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DOI: 10.1055/s-0041-1735137
Abordagem conservadora da mão torta ulnar tipo III: Relato de caso
Article in several languages: português | EnglishResumo
A mão torta ulnar é uma rara afecção de membros superiores, cujo tratamento depende do grau de comprometimento morfológico e funcional, que se correlaciona com a classificação radiográfica de Dobyns, Wood e Bayne. O objetivo deste estudo é relatar um caso de um paciente de 6 anos de idade, do sexo masculino, acompanhado devido a mão torta ulnar do tipo III (aplasia total da ulna). Apesar da dificuldade inicial de manipular objetos e realizar tarefas cotidianas, o tratamento conservador fisioterapêutico propiciou o ganho de força e o desenvolvimento de habilidades funcionais para a vida diária. Concluímos que pacientes com deformidade do tipo III podem ser manejados adequadamente com reabilitação embora necessitem de seguimento ambulatorial até a maturidade esquelética, pois deformidades dinâmicas e novas limitações funcionais podem levar à necessidade de cirurgias corretivas.
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Palavras-chave
anormalidades musculoesqueléticas - deformidades congênitas da mão - deformidades congênitas das extremidades superiores - focomelia - ulna/anormalidadesIntrodução
A mão torta ulnar (MTU) é uma afecção congênita rara.[1] No Brasil, uma incidência de 1,6% de MTU foi relatada.[2] Trata-se de uma das mais raras deformidades congênitas dos membros superiores.[2]
A MTU é uma falha longitudinal na formação da ulna (focomelia), que pode estar total ou parcialmente ausente.[3] Ela é mais frequente em homens, no lado direito, e unilateral em 70% dos casos. A forma incompleta é a mais comum.[4]
A deformidade é caracterizada por antebraço curto e curvado para o lado radial, com a mão desviada em sentido ulnar.[4] Outras anormalidades associadas podem estar presentes.[4] A função do cotovelo pode estar comprometida em diferentes graus (desde rigidez até aumento da mobilidade, com instabilidade).[1] [5] Em crianças maiores, a luxação da cabeça radial poderá ocorrer.[1]
Dobyns, Wood e Bayne classificam esta afecção em quatro tipos. No tipo I, há hipoplasia da ulna, pequeno desvio ulnar, arqueamento do rádio, e não existe anlage. No tipo II, há aplasia parcial da ulna (terço médio ou distal), a articulação proximal da ulna com o úmero está presente, existe anlage distal, e há luxação da cabeça do rádio. No tipo III, ocorre a aplasia total da ulna, não existe anlage, o rádio é arqueado, e a cabeça do rádio é luxada (com instabilidade do cotovelo). No tipo IV, há sinostose radioumeral e o anlage costuma estar presente.[6]
O objetivo deste estudo é apresentar um caso de MTU tipo III, no qual o desafio foi a escolha do tratamento. Discutimos os elementos que norteiam a indicação terapêutica, os relacionados ao acompanhamento clínico e apresentamos os resultados funcionais após 2 anos de seguimento.
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Relato de caso
Um paciente de 4 anos de idade, do sexo masculino, foi admitido em ambulatório especializado devido a “má formação do membro superior direito (MSD)”. O diagnóstico de MTU havia sido realizado por ultrassonografia morfológica e confirmado após o nascimento. Além da MTU, foi diagnosticada agenesia testicular à esquerda. Havia história familiar de atrofia muscular espinhal tipo III (paterna). Este trabalho foi aprovado pelo CEP (CAAE:97048518.9.0000.5103).
Uma deformidade típica de MTU associada à agenesia do quarto e quinto quirodáctilos era evidente ([Fig. 1]). Não foi possível identificar formação de barra fibrosa ou cartilaginosa (anlage). Havia importante limitação funcional e dificuldades para manipular objetos além de hipoestesia na borda medial do terceiro dedo.


As radiografias ([Fig. 2]) evidenciaram ausência completa da ulna, luxação da cabeça do rádio, e ossos do carpo centralizados. Não havia displasia glenoumeral no ombro.


Diante das limitações para a vida diária, o paciente procurou nosso ambulatório onde recebeu indicação de tratamento fisioterápico. O objetivo era otimizar a atividade motora fina e ganho funcional (como usar o celular, se vestir sozinho e colocar os sapatos). O tratamento foi realizado durante 9 meses (1 hora, 3 vezes por semana) ([Quadro 1]).
1. Fortalecimento de membro superior direito utilizando caneleira de 0,5 kg associado à atividade de arremessar bola, com uso de faixa elástica; |
2. Fortalecimento das falanges da articulação radiocárpica direita utilizando massa de cera, exercitador para dedos e mãos e bola de borracha; |
3. Fortalecimento dos músculos periescapulares associado a atividades lúdicas; |
4. Mobilização articular da escapula e glenoumeral; |
5. Mobilização osteocinemática da glenoumeral com assistência à escapula; |
6. Treino de coordenação motora (aprender a utilizar as falanges de forma individual); |
7. Treino de função (amarrar cadarço, vestir roupas, abrir garrafa). |
O resultado da fisioterapia foi mensurado pela escala Goal Attainment Scale (GAS),[7] que elencou três tarefas consensuais entre os familiares e o terapeuta. Os objetivos foram: melhorar a funcionalidade do MSD com ganho de movimentos finos; aprimorar a preensão palmar; reduzir a discinesia escapular durante a abdução para pegar brinquedo na prateleira. Em 2 meses, o paciente apresentou melhora em 2 tarefas (função do MSD, comparada em vídeo, e melhora da preensão palmar nas tarefas diárias).
Na consulta após a fisioterapia, aplicamos o questionário Disabilities of the Arm, Shoulder and Hand (DASH).[8] Por ser criança, as questões 7, 8, 12 e 21 não puderam ser aplicadas por abordarem funções típicas dos adultos. Esta modificação nos levou a considerar não o escore absoluto (38,33 pontos), mas sim o seu valor ponderado (46%), classificando a disfunção como moderada. O [Quadro 2] elenca outros achados.
Antes da fisioterapia |
Após a fisioterapia |
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Função |
Limitação do uso de falange individual em mão direita Limitação da preensão palmar para realização de tarefas funcionais Discinesia escapular durante abdução para pegar objeto em prateleira |
Aquisição da capacidade de usar falange individual (força muscular: grau 4/5) Aprimoramento da preensão palmar Sem melhora observada |
Força |
Hipotonia do membro superior direito O paciente conseguia vencer gravidade O paciente não conseguia carregar objeto/brinquedo com peso com membro superior direito |
Mantido Mantido Mantido |
Tarefas específicas |
O paciente conseguia se alimentar sozinho O paciente conseguia usar o celular O paciente não conseguia se vestir sozinho O paciente não conseguia colocar os sapatos O paciente não conseguia abrir fechaduras O paciente não conseguia abrir garrafas O paciente não conseguia abrir pacote de biscoitos |
Mantido Melhora com uso de falange individual Aquisição parcial de função[**] Aquisição parcial de função Aquisição de função[**] Aquisição de função Aquisição de função |
O paciente mantém o acompanhamento após 2 anos, assintomático e com o quadro estável, realiza o movimento de pinça do polegar, apesar de não apresentar função da musculatura de oponência. A musculatura flexora dos três dedos é normal, então o paciente é capaz de brincar com o celular, se vestir independentemente e realizar outras tarefas diárias ([Fig. 3]). Optamos por não indicar cirurgia neste momento, embora a conduta possa ser revista, principalmente se houver perda da capacidade de pinça do polegar, piora da estabilidade do cotovelo, perda progressiva da função, ou dor.


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Discussão
Nosso caso é ilustrativo da MTU, pois inclui paciente do sexo masculino, de acometimento no lado direito.[4] Na literatura, a agenesia parcial da ulna (Bayne II) é o fenótipo mais frequente, diferente do nosso caso.[1] [5] [6] Não identificamos casos semelhantes ao nosso na literatura nacional.
A agenesia de metacarpos e falanges observada também é reportada na maioria dos estudos.[1] [5] Não identificamos anormalidades musculoesqueléticas concomitantes ou limitação da mobilidade do cotovelo, ao contrário de outros autores.[5] [6]
O tratamento nos casos de MTU requer abordagem multiprofissional e individualizada.[9] A maioria das crianças é tratada sem cirurgia, especialmente na MTU unilateral.[9] Nos casos que necessitam de cirurgia, o objetivo é melhorar a função do membro afetado.[9]
Para avaliar o ganho de função podemos utilizar escalas objetivas (ex.: DASH) ou outras mais subjetivas (ex.: GAS). Embora seja validado, o questionário DASH apresenta desvantagens por envolver um período maior de aplicação e ser específico para adultos. Por isso, o GAS é preferido por nós, por ser mais prático. Ele envolve definir um conjunto de objetivos, especificando uma gama de possíveis resultados para cada objetivo (em uma escala que contém 5 níveis, de -2 a +2). É utilizado para avaliar o desempenho após um período de intervenção especificado.[7]
A abordagem cirúrgica nos casos de Bayne II foi advogada por Monteiro e Schachinger.[1] [5] Em pacientes com Bayne IV, o tratamento conservador é recomendado.[10] Não identificamos recomendações para Bayne III. Neste caso, optou-se pelo tratamento conservador devido à idade do paciente e boa resposta à fisioterapia com adaptação adequada às atividades do dia a dia.
O prognóstico da MTU dependerá de fatores como: unilateralismo, associação a síndromes, o número de dedos presentes, o grau de atrofia dos membros e a presença de sindactilia.[9] Em nosso caso, a função de articulações do cotovelo e punho pode piorar com o crescimento, o que justifica acompanhamentos seriados e eventuais intervenções.[1] No entanto, o seguimento dos últimos 2 anos evidenciou evolução satisfatória.
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Conflito de Interesses
Os autores declaram não haver conflito de interesses.
Estudo realizado na Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora, MG, Brasil
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Referências
- 1 Monteiro AV, Chiconelli JR. Deficiência ulnar congênita: conduta de tratamento. Rev Bras Ortop 1997; 32 (08) 637-640
- 2 Pinto HB, Pais AP, Vitorio SC, Brandão R, Moreira AAD, Molinaro LR. Case Study of Congenital Anomalies of the Upper Limb in Reference Ambulatory Care Facility. Acta Ortop Bras 2018; 26 (05) 325-327
- 3 Swanson AB. A classification for congenital limb malformations. J Hand Surg Am 1976; 1 (01) 8-22
- 4 Panda A, Gamanagatti S, Jana M, Gupta AK. Skeletal dysplasias: A radiographic approach and review of common non-lethal skeletal dysplasias. World J Radiol 2014; 6 (10) 808-825
- 5 Schachinger F, Girsch W, Farr S. Soft-Tissue Distraction Prior to Single Bone Forearm Surgery in Ulnar Longitudinal Deficiency: A Report of Two Cases. J Hand Surg Asian Pac Vol 2018; 23 (01) 153-157
- 6 Bayne LG. Ulnar club hand (Ulnar deficiencies). In: Green DP. Operative hand surgery. New York: Churchill Livingstone; 1993: 288-303
- 7 McDougall J, Wright V. The ICF-CY and Goal Attainment Scaling: benefits of their combined use for pediatric practice. Disabil Rehabil 2009; 31 (16) 1362-1372
- 8 Orfale AG, Araújo PM, Ferraz MB, Natour J. Translation into Brazilian Portuguese, cultural adaptation and evaluation of the reliability of the Disabilities of the Arm, Shoulder and Hand Questionnaire. Braz J Med Biol Res 2005; 38 (02) 293-302
- 9 Frantz DH, O'Rahilly R. Ulnar hemimelia. Artif Limbs 1971; 15 (02) 25-35
- 10 Elhassan BT, Biafora S, Light T. Clinical manifestations of type IV ulna longitudinal dysplasia. J Hand Surg Am 2007; 32 (07) 1024-1030
Endereço para correspondência
Publication History
Received: 23 December 2020
Accepted: 07 April 2021
Article published online:
01 October 2021
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Referências
- 1 Monteiro AV, Chiconelli JR. Deficiência ulnar congênita: conduta de tratamento. Rev Bras Ortop 1997; 32 (08) 637-640
- 2 Pinto HB, Pais AP, Vitorio SC, Brandão R, Moreira AAD, Molinaro LR. Case Study of Congenital Anomalies of the Upper Limb in Reference Ambulatory Care Facility. Acta Ortop Bras 2018; 26 (05) 325-327
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- 10 Elhassan BT, Biafora S, Light T. Clinical manifestations of type IV ulna longitudinal dysplasia. J Hand Surg Am 2007; 32 (07) 1024-1030











