Palavras-chave
artroplastia de quadril - artroscopia - microfratura - impacto femoroacetabular
Introdução
A lesão em onda representa uma pré-delaminação ou delaminação profunda da cartilagem
articular ou do complexo condrolabral sem extensão intraarticular.[1] Este tipo de lesão é de difícil diagnóstico pré-operatório, sendo reconhecido, geralmente,
durante a cirurgia.[1] Como se trata de uma lesão da cartilagem articular pode causar graves problemas
na articulação do quadril, como artralgia, sinovite, formação de corpos livres e/ou
evolução para osteoartrite.[2] O desafio para os cirurgiões é a indicação cirúrgica correta associada ao tratamento
clínico destinado a curar a lesão.
Uma opção para o tratamento das lesões em onda é a técnica artroscópica descrita como
microfratura reversa.[3] Esta técnica é realizada com auxílio de um portal anterolateral acessório proximal,
no qual se consegue a angulação e posição adequadas para microfraturas do osso acetabular
sem causar lesões da cartilagem condrolabral, reduzindo assim a pressão das bolhas
formadas pela lesão em onda e induzindo a formação de um coágulo que, associado à
reação cicatricial óssea, pode atuar como um adesivo natural que une a cartilagem
ao osso.[3]
O presente estudo tem como objetivo avaliar os resultados clínicos e radiológicos
de 19 pacientes portadores de lesão tipo onda, tratados com a técnica de microfratura
reversa.
Material e Métodos
Estudo realizado após a aprovação deste estudo no Conselho de Ética e Pesquisa (CEP)
do grupo dos hospitais São Lucas e Ribeirânia, Ribeirão Preto – SP, a pesquisa foi
desenvolvida conforme preconiza a Resolução n° 466/12 do Conselho Nacional de Saúde
(CNS).
Trata-se de um estudo retrospectivo, descritivo e quantitativo, por meio de dados
coletados após análise e revisão de prontuários de pacientes que apresentavam lesão
em onda e foram tratados com a técnica de microfratura reversa no período de maio
de 2016 a outubro de 2017.
A técnica artroscópica descrita como microfratura reversa, que foi usada no presente
estudo, é realizada com posicionamento do paciente em uma mesa de tração, em decúbito
dorsal horizontal.[3] Com auxílio de radioscopia, o membro inferior afetado é tracionado até obter-se
um espaço articular de 2 centímetros. Após a montagem dos campos, são feitos os portais
anterolateral e anterior para visualização do compartimento intra-articular e diagnóstico
da lesão em onda na cartilagem acetabular. Para tratamento da lesão, é criado um portal
anterolateral acessório proximal (ACP) com uma angulação de 30 a 45° proximal e anterior
ao portal anterolateral e a meio caminho da espinha ilíaca anterosuperior e uma linha
perpendicular ao topo do trocânter maior.[3]
Por meio deste portal (ACP), é realizada a técnica da microfratura reversa sob visão
direta com uma broca de baixa rotação, podendo-se realizar quantas microfraturas forem
necessárias para tratamento da lesão, com uma distância de 3 a 4 mm entre elas[4] ([Figura 1]).
Fig. 1 (A) imagem mostrando o introdutor canulado e a posição desejada para a introdução da
broca de 2,3 mm. (B) imagem mostrando a broca, e o início da perfuração. (C) imagem da lesão em onda (elipse vermelha) e a perfuração do osso subcondral, sem
romper a cartilagem (seta).
Foram selecionados e incluídos 19 prontuários de um total de 28 pacientes operados,
dentre os quais tiveram os seguintes dados avaliados: gênero, idade, lateralidade,
data da cirurgia, tipo de impacto femoroacetabular (IFA), ressonância nuclear magnética
(RNM) no momento do diagnóstico e seis meses após a cirurgia, avaliação funcional
pelo Harris Hip Score (HHS) e escala visual e analógica (EVA) da dor no pré-operatório,
com 3 e 6 meses de cirurgia. Na EVA foi considerado como dor leve a graduação de 0
a 2, moderada de 3 a 7 e intensa de 8 a 9 ([Tabela 1]).
Tabela 1
|
DATA DA CIRURGIA
|
GÊNERO
|
LATERALIDADE
|
TIPO DE IFA
|
HHS PRE OP
|
EVA PRE OP
|
HHS POS OP 3 MESES
|
EVA 3 MESES
|
HHS POS OP 6MESES
|
EVA 6MESES
|
RNM 6 MESES
|
1
|
27/01/2017
|
FEMININO
|
ESQUERDO
|
MISTO
|
76
|
7
|
86
|
3
|
100
|
0
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
2
|
02/09/2016
|
MASCULINO
|
DIREITO
|
CAME
|
56
|
8
|
70
|
5
|
81
|
3
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
3
|
10/03/2017
|
MASCULINO
|
ESQUERDO
|
CAME
|
74
|
7
|
85
|
3
|
95
|
0
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
4
|
28/09/2016
|
FEMININO
|
DIREITO
|
MISTO
|
70
|
7
|
85
|
4
|
91
|
1
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
5
|
09/05/2016
|
FEMININO
|
ESQUERDO
|
MISTO
|
70
|
6
|
75
|
4
|
85
|
2
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
6
|
08/04/2017
|
MASCULINO
|
DIREITO
|
MISTO
|
74
|
6
|
88
|
2
|
91
|
1
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
7
|
23/06/2017
|
FEMININO
|
DIREITO
|
CAME
|
81
|
4
|
90
|
1
|
100
|
0
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
8
|
30/09/2016
|
FEMININO
|
ESQUERDO
|
CAME
|
56
|
9
|
70
|
4
|
79
|
1
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
9
|
26/01/2017
|
FEMININO
|
DIREITO
|
CAME
|
68
|
8
|
75
|
5
|
90
|
2
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
10
|
05/10/2016
|
FEMININO
|
DIREITO
|
MISTO
|
81
|
6
|
91
|
2
|
100
|
0
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
11
|
05/10/2017
|
FEMININO
|
DIREITO
|
MISTO
|
70
|
7
|
91
|
5
|
95
|
1
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
12
|
19/04/2017
|
FEMININO
|
DIREITO
|
MISTO
|
61
|
7
|
79
|
3
|
100
|
1
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
13
|
10/09/2016
|
FEMININO
|
ESQUERDO
|
CAME
|
56
|
8
|
79
|
3
|
91
|
1
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
14
|
29/09/2017
|
FEMININO
|
ESQUERDO
|
CAME
|
56
|
8
|
75
|
4
|
91
|
2
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
15
|
02/08/2017
|
MASCULINO
|
DIREITO
|
CAME
|
86
|
7
|
91
|
1
|
100
|
0
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
16
|
19/08/2016
|
FEMININO
|
DIREITO
|
MISTO
|
70
|
7
|
85
|
3
|
91
|
1
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
17
|
25/10/2016
|
FEMININO
|
DIREITO
|
CAME
|
41
|
8
|
75
|
3
|
91
|
2
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
18
|
14/11/2016
|
FEMININO
|
ESQUERDO
|
MISTO
|
56
|
8
|
75
|
4
|
79
|
3
|
Cisto no local da #R
|
19
|
25/07/2016
|
FEMININO
|
ESQUERDO
|
MISTO
|
81
|
5
|
91
|
1
|
100
|
0
|
Cartilagem semelhante a área sem lesão e com sinais de viabilidade
|
Nove pacientes foram excluídos do presente estudo devido à falta de documentação necessária
ou perda de seguimento.
Os critérios de inclusão foram: IFA tipo misto ou CAM, lesão em onda isolada ou associada
a lesão labral, fisioterapia assistida,[5] pacientes operados pelo mesmo cirurgião. E os critérios de exclusão foram: falta
do HHS ou RNM no pré ou pós-operatório, lesão condral tipo clivagem, delaminação ou
exposição do osso subcondral associada a lesão em onda, displasia acetabular, quadril
encarcerado ou sobrecobertura excessiva, coxa profunda ou protrusa, revisão de artroscopia,
instabilidade coxofemoral, hiper mobilidade articular seguindo os critérios de Beighton.[6]
Análise estatística
Os dados foram avaliados por meio de uma estatística descritiva, em que foi possível
a caracterização da amostra quanto às variáveis coletadas.
Para verificar a associação entre as variáveis qualitativas, os dados foram submetidos
ao Teste Exato de Fisher.[7]
Foram utilizados testes t de Student, no qual consiste em comparar duas médias provenientes
de amostras não pareadas. Para a utilização deste teste é necessário testar se as
variâncias dos dois grupos são estatisticamente iguais, e se os dados seguem distribuição
normal.
Todas as análises estatísticas foram realizadas com a utilização do software estatístico
SAS. Valores de p menores que 0,05 foram considerados significativos.
Na análise estatística do Harris Hip Scores em relação ao tempo, foram classificados
os resultados em pobre quando apresenta menos de 70 pontos, razoável quando apresenta
entre 70 e 80 pontos, bom quando apresenta entre 80 e 90 pontos e excelente quando
for maior que 90 pontos.[8]
Resultados
Dos 19 pacientes avaliados, 15 (78,95%) são do sexo feminino, enquanto quatro (21,05%)
do sexo masculino. Onze (57, 89%) pacientes operaram o lado direito e oito (42,11%)
o lado esquerdo.
Em nove (47,37%) pacientes foram visualizadas IFA tipo CAM e os outros 10 (52,63%)
do tipo misto. Três (75%) dos homens e 6 (40%) das mulheres apresentavam IFA tipo
CAM. Nenhum paciente apresentou IFA tipo pincer exclusiva.
Somente um paciente (5,26%) apresentou complicação pós-operatória, com formação de
cisto na região da microfratura.
Na avaliação estatística temporal, o HHS demonstra no pré-operatório um percentual
de 42,11% dos pacientes com escore pobre, 36,84% razoável e 21,05% bom. Após 3 meses
de cirurgia, 47,37% dos pacientes apresentavam escore razoável, 26,32% bom e 26,32%
excelente. Após 6 meses de cirurgia, 10,53% dos pacientes apresentaram resultado razoável,
10,53% bom e 78,95% excelente (p < 0,05) ([Tabelas 2] e [3] e [Figura 2]).
Tabela 2
HHS X Tempo
|
Tempo
|
N
|
Média
|
Desvio padrão
|
Mínimo
|
Mediana
|
Máxima
|
T0
|
19
|
67.53
|
11.73
|
41.00
|
70.00
|
86.00
|
T3
|
19
|
81.89
|
7.52
|
70.00
|
85.00
|
91.00
|
T6
|
19
|
92.11
|
7.15
|
79.00
|
91.00
|
100.00
|
Tabela 3
Média HHS X Tempo
|
Comparação
|
Estimativa
|
Valor de p*
|
Intervalo de confiança de 95%
|
(T0–T3)
|
−14.3684211
|
< 0.0001
|
−20.2495574
|
−8.4872847
|
(T0–T6)
|
−24.5789474
|
< 0.0001
|
−30.4600837
|
−18.6978111
|
(T3–T6)
|
−10.2105263
|
0.0010
|
−16.0916626
|
−4.3293900
|
Fig. 2 Gráfico mostrando a melhora dos resultados pré-operatório e pós operatório segundo
o Harris Hip Score.
Em relação à avaliação temporal da EVA da dor, 63,16% dos pacientes apresentavam dor
moderada e 36,84% dor intensa no pré-operatório. Após 3 meses da cirurgia, 26,32%
apresentavam dor leve e 73,68% dor moderada, e após 6 meses da cirurgia, 89,47% apresentavam
dor leve e 10,53% dor moderada (p < 0,05). Os dados mostram a melhora significa da dor segundo a tabela EVA após 3
e 6 meses da cirurgia ([Tabela 4] e [Figura 3]).
Tabela 4
Tempo X EVA
|
Tempo
|
EVA[*]
|
Total
|
1
|
2
|
3
|
T0
|
0
0.00
|
12
61.16
|
7
36.84
|
19
100.00
|
T3
|
5
26.32
|
14
73.68
|
0
0.00
|
19
100.00
|
T6
|
17
89.47
|
2
10.53
|
0
0.00
|
19
10.00
|
Total
|
22
|
28
|
7
|
57
|
Fig. 3 Gráfico ilustrando a diminuição escalonada da dor segunda a escala visual analógica
entre os períodos pré-operatório, 3° e 6° mês.
Foi realizada uma RNM após 6 meses da cirurgia em todos os pacientes, que demonstrou
que a cartilagem tratada apresentava intensidade de sinal semelhante à cartilagem
normal adjacente em 18 pacientes ([Figura 4]). Um paciente apresentou a formação de um cisto na área das microfraturas ([Tabela 1]).
Fig. 4 (A) Imagem destacada do pré-operatória que corresponderia a lesão em onda, é possível
observar a alteração da cartilagem na junção condrolabral. (B) Seis meses de pós-operatório, imagem destacada mostra que a cartilagem, onde foi
feita a microfratura, apresenta o mesmo sinal e as mesmas características das áreas
não lesadas.
Discussão
Técnicas de microfraturas,[4]
[9] reparo direto,[4]
[10] reparo com adesivos de fibrina,[11]
[12] transplante de condrócitos autólogos (ACT),[13] condrôgenese induzida por matriz extracelular (AMIC, na sigla em inglês),[14] mosaicoplastia,[15] transplante de aloenxerto osteocondral[2] e implantação de células tronco na matriz[2] são técnicas que apresentaram bons resultados em algumas lesões específicas e resultados
insatisfatórios em outras.
O presente estudo relata os resultados de um procedimento artroscópico indicado para
lesões em onda da cartilagem acetabular. Como se trata de um procedimento novo, poucos
dados foram encontrados na literatura para realizar comparações.[12]
Dentre as lesões observadas, a maioria (52,63%) dos pacientes apresentavam lesão tipo
mista, e quando se avalia as lesões em pacientes do sexo masculino, 3 (75%) eram do
tipo CAM, o que deixa de acordo com a literatura atual,[1] a qual demonstra o tipo misto como o mais comum e o came isolado mais frequente
em homens.[1]
O que apresenta concordância com a literatura é que o HHS e EVA da dor apresentaram
uma melhora progressiva dos sintomas quando comparadas no pré-operatório, com três
meses e após seis meses da cirurgia. Na RNM pré-operatória observamos a região condral
lesionada mais escura, com hipossinal nas sequencias ponderada em DP FAT SAT e gradiente-eco
GRET2 em comparação com a cartilagem acetabular sadia. Na RNM após 6 meses da microfratura
reversa, a área cartilaginosa tratada apresenta o mesmo sinal que a cartilagem adjacente
não lesionada nos 18 pacientes avaliados, o que pode sugerir que a cartilagem está
sadia e aderida ao osso subcondral, corroborando com a melhora clínica e dos escores
avaliados.
A única complicação observada no presente estudo foi a formação de um cisto na região
das perfurações em um paciente. Não encontramos outros estudos na literatura atual
que tenha demonstrado a ocorrência desta mesma complicação. Acreditamos que tenha
ocorrido a entrada de líquido sinovial pelo orifício das microfraturas com o desenvolvimento
do cisto.
O ideal para confirmação de um bom resultado do procedimento seria a realização de
uma nova artroscopia para biópsia do local da lesão. No entanto, isso representaria
um procedimento invasivo adicional, o que envolve aspectos éticos, que, portanto,
impossibilitaram sua realização.
Conclusão
O tratamento da lesão em onda através da microfratura reversa se mostrou eficaz e
seguro em um seguimento de 6 meses, com melhora significativa do HHS e EVA da dor,
e com achados de imagem semelhantes aos da cartilagem sadia adjacente em exames de
RNM. Estudos adicionais com maior casuística e maior tempo de seguimento são necessários
para definir o impacto desta nova técnica na prática clínica.