de Dunn modificada no escorregamento da epífise femoral proximal com instabilidade: Experiência unicêntrica de médio prazo[*]

Article in several languages: português | English
1   Médico Ortopedista, Especialista em Cirurgião Ortopédico Pediátrico, Hospital Estadual da Criança, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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1   Médico Ortopedista, Especialista em Cirurgião Ortopédico Pediátrico, Hospital Estadual da Criança, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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1   Médico Ortopedista, Especialista em Cirurgião Ortopédico Pediátrico, Hospital Estadual da Criança, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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1   Médico Ortopedista, Especialista em Cirurgião Ortopédico Pediátrico, Hospital Estadual da Criança, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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1   Médico Ortopedista, Especialista em Cirurgião Ortopédico Pediátrico, Hospital Estadual da Criança, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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2   Médico Ortopedista, Chefe da Ortopedia Pediátrica, Hospital Estadual da Criança, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
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Suporte Financeiro Os autores declaram que não receberam apoio financeiro para o preparo deste manuscrito.
 

Resumo

Objetivo Avaliar a segurança e a reprodutibilidade da cirurgia para escorregamento da epífise femoral proximal (EEPF) com instabilidade por meio da técnica de Dunn modificada em uma coorte unicêntrica no Brasil.

Métodos Analisamos de forma retrospectiva uma coorte de pacientes submetidos a esse procedimento por um único cirurgião especialista em preservação do quadril. Avaliamos os dados demográficos e os ângulos radiográficos quanto ao risco relativo (RR) de necrose avascular (NAV) por meio do modelo de regressão log-binomial com efeitos simples e aleatórios.

Resultados Entre os 30 pacientes (30 quadris) com idade média de 11,79 anos no momento da cirurgia, havia 17 meninos e 18 quadris esquerdos. O procedimento ocorreu em média 11,5 dias após o escorregamento. O tempo médio de acompanhamento foi de 38 meses. O ângulo de Southwick pré-operatório foi, em média, de 60,69° contra 4,52° após o procedimento (p < 0,001). O maior ângulo de escorregamento pré-operatório foi associado ao desenvolvimento de NAV (RR: 1,05; intervalo de confiança de 95% [IC95%]: 1,02–1,07; p < 0,01). A frequência geral de NAV foi de 26,7%. De acordo com a Escala de Quadril de Harris (Harris Hip Score), a função foi boa ou excelente em 86% dos quadris sem complicações, e ruim em 87,5% dos casos com NAV. Não houve relação estatística entre sangramento epifisário e desenvolvimento de NAV (p = 0,82).

Conclusão A técnica de Dunn modificada restaura o alinhamento femoral e a função articular após o EEPF com instabilidade na ausência de complicações. Além disso, mostrou-se passível de reprodução em nossa população, com frequência de necrose da cabeça femoral de 26%.


Introdução

O escorregamento da epífise femoral proximal (EEPF) é caracterizado pelo deslocamento anterior e lateral da metáfise femoral proximal em relação à epífise. A deformidade secundária, ou necrose avascular (NAV), da cabeça femoral, a pior complicação relacionada ao EEPF, pode ter impacto funcional importante.[1] [2] [3] Segundo Loder et al.,[4] o EEPF instável é aquele em que o paciente não consegue se levantar com auxílio, mesmo sem sustentação de peso no membro acometido. Além disso, esses autores[4] relacionaram a instabilidade a um risco de NAV de até 47%. Essa relação foi revista recentemente, e a incidência de NAV em casos instáveis continuou elevada, de 22% a 50%.[2] [5] [6] Por outro lado, praticamente não há risco de NAV no EEPF estável.[5] [7] [8]

Diferentes técnicas cirúrgicas foram desenvolvidas para minimizar os prejuízos funcionais do escorregamento e de suas complicações. A osteotomia de realinhamento subcapital, conhecida como técnica de Dunn modificada, vem ganhando popularidade desde sua descrição em 2007 por um grupo de cirurgiões suíços.[9] A possibilidade de proteger o suprimento vascular da cabeça femoral ao corrigir a deformidade e restaurar a anatomia anterior à lesão tem sido o principal motivo dessa mudança no tratamento do EEPF. Há muitos trabalhos publicados[5] [10] [11] [12] [13] [14] [15] [16] sobre a experiência de centros internacionais especializados, com incidência de NAV que varia de menos de 10% a mais de 50%. No entanto, a experiência brasileira é escassa na literatura, e nosso objetivo é descrever os resultados em médio prazo dos primeiros 30 casos operados com esta técnica em nossa unidade de preservação do quadril.


Materiais e Métodos

Depois da aprovação pelo Comitê de Ética institucional (sob o CAAE 80941816.1.0000.5249), acompanhamos de forma prospectiva os primeiros 31 pacientes (31 quadris) submetidos à técnica de Dunn modificada para tratamento do EEPF com instabilidade. Os procedimentos foram realizados pelo mesmo profissional, um cirurgião ortopédico pediátrico especializado em preservação do quadril. Todos os pais assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido para o tratamento cirúrgico e a participação no projeto. As cirurgias ocorreram entre janeiro de 2015 e julho de 2018 em pacientes com escorregamentos instáveis de acordo com a classificação de Loder et al.[4] e escorregamentos moderados ou graves de acordo com o ângulo de Southwick.[17] A cirurgia foi realizada de acordo com a técnica descrita por Leunig et al.,[9] à exceção da não utilização de fluxometria por Doppler para avaliação da vascularização da cabeça femoral no período intraoperatório. Além disso, usamos um método de fixação diferente, composto por um parafuso canulado de 7,0 mm (Synthes, Oberdorf, Solothurn, Suíça) e um pino rosqueado de 2,0 mm nos primeiros 22 casos, e 2 parafusos canulados de 7,0 mm nos 9 casos seguintes.[9] Determinamos a vascularização da cabeça femoral pela presença de sangramento de 1 ou 2 orifícios perfurados na porção anterior do osso com fio de Kirschner liso de 1,5 mm antes da dissecção do retalho retinacular e após a redução da epífise.

Escorregamentos brandos e estáveis, bem como EEPF moderado ou grave com fise fechada, foram excluídos da análise. Pacientes com aspecto radiográfico de NAV anterior ao tratamento em nossa instituição e aqueles com anomalias endócrinas ou outras comorbidades também foram excluídos do grupo de estudo.

Os dados pré-operatórios incluíram idade, gênero, lateralidade, tempo entre o início dos sintomas e o tratamento cirúrgico, estabilidade de acordo com os critérios de Loder et al.,[4] e magnitude do escorregamento de acordo com o ângulo de Southwick.[17] Depois do procedimento, registramos a correção quantitativa do ângulo de Southwick, a duração do acompanhamento, a incidência de complicações, e o estado funcional de acordo com a Escala de Quadril de Harris (Harris Hip Score, HHS, em inglês).[18] A [Tabela 1] descreve os principais dados demográficos. Um paciente foi perdido no acompanhamento antes de um ano após a cirurgia; assim, foi excluído da análise final, o que configurou 97% de retenção da amostra inicial.

Tabela 1

Pacientes (quadris)

30 (30)

Idade média (anos)

11,79

Gênero (masculino:feminino)

17:12

Lado (direito:esquerdo)

12:18

ΔT médio (dias)

11,53

Necrose avascular (casos/%)

8/26,67%

Acompanhamento médio (meses)

38,07

Valor médio do ângulo de Southwick no período pré-operatório (graus)

60,69

Valor médio do ângulo de Southwick no período pós-operatório (graus)

4,52

O ângulo de escorregamento (como descrito por Southwick[17]) foi medido em radiografias pré-operatórias em incidências anteroposteriores (APs) e em perfil (perna de rã) do quadril pelo autor principal (FCMV). Esse ângulo foi classificado de acordo com Boyer et al.[19] como brando em casos com escorregamentos abaixo de 30°, moderado em lesões entre 30° e 50°, e grave em escorregamentos acima de 50° em radiografias em perfil. A magnitude da correção do escorregamento foi calculada subtraindo-se o ângulo de Southwick pós-operatório de seu valor pré-operatório. O diagnóstico radiográfico de NAV foi baseado na presença de uma ou mais das seguintes: esclerose do osso subcondral, fratura subcondral, e radiotransparência do osso subcondral e/ou reabsorção ou colapso do osso subcondral com achatamento de qualquer parte da cabeça do fêmur ([Fig. 1]). A condrólise foi determinada como a redução do espaço articular para menos de 50% do valor observado no quadril contralateral ou 3 mm em casos bilaterais, além de rigidez articular. As complicações pós-operatórias foram classificadas de acordo com o sistema modificado de Clavien-Dindo, em que o grau I compreende as complicações que não requerem alteração na rotina pós-operatória normal, o grau II requer alteração ambulatorial nos cuidados pós-operatórios, o grau III requer intervenção radiológica ou cirúrgica, o grau IV está associado à morbidade em longo prazo ou risco de morte, e o grau V leva ao óbito do paciente.[20] [21]

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Fig. 1 Pré-operatório (A); aspecto intraoperatório da impressão dos vasos retinaculares na epífise, demonstrando sua possível avulsão pelo escorregamento (B); pós-operatório imediato (C,D); e aspecto radiográfico final (E) do escorregamento instável grave com desenvolvimento de necrose avascular da cabeça do fêmur.

O protocolo pós-operatório incluiu a ausência de sustentação de peso nas primeiras seis semanas, seguida de sustentação parcial de peso em caso de presença dos primeiros sinais de cicatrização (fechamento da fise femoral proximal ou formação de calo interfisário em três das quatro corticais em duas radiografias em incidência ortogonal) à consulta realizada às seis semanas ([Fig. 2]). Permitimos a sustentação de peso irrestrita depois da cicatrização completa e a retomada de todas as atividades depois de seis meses em casos não complicados. Os exercícios de fortalecimento da musculatura abdutora começaram após a cicatrização da osteotomia do trocanter maior. Os casos complicados por NAV foram mantidos sem sustentação de peso e submetidos à descompressão precoce da cabeça femoral por meio de múltiplas perfurações da fise com broca canulada de 4,3 mm e revisão da fixação quando necessário. A condrólise foi tratada por manipulação sob anestesia e injeção intra-articular de corticosteroide. O estado funcional foi determinado pelo autor principal à consulta de acompanhamento de um ano usando o HHS.[18]

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Fig. 2 Aspecto radiográfico pré-operatório (A,B) e 27 meses após a cirurgia (C,D) de um escorregamento instável grave com cicatrização sem intercorrências. Nota: +Demonstração dos vasos retinaculares intactos penetrando na epífise (E).

Os dados de variáveis qualitativas foram descritos como frequências absolutas e percentuais, enquanto as variáveis quantitativas foram expressas como médias, desvios padrão, valores mínimos, medianas e valores máximos. O risco relativo (RR) de complicações foi estimado com o modelo de regressão log-binomial com efeito aleatório simples e múltiplo. A análise estatística foi feita com o programa SAS (SAS Institute, Inc., Cary, NC, Estados Unidos), versão 9.2, e os gráficos foram preparados com o programa R (R Foundation for Statistical Computing, Viena, Áustria), versão 3.4.1. O nível de significância de 5% foi usado em todas as comparações (α = 0,05).


Resultados

A amostra final foi composta por 30 pacientes (30 quadris), sendo 56,6% (17) do gênero masculino, e 60% (18) quadris esquerdos. A idade média à cirurgia foi de 11,79 (variação: 9 a 15) anos, e o tempo médio entre o escorregamento e o procedimento cirúrgico foi de 11,53 (variação: 5 a 45) dias ([Tabela 1]). No total, 9 (56.25%) dos 16 casos com sangramento da cabeça femoral antes da dissecção do retalho periósteo e depois da redução epifisária apresentavam hemorragia anterior à dissecção; e 13 (81.25%) dos mesmos 16 casos apresentavam sangramento após a redução da epífise, o que pode ter configurado uma recuperação da vascularização da cabeça em 4 casos com a técnica. No entanto, não observamos relação entre o sangramento e o desfecho final de NAV (RR: 0,89; intervalo de confiança de 95% [IC95%]: 0,32–2,45; p = 0,82).

O escorregamento pré-operatório médio foi de 60,69° (variação: 44° a 90°), e o ângulo pós-operatório médio foi de 4,52° (variação: -9° a 12°). Portanto, todos os casos apresentaram angulação moderada ou grave de acordo com Boyer et al.[19] Entre os 30 quadris operados, 73,3% (22) tiveram evolução radiográfica satisfatória, com cicatrização nos primeiros 3 meses após o procedimento e sem maiores complicações. A incidência de NAV ao final do acompanhamento foi de 26,7% (8 casos). Todos esses pacientes, à exceção de um, desenvolveram NAV nos primeiros seis meses depois da cirurgia. A exceção foi um menino com sinais de cicatrização na consulta ambulatorial aos seis meses, mas que retornou à consulta de nove meses com dor intensa após uma queda durante um jogo de futebol, e apresentou fratura subcondral e colapso radiográfico.

A correlação entre o grau de deformidade e a ocorrência de NAV foi estatisticamente significativa, sendo que o escorregamento maior estava relacionado a um maior risco de NAV (RR: 1,05; IC95%: 1,02–1,07; p < 0,01) ([Tabela 2] e [Fig. 3]). Além disso, identificamos que cada grau de aumento do ângulo de Southwick aumentava o risco de NAV em 4,5%. Da mesma forma, o maior grau de correção do ângulo de Southwick foi diretamente proporcional ao desenvolvimento de NAV (RR: 1,05; IC95% 1,007–1,1; p = 0,02). Por outro lado, o gênero do paciente e o lado acometido do quadril não interferiram no desenvolvimento de NAV (p = 0,17 e 0,16, respectivamente), nem a idade à apresentação, após o ajuste de fatores de confusão (p = 0,6).

Tabela 2

Sem NAV

NAV

ΔT (dias)

13,22

9

Idade média (anos)

11,57

12,38

Gênero (masculino:feminino)

14:07

03:05

Valor médio pré-operatório do ângulo de Southwick (graus)*

58,24*

67,13*

Correção média do ângulo de Southwick (graus)*

54,14*

61,5*

Valor médio da Escala de Quadril de Harris (pontos)*

86,67*

48,75*

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Fig. 3 Relação entre a magnitude do escorregamento medido pelo ângulo de Southwick no período pré-operatório e a ocorrência de complicações (necrose avascular). Notas: # Risco relativo: 1,05; intervalo de confiança de 95%: 1,025–1,076; p < 0,01, pelo modelo de regressão log-binomial com efeitos aleatórios simples e múltiplos. *Valor médio.

A pontuação média na HHS foi de 75,7 (variação 35,3 a 96,7) pontos. Após a estratificação entre os casos que evoluíram ou não com complicações, principalmente NAV, observamos uma média de 86,6 pontos (desfecho bom) no grupo sem NAV, com 86% (19 quadris) com função boa ou excelente. O grupo NAV, porém, apresentou pontuação média na HHS de 48,7 pontos (desfecho mau), com 87,5% (7 casos) DE resultados ruins. Houve dois casos de condrólise, ambos Clavien-Dindo III, com necessidade de revisão cirúrgica para injeção de corticosteroide. A condrólise era autolimitante e a resolução radiológica do dano condral foi observada após dois anos. A pontuação final na HHS foi de 86,3 pontos em um caso, e de 71,8 pontos no outro. Todos os casos de NAV foram considerados Clavien-Dindo IV, com importante comprometimento funcional no acompanhamento em médio prazo. Todos foram submetidos à descompressão da cabeça femoral logo após a identificação dos sinais radiográficos de NAV. Além disso, dois dos casos de NAV foram submetidos à osteotomia valgizante proximal do fêmur, mas continuaram a apresentar função ruim, e serão submetidos a uma artroplastia total do quadril (ATQ). Um paciente foi submetido à artrodiástase com fixador externo concomitante à descompressão da cabeça e, apesar do mau resultado radiográfico, encontra-se clinicamente estável e ainda não deseja realizar a artroplastia. Mais três pacientes foram submetidos à retirada dos dispositivos de fixação e passarão pela ATQ. Os outros dois pacientes com NAV relatam satisfação funcional e estão em acompanhamento ambulatorial. Houve uma complicação de Clavien-Dindo II, que consistiu em uma infecção superficial da ferida, tratada com sucesso com antibióticos administrados por via oral.


Discussão

Em sua forma instável, o EEPF está associado à NAV em até 47% dos casos.[2] [4] [5] Por isso, a aceitação internacional das técnicas cirúrgicas que combinam o realinhamento anatômico com pouca deformidade secundária e minimizam o risco de NAV, em especial o procedimento de Dunn modificado, aumentou na última década.[9] [14] A experiência internacional com esta técnica foi publicada desde sua descrição, mas há poucos dados acerca da população latino-americana.[5] [11] [16] [22] [23] [24] [25] Neste estudo, que envolve a maior coorte latino-americana unicêntrica até o momento, demonstramos que o tratamento do EEPF instável pela técnica de Dunn modificada é reprodutível na população brasileira, com risco de NAV de 26% (8 casos).

Nossa amostra apresentou demografia semelhante à anteriormente descrita quanto à idade à apresentação, maior prevalência no gênero masculino e predomínio do quadril esquerdo.[26] Os principais fatores relacionados ao desenvolvimento de NAV foram a magnitude do escorregamento e a idade menor.[26] [27] [28] Além disso, observamos uma relação significativa entre o ângulo de Southwick mais grave e o maior risco de NAV. Em nossa amostra, a probabilidade de NAV aumentou em 4,5% para cada grau de aumento no ângulo de Southwick. Por outro lado, os pacientes mais velhos de nossa amostra apresentaram mais NAV do que os mais jovens, mas sem significância estatística. Acreditamos que isso pode estar relacionado ao periósteo mais delgado dos pacientes mais velhos, que pode ser mais frágil e suscetível à ruptura em um EEPF instável agudo ou durante a cirurgia ([Fig. 1]).

Registramos sangramento pelos orifícios perfurados na cabeça femoral em 16 de nossos casos. Entre os pacientes com NAV, 5 (62.5%) foram submetidos a essa avaliação, e 3 (60% dos avaliados) tiveram sangramento ativo após a redução da epífise. Em nossa opinião, esse teste não é preciso para a determinação da vascularização da cabeça, mas nossa amostra era insuficiente para a análise de tal variável. Estudos anteriores utilizaram diferentes métodos para a determinação da viabilidade epifisária. A fluxometria por Doppler foi o método mais preciso, embora a leitura do resultado possa demorar dois minutos.[29] Além disso, o sangramento por orifícios epifisários tem se mostrado tão preciso quanto o monitoramento por cateter de pressão intracraniana para a detecção de uma interrupção no fluxo sanguíneo, e esse ainda é nosso método de escolha para avaliação futura de uma população maior.[30] Há alguns questionamentos quanto à possível avascularidade da cabeça femoral antes da cirurgia. Um estudo francês[31] com ressonância magnética (RM) de perfusão mostrou que cabeças avasculares antes do realinhamento podem sofrer revascularização após o procedimento cirúrgico. A angiografia superseletiva da artéria circunflexa medial também identificou a revascularização pela cirurgia; assim, é importante utilizar uma técnica capaz de proporcionar reorientação segura da epífise femoral em vez de fixar escorregamentos instáveis in situ.[32] [33]

Segundo a literatura,[2] [5] [6] [10] [16] [23] [24] [34] a prevalência de NAV nos casos instáveis varia de 6,5% a 53%. Em nossa amostra, a frequência de NAV foi de 26% (8 quadris), comparável àquela observada em um estudo multicêntrico americano publicado em 2013,[11] que avaliou apenas escorregamentos instáveis. Valenza et al.,[34] em um estudo publicado recentemente com uma coorte brasileira de EEPF, relataram uma frequência geral de NAV de 25% entre escorregamentos estáveis e instáveis, o que também é compatível com nossa amostra, embora tenhamos estudado apenas casos instáveis. É importante citar que diferentes técnicas de realinhamento capital são utilizadas internacionalmente no tratamento do EEPF. Um estudo multicêntrico francês,[23] por exemplo, mostrou que a técnica preferida naquele país é uma osteotomia cuneiforme pela abordagem de Hueter sem dissecção de retalho periósteo, com apenas 13,3% de casos de NAV em 45 escorregamentos instáveis. O tratamento antes de 24 horas de evolução com redução delicada e capsulotomia anterior permitiu que a frequência de NAV em um único centro alemão[35] fosse de 4,7% em 60 escorregamentos instáveis durante um período de 19 anos. Infelizmente, a logística do sistema de saúde brasileiro não nos permitiria receber pacientes em um cenário tão agudo assim, e os resultados desta última técnica não foram reprodutíveis. A frequência de NAV em casos instáveis submetidos à fixação in situ é de 22% a 47%.[2] [5] Logo, acreditamos que uma técnica passível de reprodução e com frequência de NAV de 26%, ou talvez menos, dependendo da curva de aprendizado, seja muito útil e deva ser considerada no tratamento de escorregamentos instáveis. Acreditamos também que esses casos devam ser encaminhados a um cirurgião de alto volume, o que está relacionado a uma taxa menor de complicações.[36]

Este estudo teve algumas limitações, sendo a mais importante a ausência de um grupo controle submetido à fixação terapêutica in situ. Isso mostraria, em nossa população, o impacto da instabilidade e da técnica de Dunn modificada no desenvolvimento de NAV. Por outro lado, este estudo foi prospectivo, e todos os casos de escorregamentos instáveis foram tratados pelo mesmo cirurgião, especializado em preservação do quadril, o que evitou o viés de seleção e as complicações relacionadas a profissionais de baixo volume. Pretendemos publicar os resultados de casos subsequentes para a avaliação do impacto da curva de aprendizado sobre as complicações e ampliar as indicações para os escorregamentos estáveis graves.

Por fim, concluímos que a técnica de Dunn modificada é eficaz no restauro da anatomia do fêmur proximal e justificável por sua frequência de NAV em EEPF com instabilidade, sendo reprodutível em nossa população quando comparada a coortes internacionais.



Conflito de Interesses

Os autores não têm conflito de interesses a declarar.

Agradecimentos

A todos os pacientes e familiares que concordaram em compartilhar seus dados, e a toda equipe médica e de apoio do Hospital Estadual da Criança, cujo trabalho contribuiu muito para este estudo.

* Estudo conduzido no Hospital Estadual da Criança, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.



Endereço para correspondência

Frederico C. M. Vallim, MD, MSc
Departamento de Cirurgia Ortopédica Pediátrica, Hospital Estadual da Criança
Rua Paulo Mazzucchelli, 120/201, Barra da Tijuca, RJ
Brasil   

Publication History

Received: 10 March 2022

Accepted: 12 September 2022

Article published online:
21 July 2023

© 2023. Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. This is an open access article published by Thieme under the terms of the Creative Commons Attribution-NonDerivative-NonCommercial License, permitting copying and reproduction so long as the original work is given appropriate credit. Contents may not be used for commercial purposes, or adapted, remixed, transformed or built upon. (https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/)

Thieme Revinter Publicações Ltda.
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Fig. 1 Pré-operatório (A); aspecto intraoperatório da impressão dos vasos retinaculares na epífise, demonstrando sua possível avulsão pelo escorregamento (B); pós-operatório imediato (C,D); e aspecto radiográfico final (E) do escorregamento instável grave com desenvolvimento de necrose avascular da cabeça do fêmur.
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Fig. 2 Aspecto radiográfico pré-operatório (A,B) e 27 meses após a cirurgia (C,D) de um escorregamento instável grave com cicatrização sem intercorrências. Nota: +Demonstração dos vasos retinaculares intactos penetrando na epífise (E).
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Fig. 1 Preoperative period (A); intraoperative aspect of the footprint of the retinacular vessels in the epiphysis demonstrating its potential avulsion due to the slip (B); immediate postoperative period (C,D); and final (E) radiographic aspect of a severe unstable slip developing avascular necrosis of the femoral head.
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Fig. 2 Radiographic aspect, preoperatively (A,B) and 27 months postoperatively (C,D), of a severe unstable slip with uneventful healing. Note: +Demonstrates the intact softspot, where retinacular vessels penetrating the epiphysis (E).
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Fig. 3 Relação entre a magnitude do escorregamento medido pelo ângulo de Southwick no período pré-operatório e a ocorrência de complicações (necrose avascular). Notas: # Risco relativo: 1,05; intervalo de confiança de 95%: 1,025–1,076; p < 0,01, pelo modelo de regressão log-binomial com efeitos aleatórios simples e múltiplos. *Valor médio.
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Fig. 3 Relationship between the magnitude of the slip measured by the Southwick angle preoperatively and the occurrence of complications (avascular necrosis). Notes: # RR: 1.05; 95%CI: 1.025–1.076; p < 0.01 by the log-binomial regression model with simple and multiple random effects. *Mean value.