Palavras-chave calcâneo - impressão tridimensional - oncologia - tumores de células gigantes
Keywords calcaneum - giant cell tumors - oncology - printing, three-dimensional
Introdução
Os avanços no processamento de imagens levaram ao uso clínico crescente da tecnologia
de impressão tridimensional (3D). As imagens de tomografia computadorizada (TC) ou
ressonância magnética (RM) podem ser convertidas em arquivos 3D e gerar um modelo
anatômico perfeito. Essa tecnologia confere versatilidade ao processo de design e possibilita a produção eficiente de anatomia personalizada e pronta para uso, adaptando-se
às especificidades necessárias.[1 ] Na cirurgia ortopédica oncológica, moldes e instrumentos impressos em 3D podem ser
utilizados para restauração óssea após uma ressecção tumoral ampla. Existem opções
convencionais de substituição com implantes metálicos, mas seus custos podem ser exorbitantes.
Em nosso caso, a concha anatômica em 3D foi impressa a um custo mínimo e o cimento
ósseo utilizado para preenchê-la também teve baixo custo. Este artigo analisa a técnica
cirúrgica, descreve os fundamentos da tecnologia de impressão 3D e discute suas possíveis
aplicações em cirurgia ortopédica e impacto futuro.
Relato de Caso
Este tratamento cirúrgico inovador foi realizado em um paciente que chegou à nossa
instituição com um tumor de células gigantes (TCG) recorrente do calcâneo. O paciente
havia sido tratado 18 meses antes com uma série de denosumabe e curetagem extensa
e apresentava aumento de volume e dor no calcanhar esquerdo ([Figs. 1 ] e [2 ]).
Fig. 1 Imagem radiográfica do calcâneo esquerdo acometido em (A ) vistas anteroposterior, (B ) axial e (C ) em perfil.
Fig. 2 Quadro clínico do pé esquerdo acometido.
Descrição da Técnica Impressão 3D
Há diversos métodos de impressão 3D, mas todos compartilham os mesmos princípios e
processos.[1 ] Embora a impressão 3D tenha ganho força ao longo dos anos, não é amplamente difundida
devido à sua íngreme curva de aprendizado e conhecimento limitado.[2 ] Como este paciente apresentava um tumor, era crucial manter os altos padrões dos
princípios de ressecção oncológica. O paciente passou pela avaliação clínica padrão,
com exames de imagem (TC e RM) do pé para delinear a extensão de acometimento dos
tecidos moles e neurovascular. Uma vez estabelecido o diagnóstico, as margens de ressecção
cirúrgica foram determinadas e previram uma cavidade significativa, já que uma calcanectomia
total foi planejada. O calcâneo removido precisava ser substituído ou reconstruído
para facilitar a sustentação de peso. Uma TC do calcâneo contralateral normal foi
utilizada para a criação do molde.
A cirurgia exigiu uma impressora 3D padrão, como, por exemplo, Kokoni Smart, Bambulab
e Creality. Além disso, houve necessidade de equipamentos de TC e RM para obtenção
dos modelos 3D, gerados em Slicer (slicer.org). Os modelos foram importados para um
software de modelagem 3D (Fusion 360) ([Fig. 3 ]). Os designs finais poderiam ter sido impressos com utilização de diversos programas específicos.
O modelo da impressão anatômica foi preparado antes da cirurgia e esterilizado com
gás, pois seu material, ácido polilático (PLA), era termolábil.
Fig. 3 (A ) Criação do modelo tridimensional (3D) a partir da reconstrução 3D da tomografia
computadorizada. (B ) Vista superior da metade criada do calcâneo. (C ) Vista sagital da metade criada do calcâneo. (D ) Criação de uma imagem espelhada para impressão. (E ) Designs finais para impressão 3D.
Este método de substituição é empregado após uma excisão local ampla do tumor subjacente,
evitando a necessidade de amputação. A cirurgia de salvamento de membro compreende
técnicas cirúrgicas para ressecção de tumores musculoesqueléticos de extremidades,
seguida pela reconstrução do membro acometido de forma funcional e cosmeticamente
aceitável.[3 ] As contraindicações relativas são fraturas patológicas, encapsulamento neurovascular
e mau posicionamento do trato de biópsia. A cirurgia de salvamento de membro é o tratamento
preferencial para tumores musculoesqueléticos de extremidades na era moderna, pois
demonstrou não comprometer a sobrevida ou a recidiva em comparação à amputação.[3 ]
O calcâneo é um osso irregular, de formato aproximadamente cúbico, situado abaixo
do tálus, e forma o núcleo do calcanhar ([Fig. 4 ]).[4 ] A parte posterior do calcâneo é circular e tem três facetas. A faceta superior é
separada do tendão calcâneo pela bursa retrocalcânea. A faceta média é o sítio de
inserção do tendão do calcâneo. A faceta inferior é contínua à tuberosidade calcânea
na superfície plantar. Superiormente, há uma faceta revestida de cartilagem (faceta
articular talar média) direcionada à faceta média correspondente da cabeça do tálus
como parte da articulação subtalar. A superfície anterior possui uma faceta articular
convexa para a articulação do osso cuboide.
Fig. 4 Anatomia do calcâneo. (A ) Medial, (B ) lateral e (C ) inferior. Fonte: Luijkx T, Elthokapy M, Gregory L, et al. Calcaneus. Reference article,
Radiopaedia.org.
Todos os pacientes devem ser submetidos à ressecção oncológica com princípios rigorosos,
ou seja, a ressecção em bloco com margem livre. A ressecção cirúrgica é crucial no
tratamento de tumores sólidos primários. A ressecção das margens do tumor ainda é
preocupante, já que sua realização inadequada facilita a recidiva da doença.[5 ] Após a excisão do tumor, é importante assegurar que não haja retenção macroscópica
da neoplasia. Em nosso relato de caso, a cirurgia foi realizada em decúbito ventral,
utilizando a incisão de Cincinnati[6 ] ([Fig. 5 ]). O procedimento foi uma calcanectomia total com ressecção em bloco ([Fig. 5 ]). O tríceps sural foi marcado para reconstrução posterior.
Fig. 5 Calcanectomia total com abordagem de Cincincati. (A ) Incisão da abordagem de Cincincati sobre o calcanhar. (B ) Ressecção ampla do calcâneo acometido. (C ) Vista sagital do calcâneo acometido. (D ) Espaço vazio após a calcanectomia total. (E ) Tumor de células gigantes recorrente excisado do calcâneo.
O molde impresso esterilizado do calcâneo foi preparado para implantação. Cada metade
do molde impresso foi revestida com campo cirúrgico Ioban e parafina líquida ([Fig. 6 ]). Em seguida, cada metade do molde foi preenchida com um pacote de cimento ósseo
padrão. As duas metades foram fixadas, com uma tela de prolene entre elas. A tela
de prolene atua como âncora para a reconstrução do tecido mole. O cimento extrudado
foi removido ainda na forma líquida, antes do endurecimento ([Fig. 6 ]).
Fig. 6 Moldagem do protótipo de modelo do calcâneo com cimento ósseo. (A ) Revestimento do molde com Ioban e parafina líquida. (B ) As duas metades do molde são preenchidas com um pacote de cimento ósseo padrão.
(C ) Uma bainha de tela de prolene é colocada entre as metades antes da sua união para
posterior consolidação. (D ) Fixação das metades do molde com cimento e tela de prolene enquanto o assistente
remove o cimento extrudado. (E ) Retirada do molde impresso do calcâneo de cimento. (F ) O calcâneo de cimento com a tela de prolene incorporada no centro para fixação em
tecido mole.
Devido às propriedades físicas do PLA, a casca endurecida do molde amolece durante
a fase exotérmica da cura do cimento, permitindo sua fácil remoção ([Fig. 6 ]). O calcâneo moldado foi inserido no espaço ressecado. O tríceps sural foi suturado
à face posterior do calcâneo na tela de prolene, que foi aparada nas áreas de inserção.
A articulação talocalcânea foi estabilizada com a inserção de parafusos esponjosos
com rosca parcial ([Fig. 7 ]). Brocas de tamanhos crescentes foram usadas para dilatação gradual do trajeto,
evitando rachaduras no cimento.
Fig. 7 O calcâneo de cimento inserido no espaço ressecado para reconstrução. (A ) Vista posterior. (B ) Vista lateral. Vistas intraoperatórias do intensificador de imagem dos dois parafusos
esponjosos inseridos. (C ) Vista lateral. (D ) Vista anteroposterior.
Após a inserção dos parafusos, o tendão calcâneo foi suturado à tela sobre a parte
posterior do calcâneo com fio Ethibond tamanho 2. A articulação calcaneocuboide foi
reconstruída com a tela ao redor dessa articulação e do ligamento circundante. Alternativamente,
outro parafuso poderia ser inserido em sentido posterior, cruzando a articulação calcaneocuboide
([Fig. 7 ]).
Um dreno foi colocado e o fechamento do tecido subcutâneo e da pele foi feito com
Vicryl 1 e Dafilon 3/0, respectivamente. A ferida foi coberta com creme antibiótico
e gesso, complementado com gaze macia e curativo.
O dreno foi mantido por 3 a 5 dias até a epitelização da ferida. As suturas foram
removidas 2 semanas após a cirurgia. Uma placa dorsal abaixo do joelho foi mantida
por 8 semanas depois do procedimento. Posteriormente, houve movimentação passiva e
ativa progressiva do tornozelo sem peso por mais 6 semanas para permitir a incorporação
do tendão calcâneo. A sustentação parcial do peso com muletas foi permitida 6 semanas
após a cirurgia e a sustentação total foi permitida aos 3 meses. Este paciente foi
acompanhado com exames clínicos e radiológicos periódicos. Os resultados funcionais
foram avaliados de acordo com o sistema proposto pela International Society of Limb Salvage e aprovado pela Musculoskeletal Tumor Society .[7 ]
O paciente foi acompanhado às 2 e 6 semanas e 3 e 6 meses após a cirurgia. A cicatrização
foi satisfatória, sem deiscência ou necrose do coxim adiposo, e o paciente iniciou
a deambulação completa após 3 meses. O paciente conseguia caminhar com marcha razoavelmente
equilibrada e a radiografia mostrou a integridade do implante impresso e dos parafusos
impressos ([Fig. 8 ]). O paciente ficou muito satisfeito com o resultado e a reabilitação.
Fig. 8 Imagem clínica de (A ) pé bilateral em vista plantar e (B ) lateral. Radiografia (C ) axial do calcâneo e (D ) em perfil do pé aos 9 meses de acompanhamento após a cirurgia.
Este método de impressão 3D indireta pode ser reproduzido e seu custo é significativamente
menor do que o da impressão 3D direta em metal. O custo de impressão do molde é mínimo.
A maior parte do custo se refere ao cimento ósseo utilizado. Este método permite o
ajuste anatômico com distribuição de força quase fisiológica durante a sustentação
da carga, diferentemente de um espaçador de cimento com formato irregular.
Discussão
A recidiva de um tumor previamente tratado, seja maligno ou benigno agressivo, exige
ressecção mais ampla e extensa, deixando um vazio significativo. Esses vazios precisam
ser preenchidos para permitir a distribuição de forças para suporte de carga. A reconstrução
requer uma análise pré-operatória 3D completa da deformidade ou substituição estrutural
para restauro do alinhamento do retropé e deambulação com sustentação total de peso.
Esse vazio complexo apresenta desafios significativos, daí a opção de utilizar a tecnologia
de impressão 3D na cirurgia de reconstrução. Como a substituição do calcâneo ressecado
é secundária, o fator mais importante ainda é manter a ressecção com margem livre
do tumor recorrente. A impressão 3D médica foi introduzida pela primeira vez para
avaliação de fratura intra-articular do calcâneo em 1997 por Kacl et al.[8 ] Apesar do lapso de muitos anos e da redução do custo de produção, o custo total
da impressão de todo o calcâneo em titânio ainda representa um fardo financeiro importante.[9 ] A impressão 3D evoluiu ao longo dos anos, permitindo o planejamento pré-operatório,
placas de pré-contorno, placas de pré-moldagem e a fabricação de guias específicos
para o paciente, entre outros.[9 ] Devido à complexidade do pé e do tornozelo, esse método definitivamente ajudou o
estabelecimento de uma fixação estável e a substituição anatômica sem custo econômico
significativo.
Considerações Finais
Esta abordagem inovadora não só promete recuperação funcional, como também enfatiza
o conforto do paciente devido ao menor tempo de recuperação e melhor ajuste anatômico.
Trata-se de um método eficiente, econômico e reprodutível para reconstrução óssea
após a ressecção completa ou parcial de tumores ósseos. A evidência de um único caso
pode não ser suficiente para gerar uma conclusão, que requer uma série de casos. No
entanto, este caso destaca um método inovador que pode ser praticado de forma eficaz
e econômica. Isso estabelece um precedente para futuros avanços na oncologia ortopédica
em todo o mundo, especialmente em países com restrições financeiras em relação à assistência
médica.
Bibliographical Record Goh Boay Heong Eyrique, Tee Kok Keat, Aaron Gerarde Paul. Novo molde impresso em três
dimensões para substituição do calcâneo após calcanectomia total por um tumor de células
gigantes agressivo recorrente do calcâneo. Rev Bras Ortop (Sao Paulo) 2025; 60: s00451809518.
DOI: 10.1055/s-0045-1809518